Quem é, e o que significa, o novo vice de Donald Trump?
Escolha de J.D. Vance ocorreu após atentado do qual Trump escapou por um triz. Depois de estranha demora, opção tem muitas camadas e nuances, inclusive a sombria personagem de Peter Thiel
Durante os quatro anos da presidência de Donald Trump, Mike Pence foi um vice-presidente relativamente leal – e, o que é mais importante: não representou nenhuma ameaça aparente ao então presidente. A relação entre os dois azeda com a postura ambígua de Pence na invasão do Capitólio, jamais realmente perdoada por Trump. Naturalmente, com a volta do republicano ao jogo consolidada, ele certamente escolheria um companheiro de chapa, mas quem?
Trump, contudo, atrasou o quanto pode a escolha de seu vice, algo sempre tratado como uma escolha unipessoal do candidato na tradição norte-americana. Originalmente, era dito que essa decisão seria anunciada apenas na convenção republicana, finalizada como planejado no último dia 18, mas o atentado sofrido no último sábado, dia 13, forçou um anúncio antecipado: J.D. Vance, senador por Ohio, era o homem.
Vance já tinha seu nome cogitado junto com os senadores Marco Rubio, da Flórida, Tim Scott, da Carolina do Sul, ou o governador da Dakota do Norte, Doug Burgum, mas não deixa de ser uma escolha surpreendente. Mais jovem entre os pleiteantes, Vance tem metade da idade de Trump e é um quadro orgânico da intelectualidade da nova direita americana, mas sobretudo é alguém interno à fração mais poderosa da oligarquia que apoia o ex- presidente.
Para muito além de simplificações, Vance é uma das muitas estrelas da onda de direita que nasce na oposição a Obama, mas nem sempre foi trumpista. Aliás, muito pelo contrário: suas muitas declarações bombásticas contra Trump foram, inclusive, utilizadas contra ele na recente campanha de bastidores para ser vice. Embora tenha se tornado trumpista em 2022, e se desculpado, é um grande mistério o incomum perdão de Trump. Eis aí a chave da história.
Vance, quadro orgânico de Peter Thiel
Donald Trump expulsou Mike Pence do Olimpo por muito menos do que ser chamado de “idiota cínico” ou “Hitler da América” – como Vance fez. A incontornável e mitológica impiedade do ex – e pretendente a futuro – presidente norte-americano parece ter encontrado limites nas relações reais de poder. Uma boa pista é a proeminência do invisível evidente na nomeação de Vance: Peter Thiel, uma figura-chave da nova direita americana.

O atentado a Trump forçou um anúncio antecipado: J.D. Vance (foto), senador por Ohio, era o homem. Ele participou do Never Trump e era empregado de Peter Thiel, alemão radicado nos EUA com passagem pela África do Sul dos tempos do Apartheid
Vance gosta de ostentar junto ao grande público o mito do garoto pobre, vindo de um lar desagregado, que cresceu na vida – uma forma de se gabaritar junto ao eleitorado-chave do antigo cinturão do aço, hoje chamado de cinturão da ferrugem, isto é, os velhos estados industriais do norte e do meio-oeste, agora decadentes e desindustrializados. Mas uma parte importante da sua história está na relação com a oligarquia norte-americana, sobretudo Thiel.
Nesse sentido, Vance se torna uma celebridade nacional quando escreve Hillbilly Elegy (2016), best-seller que conta sua história pessoal, lançando uma nada inocente visão conservadora sobre o processo de decadência da região onde nasceu e cresceu – muito embora tenha sido escolhido pelo New York Times como um dos seis livros que explicam a vitória de Trump, Vance participava do Never Trump e era empregado de Thiel.
E aí chegamos a Peter Thiel. Alemão radicado nos Estados Unidos, mas com uma passagem na África do Sul dos tempos do apartheid. Ele estudou Filosofia, antes do Direito, sempre esteve próximo do libertarianismo e da defesa radical do capitalismo, ascendendo como co-fundador do PayPal até chegar na Palantir, uma poderosa corporação fornecedora de software para a inteligência norte-americana.
Thiel transformou Vance em seu protegido, o financiou e serviu como mentor, sendo responsável pelo encontro de 2021 com Trump, na casa de Mar-a-Lago. Foi lá que ocorreu a “conversão” de Vance ao trumpismo – tanto mais uma aliança de conveniência, que ajudou o jovem a vencer na eleição ao senado em 2022, por Ohio. Thiel em 2016 apoiou a pré-candidatura de Carly Fiorina, mas com a desistência dela, logo aderiu a Trump.
Até então, Thiel era financiador e entusiasta da ala libertária dos republicanos, endossando em 2007 a candidatura de Ron Paul, que sempre andou junto com uma postura isolacionista e com ideias de livre-mercado radical. Encontra o rude Trump como um instrumento político viável para suas muitas ideias – e suas poderosas relações no Vale do Silício, onde é conectado mais diretamente a CIA, que financiou a Palantir em sua fundação, o que é um dado público.
Trump e o establishment
Donald Trump e toda a nova direita do Partido Republicano repetem um script global: se apresentam como figuras de fora do sistema e de ruptura, o que normalmente é endossado, no elogio e na crítica, pela mídia dominante – enquanto posições, movimentos e partidos de esquerda são desacreditados e reprimidos. Nesse cenário, não é de se espantar que a extrema direita global tenha se tornado sinônimo de questionamento à ordem.
Nada de novo sob o sol, uma vez que o fascismo clássico surgiu da mesma forma, mimetizando a esquerda revolucionária em uma espécie de engenharia reversa. É claro que qualquer observador atento sabe, e não precisa estudar muito, que a disposição antissistêmica de Benito Mussolini e Adolf Hitler era tão verdadeira quanto uma nota de US$ 37. Com Trump, Le Pen, Bolsonaro ou qualquer outro líder, se passa algo parecido.
Bilionário e figura ligada a toda sorte de negociatas, Donald Trump surfou na onda de reacionarismo dos anos Obama, usando de seus talentos de comunicador para destruir um a um seus rivais internos. A onda em questão juntava a revolta de trabalhadores falidos na crise financeira de 2008 e 2009, o racismo estrutural da sociedade norte-americana diante de um presidente negro – e as tantas falhas e traições desse mesmo Obama.
Trump chegou ao poder dando o golpe de misericórdia no velho Partido Republicano, empurrando para o abismo a pré-candidatura de Jeb Bush e vencendo a multidão de demagogos de extrema direita com quem competia para ser candidato em 2016. Depois, bastou contar com a arrogância e soberba dos democratas, que escolheram a candidata menos competitiva, Hillary Clinton.
É óbvio que, uma vez no poder, Trump jogou para a fração da oligarquia norte-americana que o elegeu, mas ele esteve fora do domínio direto dela – ou de seus atores principais. Para 2024, contudo, a coisa muda com a entrada do jovem Vance para dentro da chapa presidencial, o que é dizer que Peter Thiel estará, para todos os efeitos, dentro da Casa Branca. O Trump que xingava o “establishment”, no fim, se agarrou a ele.
O adversário de Trump, o incumbente Joe Biden, simplesmente afiançou seu mandato à guerra na Ucrânia, que teve custos desastrosos para a economia e a estratégia global norte-americana. Agora vive à sombra de uma campanha subterrânea, mas nada discreta, para fazê-lo renunciar à candidatura. Porém, no cenário atual, quem caminha para a vitória é um Trump que lidera as pesquisas há tempos, mas entrará na disputa castrado e no cabresto.
Muitos liberais lerão essa informação como algo positivo, por ingenuidade ou falta completa dela, mas o fato é que esse novo velho Trump estará condicionado a uma estratégia de direita mais agressiva, inteligente e poderosa. Thiel, que estudou o pensamento de René Girard, sua obsessão por J.R.R. Tolkien, de onde tira os nomes de muitas de suas corporações, e sua relação com o pensamento capitalista radical de Ayn Rand, é um homem do sistema.
Quando muitos pensam na proeminência de Elon Musk, em evidência pela compra do Twitter, suas polêmicas e ações de marketing, muitas vezes é Thiel a figura nas sombras. A estratégia é clara: se livrar da insensata guerra na Ucrânia e apostar todas as fichas em uma disputa existencial contra a China, que tem de parar de investir em alta tecnologia – o que faz de forma muito mais eficiente que os Estados Unidos.
J.D. Vance é, portanto, algo mais do que um peão, talvez um cavalo, na estratégia da banda direita do Vale do Silício em manter as rédeas da hegemonia tecnológica do mundo, o que vem junto de uma dose cavalar de imperialismo, controle de fontes de lítio e teorias de extrema direita acerca da manutenção do “Ocidente”, sob a liderança norte-americana, como matriz de imaginação do mundo. Sim, isso é pior do que o trumpismo até agora.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.
