Por que setores de Israel hesitam no apoio ao genocídio do Estado sionista contra Gaza?
Iniciativas como abaixo-assinado de militares de Israel pelo fim do conflito não devem ser levadas muito a sério: estão ‘rompendo sem romper’ com o sionismo
Recebi de um amigo próximo uma demanda para analisar uma situação sobre os dramáticos acontecimentos na Palestina ocupada que está se difundindo nos dias que correm. A interpelação foi feita em função de um artigo da grande imprensa indicando que mais de mil oficiais da força aérea sionista estariam dispostos a dar marcha ré no trabalho que vêm realizando com esmero há vinte meses. Seria esta situação indicadora de mudança substantiva na destruição do povo palestino ora em curso?
Estes militares altamente qualificados e pró-ativos na implementação da política social genocida contra o povo palestino se manifestaram via um abaixo-assinado pelo encerramento do conflito alegando, entre outros: a) a guerra é política e “não serve mais aos propósitos de segurança nacional do Estado judeu”; b) a maioria da opinião pública do país é contra a guerra; c) os cativos desde 7 de outubro de 2023 podem vir a perecer; d) soldados sionistas e a população civil estão morrendo; e) a guerra pode levar à prática de crimes de guerra; f) a invasão de Gaza seria a realização de um projeto messiânico partilhado apenas por uma pequena minoria da sociedade sionista. Finalmente, destacamos abaixo trecho do texto do abaixo-assinado que faz uma profissão de fé num presumido sentido histórico e moral do Estado sionista, como indica a reprodução do documento pelo jornal Haaretz:

Soldados israelenses durante exercício militar em Hohenfels, na Alemanha, em abril de 2019.
(Foto: U.S. Army / Spc. Meagan Mooney)
“Nossa existência como sociedade e como país é condicionada pela crença na justiça do nosso caminho, garantias mútuas, defesa dos valores da moral judaica e um profundo compromisso com a vida humana.”
A análise feita pelo periódico online indica ainda que esta situação marca o encontro das posições dos missivistas com a opinião pública mais ampla sobre o que está acontecendo na Faixa de Gaza. Nesta mudança, o que é indicado não é o processo em si, tal como ele foi iniciado em outubro de 2023, pois este já estaria esgotado, mas apenas a questão “(da) retomada e intensificação das ações militares em Gaza (em março de 2025, após dois meses de cessar fogo – BK) e dos alertas sobre a escassez de alimentos e insumos básicos emitidos por organizações que trabalham no enclave palestino”.
A política social genocida está neste momento se defrontando com uma (a primeira) barreira relevante. Já abordamos este tema no artigo anterior desta série que estamos publicando no Opera Mundi. Naquele momento realizamos algumas reflexões sobre o porquê esta situação se conformar neste momento, não depositando muitas esperanças de que esta nova e aparentemente inovadora correlação de forças traria, ao menos no curto prazo, o fim da implementação da política social genocida.
Nossa resposta ao estimado amigo, com algumas correções para adaptação ao presente texto, foi a seguinte:
“Isto é oportunismo político. Já aconteceram inúmeras manifestações como esta anteriormente. Veja o filme de animação ‘Valsa com Bashir’, onde ex-soldados arrependidos que presenciaram e contemplaram os massacres de Chabra e Shatila em 1982 se manifestam sobre o ocorrido. Muitos se expõem apenas depois de prestarem os seus serviços como militares. O genocídio está alcançando um ‘ponto de não retorno’ e seus executores e patrocinadores não querem assumir a responsabilidade no futuro do que está acontecendo/por acontecer. França, Inglaterra e Alemanha estão fazendo o mesmo papelão. Se estes militares quisessem fazer alguma coisa, se recusariam participar das missões (alguns poucos fazem isso) ou executariam uma ação direta de impedir que os aviões decolem. Eles estão ‘rompendo sem romper’ com o sionismo. Faz parte da encenação. Os nazistas não enviaram os judeus para ‘campos de trabalho’? Estes militares e outros sionistas de esquerda estão preocupados apenas com a ‘situação humanitária’. Nunca chamam o que está acontecendo de genocídio. É manifestação típica da pequena burguesia, que fica pendulando de um lado para outro do espectro político. As manifestações na Europa cresceram muito no último dia 18 de maio (além de serem contínuas) e estão expondo os sentimentos piegas desta gente. Mesmo na Europa e EUA os manifestantes focam nos ‘direitos humanos’ ou algo similar mas nunca na política imperialista como promotora do genocídio e também não se insurgem em grande número. A classe trabalhadora destes países está produzindo e transportando as armas para o Estado sionista. São militares, mil deles! Não têm culhão de pegar em armas e impedir a mortandade, que é estruturada a partir dos bombardeios aéreos de aviões e munições caríssimos fornecidos por EUA e Europa. A ação deles não muda nada, apenas fazem parte do cenário. A situação é absolutamente crítica, quase no limiar da execução completa do plano de liquidação dos palestinos de Gaza. Param um pouco e continuam depois. Foi o que ocorreu entre 1947 e 1951, o Nakba. Não dá prá confiar neles. Amanhã voltam pros aviões e dizem que vão defender a todo custo Eretz Israel dos ataques terroristas ou dos inimigos árabes vizinhos. No fundo é pura dissonância cognitiva produzida pelo sionismo e pelo sociedade parasitária em que vivem: fazem uma guerra caríssima não utilizando a riqueza social produzida no próprio país. Possuem um padrão de vida muito maior do que a economia suporta.”
Malgrado a linguagem telegráfica e algo irônica que utilizamos na resposta, temos nesta manifestação uma espécie de “agenda” de reflexão sobre a conjuntura que está se abrindo. Agregaríamos aos pontos indicados acima que muitos poderiam indicar ainda que entre o atual governo norte-americano e o sionista já existe uma aberta discordância sobre os destinos da invasão militar na Faixa de Gaza.. Aquele preocupado com o business que o processo de paz pode propiciar; este voltado para uma forma de enriquecimento parasitário baseado no expansionismo territorial e na limpeza étnica dos povos originários que caracteriza a sociedade sionista desde os seus primórdios. Mesmo sem a menor possibilidade de ruptura da relação figadal que une as políticas externas dos dois países para o Oriente Médio, notamos que a principal força motora do estancamento do estágio atual da política social genocida vem apenas e tão somente do governo Trump. Sendo assim, podemos inferir que os defensores desta posição indicam que as negociações isoladas que estão sendo conduzidas por aquele governo nestas últimas semanas com a resistência palestina visam criar uma ponte de salvação para que o governo sionista encerre a guerra encenando uma espécie de concessão feita (ou este ser obrigado a acatar a pressão) do seu principal financiador. Isto impediria o fardo de uma eventual consideração de que houve uma derrota do Estado sionista ao não eliminar fisicamente a resistência islâmica e nem obter sucesso da extração dos seus cativos pela via da força.
Todos estes aspectos alinhados acima indicam a necessidade da compreensão meticulosa das formas de atuação do Estado sionista desde quando ainda era constituída, nas décadas de 1920 até 1940, de um braço político (Waissman, Ben Gurion, Golda Meir, etc.) e outro terrorista (Irgun, Gang Stern e Palmach). Esta dupla dinâmica de atuação nunca contemplou na sua atuação na Palestina a implementação de recuos na limpeza étnica, apenas paradas estratégicas. Assim, por exemplo, a não ocupação da Cisjordânia e a instauração do enclave artificial da Faixa de Gaza foram processos instituídos em função da incapacidade, em 1948, de tornar a Palestina histórica totalmente esvaziada dos seus habitantes originários. Adotou-se na época uma parada estratégica para continuar o processo mais adiante, quando as condições políticas permitissem. Da mesma forma, o Grande Israel em sua dinâmica constitutiva atual se enquadra nesta mesma situação. Parar a matança para continuá-la posteriormente não é uma derrota, mas uma estratégia.
Não podemos entender o que está ocorrendo com a reversão de posição de vários defensores da política social genocida contra o povo palestino, entre eles os da força aérea sionista, senão como um momento muito próprio que não pode ser considerado um ponto fora da curva na História da usurpação que os sionistas impingiram a todo um povo. Não há ainda acúmulo de forças suficientes para reverter definitivamente a política social genocida contra o povo palestino. O que está ocorrendo neste exato momento é, numa visão de longa duração, de uma catarse coletiva por parte da sociedade sionista que necessita de uma espécie de “descanso emocional” para, num futuro próximo, voltar a atuar como agentes da exterminação física e social do povo palestino. No momento de exaustão de um ciclo de agressões ocorre uma arrefecimento da política social genocida, que será retomado em algum momento no futuro, quando uma outra nova geração de soldados continuará a tarefa da limpeza étnica. Muitos soldados sionistas das gerações anteriores passam, neste momento de uma nova ofensiva, a proferir críticas sobra a ação do seu governo.
Não desconsideramos que a crescente pressão de governos (França, Inglaterra e Alemanha), indivíduos relevantes nos meios de comunicação (o jornalista Piers Morgan) e movimentos sociais podem elevar a contestação da política social genocida aplicada contra o povo palestino a um nível tal que seja capaz de, ao menos temporariamente, frear a ação que os sionistas estão até agora impunemente realizando. Esta situação está em desenvolvimento positivo para a mobilização popular contra a política social genocida desde 18 de maio de 2025. Várias notícias informando a existência de mobilização estão neste exato momento sendo noticiadas nas redes sociais. Elas contém até mesmo projetos de tentativas de intervenção no território da Faixa de Gaza. Mas estas forças (da forma como se conformam) não estão se constituindo como atores autônomos, já que possuem limites: são caudatárias da nova política do governo norte-americano, dependendo deste para abrir uma fratura política na política social genocida contra o povo palestino para que estas manifestações ganhem corpo e densidade. Este é o cenário que estamos assistindo neste momento.
Uma outra consideração que fazemos nesta novíssima correlação de forças que está em desenvolvimento é que caso seja a sociedade civil seja o fator decisivo do fim da matança os governos que representam esta perderão capital político. Aqui é necessário considerar que demanda tempo e análise do escopo do que está prestes a acontecer para podermos avaliar se houve (ou haverá) uma transformação substantiva na correlação de forças das classes sociais em favor do fim da política social genocida contra o povo palestino. Temos em conta que a insurgência contra a política social genocida contra o povo palestino corresponde em alguma medida um questionamento das bases de reprodução da vida social dos países de origem dos manifestantes. Se a ampliação do questionamento dos fundamentos de produção da política social genocida não ocorrer vivenciaremos apenas um conjunto de tentativas frustradas de frear a matança, indicando que a luta política ganhará novos contornos mas não será capaz de modificar as caraterísticas basilares das lutas sociais dos países capitalistas desenvolvidos. Será destes, de forma substantiva, de onde sairão os ativistas que projetam interferir no processo de limitação da política social genocida.
Como produto desta limitação, temos que considerar que o manifesto dos militares aviadores sionistas contém uma imprecisão preciosa, que já indicamos acima: “a invasão de Gaza seria a realização de um projeto messiânico partilhado apenas por uma pequena minoria da sociedade sionista”. Ora, o descolamento das posições dos militares querelantes da implementação da política social genocida contra o povo palestino, que possuem a auto-imagem de serem eles mesmos representantes da maioria da população de seu país, indica apenas que se colocam numa posição tão messiânica quanto a dos que estão criticando. Se esquecem (?) de que o governo atual foi eleito e possui maioria parlamentar. Isto também ocorreu com os primeiros governos dos sionistas laicos, dos quais eles possuem afinidades, que perderam a hegemonia do processo político do Estado sionista em 1977 quando o Likud venceu sua primeira eleição. Foram estes sionistas laicos que criaram no Nakba (1948) toda esta situação catastrófica para as vítimas (palestinas) das vítimas (do holocausto).
Somente as lutas sociais informadas por uma crítica ao imperialismo e a sociedade de classes geradora da “engenharia política” genocidária que poderá produzir fatos realmente novos, capazes de colocar esta posição dos militares aviadores numa efetiva rota de colisão com o sionismo. Assim, conjuntamente com outras forças políticas contestatórias e questionadoras do capitalismo, haveria o ressurgimento do povo palestino enquanto ente coletivo.
Se tudo o que os militares aviadores sionistas podem oferecer é não ter afinidades com o governo democraticamente eleito que possui uma “visão messiânica”, além de uma política abertamente hostil e racista, imaginemos o que sente o povo palestino em relação às duas correntes. Esta situação está configurada desta forma porque os militares aviadores sionistas e tudo que eles representam (ou dizem representar) de fato não representam neste momento nada para o povo palestino.
Encerramos estes escritos oferecendo condolências à nossa querida jornalista palestina Bisan Owda. Ela informou pelas suas redes sociais que três de seus primos foram assassinados pelas bombas incendiárias dos sionistas. Que Deus em sua imensa misericórdia receba estes mártires e conforte seus familiares e amigos. Allahu Akbar!
Este artigo é a 22ª parte da série “Gaza, ano zero: as raízes do Holocausto do povo palestino”.
(*) Bernardo Kocher é professor de. História Contemporânea – Universidade Federal Fluminense