Quando teremos eleições livres?
Num país econômica e socialmente desigual, práticas como negociação de votos seguem prática corrente nas eleições
Estamos nos calores que precedem as eleições municipais, que ocorrerão neste domingo (6) nos municípios brasileiros, chão da vida de cada um de nós. Quem atua nas campanhas eleitorais sabe que a última semana é crucial: é nela em que as possibilidades de cada candidatura se fortalecem ou desmancham.
Nas cidades pequenas, grande maioria no Brasil, os dias anteriores ao pleito se transformam numa festa. Aquelas ruas mais silenciosas ficam cheias de gente nas calçadas, sentada em cadeiras, janelas e portas abertas, luz acesa, crianças brincam na rua ao olhar dos adultos. O cenário muda completamente.
E por que isso acontece? Seria a ansiedade para votar, para participar da grande festa da democracia?
Infelizmente não.
As eleições são um momento da vida em sociedade em que parte dos eleitores oferta seu voto em troca de um benefício, e ao mesmo tempo uma parte dos candidatos e das candidatas faz oferta de benesses em troca desse voto. Há venda e compra de votos.

Rio de Janeiro (RJ), 01/10/2024 – Coletiva de imprensa, no Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), sobre as eleições municipais com as participações da diretora-geral Eline Íris, e do secretário de Tecnologia da Informação Michel Kovacs, no Palácio da Democracia, centro da cidade.
(Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
A prática obviamente é vedada pela legislação brasileira, que tem como premissa a liberdade na escolha do voto e a igualdade de oportunidades entre os candidatos nas eleições.
Se um candidato oferece um benefício que possui ou administra num determinado momento da vida em troca de voto, ele sai na frente de outro que não tem a mesma condição. Dito de outra forma, ele não segue as regras do jogo, trapaceia para conseguir ser eleito.
Se uma pessoa oferta seu voto em troca de um benefício, provavelmente ela não esteja escolhendo o candidato que vai atuar para melhorar sua qualidade de vida, e sim resolvendo uma questão prática pontual, talvez esteja desistindo de decidir seu futuro e apenas tratando do presente, da sobrevivência.
A legislação eleitoral repele essas práticas, mas elas continuam a assombrar o dia a dia do processo eleitoral brasileiro. E mais, há investigações que indicam possíveis crimes eleitorais em curso.
Está na ordem do dia da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, por exemplo, o suposto envolvimento da primeira-dama da capital, bem como de vereadora, com integrantes do crime organizado, numa possível troca de votos por cargos públicos. A investigação acontece no âmbito da Justiça Eleitoral paraibana, que está avaliando a suposta prática de crimes de aliciamento violento de eleitores. A acusação é de que há a troca de benefícios, de cargos públicos por garantia de votos, usando-se de uma associação de bairro e de chefes do tráfico como forma de intermediar essa relação entre candidatos e eleitores, de forma violenta. Ressaltando desde já o direito das acusadas de se defenderem amplamente e de terem a garantia do devido processo legal, ou seja, de tratar-se de investigação em curso sem decisão final de mérito, causa estranheza o tipo de conduta avaliado.
Percebe-se uma escalada dos benefícios que se investiga serem oferecidos pelos candidatos aos eleitores. Percebe-se também uma alteração na forma de troca e dos meios empregados investigados: de forma consensual para a possível forma violenta, coercitiva, extorsiva, criminosa.
Não quero aqui deslegitimar todo o processo eleitoral em curso e os candidatos e candidatas que foram eleitos nas últimas eleições. Há certamente a hegemonia do voto escolhido por preferência pessoal. Mas quero chamar atenção para esse desvirtuamento do processo eleitoral, que pode evitar um segundo turno das eleições ou que pode resultar em votos a mais que, numa cidade pequena com apenas o primeiro turno, pode decidir uma eleição. Essas práticas históricas do voto de cabresto muitas vezes culminam em resultados ilegítimos para a Prefeitura e para a Câmara de Vereadores.
Eleições livres são ainda um paradigma a ser alcançado, o qual a Justiça Eleitoral, órgão alçado ao papel de regulador e fiscalizador dos pleitos, vem atuando para conseguir, mas ainda não demonstrou conseguir atingir, por razões variadas.
Embora haja procedimentos investigatórios, processos judiciais, ações penais, ações de investigação judicial eleitoral, representações por captação ilícita de sufrágio, recursos contra a expedição de diplomas sendo processados e julgados, a repercussão desses no cenário eleitoral ainda não consegue frear esses ilícito e outros crimes antes da ocorrência da apuração das eleições. E mesmo que as normas estejam mais rígidas quanto ao controle das propagandas, dos atos e dos gastos de campanha, a reprimenda não necessariamente leva ao expurgo daqueles que tratam as eleições como um balcão de negócios individuais, sem projetos coletivos de enfrentamento das desigualdades sociais, de execução das políticas públicas e de distribuição de renda.
É importante ressaltar que a mudança vai para além das instituições, merece debates permanentes da sociedade brasileira, porque envolve alterações nas formas de agir e de discutir a política partidária e eleitoral no país.
(*) Renata Martins Domingos é advogada, Mestre em Direitos Humanos e já trabalhou em várias campanhas eleitorais assessorando juridicamente as candidaturas. Também já foi gestora pública e exerceu o cargo de Secretária de Saúde da Prefeitura do município de Conde, na Paraíba (2017-2020).