A declaração recente de Mark Zuckerberg sobre o fim da política de checagem de fatos até então vigente na Meta (Instagram/Facebook/WhatsApp) gerou bastante repercussão. Não sem motivo: seu discurso foi um explícito alinhamento político com a agenda de extrema-direita internacional, representado nominalmente na figura de Trump – mas também de Elon Musk. Zuckerberg indicou claramente o endosso à priorização dos interesses e do modelo político estadunidense, antagonizando abertamente a América Latina, a China e a Europa. De acordo com Zuckerberg, enquanto a Europa “tem um crescente número de leis que institucionalizam a censura, tornando difícil criar qualquer coisa inovadora por lá”, aqui na América Latina haveria “cortes secretas“, que ordenam companhias a “removerem conteúdos silenciosamente” – para bom entendedor, meias palavras… Já a China, por óbvio, “censurou os aplicativos [da Meta] em seu território”.
Em princípio, seu discurso se apresenta como um “retorno às raízes” de sua própria empresa, que seria o ideal de “dar voz às pessoas” através das mídias sociais. Então, apresenta sua autocrítica: justifica o abandono de suas antigas políticas de gestão de conteúdos – a checagem de fatos – como algo que tornou-se “político demais”. Por serem “sistemas complexos” de monitoramento em massa, mesmo uma parcela pequena de erros poderia incorrer na censura de milhões. O discurso de Zuckerberg aqui é escorregadio: ao mesmo tempo em que aponta tanto para a moderação automatizada, anuncia o fim do mecanismo de checagem de fatos, que funcionava a partir de especialistas organizados na Rede Internacional de Verificação de Fatos (IFCN), criada pelo Instituto Poynter.
Esse é seu discurso, uma aparente autocrítica voltada a princípios nobres e humanitários que tenta suavizar uma mudança política fundamental. A checagem de fatos seria substituída por uma política de “notas da comunidade”, citando como referência a adotada por Elon Musk no Twitter, o atual X. Apesar das mudanças serem de implementação imediata apenas nos EUA, a empresa já anunciou que eventualmente ocorrerão mudanças em outros países. O Ministério Pùblico Federal enviou na quarta-feira (8/1) um ofício à Meta, questionando se as mudanças serão aplicadas no Brasil, com um prazo de 30 dias para resposta. A própria Poynter publicou um artigo onde expõe o porquê desse novo sistema (de crowdsource) não funcionar – dentre os motivos, por ser experimental e (re)produzir (outras) notícias falsas.
Mais do que isso, em seu discurso faz a interpretação da recente eleição de Trump como “ponto de virada cultural para priorizar a expressão livre”. Zuckerberg escolhe falar especificamente em free expression, ao invés de freedom of speech – o que seria mais usual nesse caso. Faz sentido, tendo em vista que uma de suas redes nos interpela com a questão: “no que você está pensando?” Seu mercado é o da informação e o da influência – através da captura de expressões. Dentre outros pontos, temas como drogas e exploração sexual serão priorizados – ao mesmo tempo, promete menos regulação para temas como imigração e gênero para garantir que as pessoas possam “compartilhar suas crenças e experiências”. Seu foco parece ser retomar a confiança do eleitorado – digo, usuário – especialmente o de direita, e especificamente estadunidense, como podemos perceber pelos comentários do post em seu perfil no Instagram. Por fim, afirma uma aliança com Trump, e vê seu governo como oportunidade para “combater a censura globalmente”.
Sua presente aproximação de figuras do UFC, como o lutador brasileiro Alex Poatan, ganhou um novo sentido ao ser anunciado também recentemente que Dana White, presidente do torneio, será o novo conselheiro da Meta: trata-se de um dos mais notórios e influentes apoiadores de Donald Trump. O pronunciamento de Zuckerberg aponta não só para seu alinhamento com a extrema direita trumpista, mas também para uma participação ativa na tradicional política (e ideologia) intervencionista estadunidense na geopolítica global. Tudo isso torna-se ainda mais relevante se conferirmos o penúltimo pronunciamento de Zuckerberg em suas redes, aproximadamente um mês antes, onde anuncia empolgado as novidades quanto às “IAs de código aberto” da Meta, a atualizações do assistente Llama e suas expectativas em direção à Inteligência Artificial Geral, ou AGIs, no acrônimo em inglês.
Diferentemente dos modelos de Inteligência Artificial tratados em artigo anterior, as AGIs são um objetivo explícito de desenvolvimento das IAs a um nível humano – ou além do humano – de intelecção, inteligência e aprendizado. Apesar das definições e distinções entre inteligência, senciência e consciência serem turvas em geral e confusas nos discursos ideológicos sobre IAs, tratam-se fundamentalmente de programas hipoteticamente capazes de aprender de modo geral, não seguindo apenas princípios indutivos ou dedutivos, encadeamentos lógicos ou análises estatísticas massivas e automatizadas.
Desde o ano passado, Zuckerberg anunciou as AGIs como objetivo da Meta, entrando na corrida onde já encontrava-se tanto Google quanto a OpenAI, desenvolvedora do ChatGPT – essa última que tem uma definição muito mais objetiva das AGIs: “sistemas extremamente autônomos que superam humanos na maioria dos trabalhos com valor econômico”. Zuckerberg não apresenta uma definição tão direta: “Eu não tenho uma definição em uma frase, concisa. Você pode questionar se a inteligência geral é semelhante à inteligência de nível humano, ou se é como um mais-humano [human-plus], ou se é alguma superinteligência de um futuro distante. Mas, para mim, a parte importante na verdade é a amplitude disso, que é a inteligência tendo todas essas capacidades diferentes, onde você tem que ser capaz de raciocinar e ter intuição.”
Para além do sonho futuro das AGIs, há também o anúncio de um novo centro de dados para treinamento de IAs na Louisiana. O que talvez tenha passado um tanto despercebido foi o anúncio de um projeto para a construção de usinas nucleares voltadas ao suprimento energético no desenvolvimento de IAs, o que adicionaria de um a quatro gigawatts de capacidade nuclear aos EUA, projeto que a Meta pretende implantar por volta de 2030, juntando-se à tendência de investimento na energia atômica por parte das big techs, com gigantes como Microsoft, Google e Amazon. Entre o treinamento de IAs “realmente existentes” até o alcance das IAs gerais, existem não apenas impasses físicos, tecnológicos, matemáticos, mas também político-econômicos. O que farão tais gigantes?
Apesar de análises que apontam para a dimensão de engenharia social das Big Techs estarem corretas em muitos sentidos – especialmente ao alertarem sobre os efeitos subjetivos e ideológicos do processo de digitalização no capitalismo tardio –; e apesar de outras, que apontam para uma mudança na própria estrutura social – em uma nova era tecno ou neofeudal — estarem corretas na ênfase em uma virada radical do nosso tempo, talvez valha insistir que todas as chamadas big techs estão profundamente ligadas ao movimento do capital; que a organização do capital não se limita à sua forma industrial, mas estende-se ao capital financeiro e fictício; e que, no fim do dia, as big techs, que arquitetam algoritmos tão abstratos e de efeitos cada vez mais concretos e em larga escala, são também organizadas por abstrações fundamentais que percorrem da esfera da troca à valorização do valor; e seu poder deriva tanto dos efeitos objetivos e subjetivos que engendram no social quanto do seu “valor de mercado”. Ou, antes, ambos são inseparáveis.
Com isso quero apenas indicar que, para compreendermos o sentido das novas políticas da Meta recém anunciadas, precisamos não só compreender o alinhamento com a extrema-direita, mas o que a extrema-direita indica como movimento do próprio capital. A nova política de Zuckerberg aponta para uma aliança de intervenção imperial estadunidense a nível global, tendo as mídias digitais como espaço do acirramento – seja com a demagogia progressista liberal, seja com discursos críticos dissidentes –, dando adeus a qualquer ilusão de pacto social mínimo por parte de sua empresa, além de um evidente tensionamento geopolítico com China, América Latina e Europa. Obviamente, precisamos debater regulamentação das redes e soberania nacional, mas também questionar se o sentido das declarações de Zuckerberg seria realmente “pós-capitalistas” ou, antes, fundamentalmente orientado pelo capital em nosso atual momento histórico.
(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos — como o de Introdução a Lacan pelo estruturalismo e a teoria social, com início no dia 11/02/2025.