Quando o Olimpo bate continência
Relação das Forças Armadas com esporte é exemplo de sequestro orçamentário, em que Defesa não só usurpa recursos de outras áreas, como também as militariza
Aquela que nunca quis ser Afrodite, a deusa do amor e da beleza; e aqueles que não desejaram ser Apolo, o deus da lei e da ordem, acompanhado por suas ninfas, que atirem a primeira pedra. A história dos doze deuses que habitavam o Olimpo, repleta de assassinatos, torturas, traições e relações incestuosas, não é de conhecimento comum, mas o desejo de viver em um palácio sendo constantemente servido diz muito da cultura em que estamos submersos. Afinal, como uma geração inteira que cresceu assistindo Cavaleiros do Zodíaco poderia não almejar o Olimpo?
Chegamos então àquele momento do ano em que as famílias se reúnem em torno da TV para torcer por atletas brasileiros competindo em modalidades esportivas das quais nunca tinham ouvido falar. Aquela época em que o vovô bigodudo vai vibrar pelas meninas da ginástica artística, em que acompanharemos com apreensão o desempenho de países cuja localização não sabemos apontar no mapa, e, sedentários, contemplaremos corpos fortes e sarados que inspirarão os preparativos para o próximo verão. Ah, eu adoro as Olimpíadas!
Os jogos nascem como uma competição esportiva para a promoção da paz entre as cidades-estado gregas, e este espírito segue presente na modernidade. A própria bandeira do evento expressa essa intenção, com anéis de cores diferentes entrelaçados, representando a união dos diferentes continentes. Desde sua reorganização, no início do século passado, os jogos só não ocorreram em 1916, 1940 e 1944, em função das grandes guerras mundiais. Em 2020, os jogos foram adiados em decorrência da pandemia de Covid-19.
Isso não significa que os antagonismos tenham desaparecido. Durante a Guerra Fria, o embate EUA e URSS na tabela de medalhas ganhou contornos épicos mas, venhamos e convenhamos, melhor que a batalha ideológica ocorra nas quadras e na política, com as mãos longes dos artefatos nucleares recém inventados.
Breve chegarão também as continências no momento da entrega das medalhas e uma constatação: muitos dos atletas premiados são militares (em algumas competições, o percentil de atletas-militares beirou 70% do total de competidores tupiniquins!). Depois dos quatro anos de trapalhadas dos militares durante o governo Bolsonaro, a recuperação da imagem institucional que vem ocorrendo através do emprego de militares no enfrentamento às enchentes no Rio Grande do Sul terá sua cereja do bolo nos próximos dias: as continências no Olimpo.

Ginasta Arthur Zanetti é prata nas argolas nos Jogos Olímpicos 2016 no Rio.
(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
A dedicação das forças armadas ao estabelecimento da educação física na educação brasileira é inegável. Celso Castro lembra da busca pelo Corpore Sano entre os brasileiros como um ativo para a defesa nacional, “fazendo de cada corpo individual o corpo de um soldado, e com isso, forjando o corpo da Nação”. Como parte das mudanças na profissionalização militar de inspiração francesa, e parte das reformas que nascem na caserna mas que têm como objeto a nacionalidade, o Exército se engajou na inclusão da educação física de forma sistematizada e obrigatória no currículo escolar não como um lazer, ou um esporte, como é entendida hoje, mas sim entendendo o corpo como instrumento na guerra, objeto de ordem e disciplina. Foi responsável também pela formação dos primeiros professores civis da disciplina que, por sua vez, deveriam adaptar o método francês ao “temperamento latino”.
A invasão militar às escolas encontrou resistência na Associação Brasileira de Educação e de setores da Igreja, críticos ao método francês que tinha como objetivo final preparar, desde a infância, o corpo para o estado de guerra permanente em que se encontrava a Europa; situação muito diferente do Brasil, que deveria pensar a disciplina em outros marcos. Na polêmica, o então presidente do Brasil, Washington Luís, concordou com o Exército.
Posteriormente, a polêmica se concentrou em torno das ideologias fascistas e racistas que se vincularam à educação física enquanto um mecanismo de eugenia. Durante o Estado Novo, foi vedada a matrícula escolar a alunos que, por motivos de doença, não pudessem frequentar as aulas de educação física, legislação criticada pela Igreja como materialista e comunista (!), pois as fichas biométricas e os trajes de educação física estimulavam a promiscuidade dos sexos (Nota: contemporaneamente, as alunas de colégios militares seguem subordinadas a normas específicas de vestimentas para a prática de educação física, situação não estendida aos estudantes do sexo masculino).
Com o final do Estado Novo, a discussão sobre a educação física nas escolas tomaria outro rumo, mas no ambiente militar os testes físicos seguem assombrando candidatos aos concursos nas diferentes forças de segurança nacionais. Em que pese as exigências tecnológicas que a guerra do futuro traz para civis e militares, o corpo apto ao combate corpo a corpo através da infantaria segue necessário.
Na guerra, busca-se a espada que tudo corta, e o avião mais rápido que o som; mas também buscam-se os corpos que extrapolam os limites, heróis decaídos que coabitam com os humanos e, vez ou outra, são alçados ao Olimpo, ganham medalhas, e prestam continências.
Esse fantástico ativo de imagem é fruto do Programa de Incorporação de Atletas de Alto Rendimento às Forças Armadas Brasileiras (PAAR), criado em 2008, no segundo governo Lula, como uma parceria entre o antigo Ministério do Esporte e o da Defesa. O alistamento é voluntário e a seleção leva em conta resultados dos atletas em competições anteriores, ou seja, selecionam-se pessoas com uma carreira já anteriormente promissora. Os militares-atletas e os atletas-militares que integram o PAAR têm direito aos benefícios da carreira militar (do solto à assistência médica) e à utilização dos complexos esportivos vinculados às três Forças. Selecionam-se também atletas para as Paraolimpíadas, que não competem nos jogos militares.
Para as forças armadas, o programa foi um êxito logo de início em, ao menos, quatro dimensões. Em 2011, o Brasil sediou os Jogos Mundiais Militares, na esteira dos megaeventos recebidos pelo País, e conquistou pela primeira vez o topo no quadro geral de medalhas. Com isso, militares-atletas brasileiros conquistaram a admiração de seus pares em outros países ao redor do globo. Esses mesmos indivíduos, agora atletas-militares, disputam as competições gerais e, ao serem premiados, prestam continência, valorizando a instituição militar diante do público nacional. O site do próprio Ministério da Defesa admite tratar-se de um projeto com excelente retorno de imagem.
Além disso, as Forças não precisam assumir o ônus do investimento inicial para formar novos atletas nas diversas carreiras esportivas (nem deveriam, pois esta é uma atribuição da área esportiva do governo), pois são selecionados apenas aqueles que já apresentam potencial de vitória; e nem se questionar sobre o porquê da ausência de atletas de alto rendimento nas fileiras antes do programa, lacuna suprida com a convocação de militares técnicos temporários.
Em tese, esse seria um exemplo de jogo de ganha-ganha, pois o estímulo também é bom para os atletas, em particular aqueles praticantes de esportes menos conhecidos, que sofrem para se dedicar exclusivamente à carreira e para se preparar adequadamente para as competições. Ganha também a imagem do Brasil, que vê sua classificação subir no quadro final de medalhas, ainda que não exista correlação direta entre o desempenho de um país nas Olimpíadas e a relação que seu povo estabelece com a prática esportiva.
Na prática, é um bom exemplo de sequestro orçamentário, hábito corrente entre as forças armadas para as quais Jorge Rodrigues constantemente alerta, através da qual recursos pertencentes à área esportiva são descentralizados para o Ministério da Defesa que, ao executá-los, não apenas usurpa atribuições de outras áreas, mas também militariza sua condução, amplia o poder militar dentro do Estado brasileiro e dificulta o controle político sobre a corporação. Aqui entre nós, uma picuinha: é curioso que o centrão não dispute essa parcela orçamentária.
Voltando aos Cavaleiros do Zodíaco, não deixa de chamar a atenção que uma legião de lutadores ligados aos diferentes signos tenha se reunido para libertar a deusa Atena, logo ela, a deusa da sabedoria e da estratégia, uma guerreira que já nasceu armada com um escudo e um capacete, pronta para lutar pela justiça, mas sem o espírito belicoso e o temperamento selvagem do irmão, Ares, deus da guerra. Ao abocanhar estrategicamente o desempenho olímpico brasileiro, as forças armadas dão uma boa lição de saberem bem a que deusa devem servir. A vitória na guerra e na política não derivam de maior poderio bélico, mas da capacidade adequada de escolha estratégica.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.