A passagem dos anos 1990 para 2000 foi marcada por grande empolgação tecnológica com a nova “esfera pública” digital que era projetada no novo milênio: ao invés da organização midiática anterior, que estabelece uma relação fundamentalmente passiva com o espectador, a internet e seu tecido digital foram alvo de especulações sobre uma nova era de interatividade. Com a infraestrutura digitalizada, uma nova dinâmica ganhava a cena. A integração virtual de diferentes espaços ao mesmo tempo nos permitiria participar mais ativamente nessa suposta esfera pública digitalmente arquitetada, o que levou a imaginação de alguns até o vislumbre de uma democracia digital — mais participativa, mais inclusiva —, em uma espécie de “cibercidadania“. Próximo de completar um quarto de século, tal vislumbre parece uma ilusão antiga.
A justaposição entre passividade dos espectadores e interatividade dos usuários precisa ser repensada. Desde os anos 90, teóricos como Robert Pfaller e Slavoj Žižek já percebiam os limites dessa dicotomia — e propuseram uma leitura contraintuitiva da questão através do conceito de interpassividade, apresentado por Pfaller. Contra a passividade ou a interatividade, esse conceito implica em uma nova condição que nos leva à falsa interação, à pseudo-atividade e, não menos importante, à perda gradativamente mais incontornável da própria possibilidade de uma passividade autêntica. É verdade que o famoso exemplo usado por Žižek é anterior à era da interatividade digital: ele chama atenção para o surgimento da “risada enlatada” — ou seja, gravada —, utilizada em séries de comédia desde os anos 1950 para compor ou até substituir a platéia em programas televisivos, que indicaria a presença de um mecanismo cultural de delegação da atividade ou do engajamento a outrem, seja uma pessoa ou um objeto externo (como é o caso das carpideiras ou das rodas de reza tibetanas). Assim, com a risada enlatada, a própria televisão me avisa a hora de rir — ou mesmo ri por mim — independente da minha atenção ou engajamento com o programa.
Assim, para o filósofo esloveno, esse mecanismo demonstra que é possível delegar a risada ou o choro, “terceirizando” — através de um outro — a externalização de nossas próprias emoções. Além disso, essa estrutura também se sustenta para as crenças: para que sejam socialmente operantes, não é necessária a presença ou existência de um “crente de verdade”, daquele que acredita diretamente em algo, basta apenas a pressuposição da existência de tal crente: ou seja, basta acreditar que alguém acredite (de tal maneira, em tal coisa, etc).
Essas configurações de interpassividade não possuem um diálogo ainda mais atual com a arquitetura das redes e sua circulação de conteúdos atualmente? Pensemos nas plataformas mais utilizadas atualmente: TikTok, Instagram, Youtube, Twitch. Em todas elas encontramos a tendência de formatos que exploram cada vez mais a interpassividade, por exemplo nos chamados reacts: ao invés de interagirmos e reagirmos nós mesmos aos conteúdos diretamente, assistimos à reação e interação de um terceiro. Nos formatos de vídeos curtos é cada vez mais comum encontrarmos a extrapolação disso, com uma pessoa cuja única “função” é apontar para aquilo que está sendo exibido, reagindo ao conteúdo com expressões e gestos. Além dessa delegação das reações, encontramos também certos modos de delegação do pensamento: influenciadores tornam-se “formadores de opinião” e servem cada vez mais à função de dizer ao seu público o que achar de determinada situação, assunto, produto, etc. Com o avanço e popularização de tecnologias como inteligências artificiais, amplia-se também a possibilidade de delegação da leitura e da escrita, assim como a criação de imagens e outros conteúdos. Com o processo de automação de tais processos, amplia-se por sua vez o campo de atividades que podem ser delegadas.
O que isso indica sobre as formas e efeitos da mediação de emoções, crenças e opiniões por plataformas digitais — além de nossa própria relação com o que consumimos e até mesmo produzimos? Primeiro, encontramos um horizonte de fim da passividade: estamos sempre online, ou seja, sempre “interagindo”, nos relacionando passivamente com uma estrutura de dadificação — ou seja, que transforma virtualmente qualquer coisa em dados — e fornecendo uma espécie de “trabalho opaco” para a estrutura maquínica. Isso quer dizer que momentos de passividade real são cada vez mais raros, a subjetivação promovida pela digitalização não produz simplesmente um sujeito olhando passivamente para a tela e consumindo seu conteúdo, mas um sujeito que está sempre não-passivo, mesmo que sua inação seja à partir da delegação de uma atividade a um aplicativo, influencer, inteligência artificial — além de estar fornecendo constantemente matéria prima para as estruturas digitais, a saber, informação. Estamos constantemente contribuindo para a valorização das plataformas que utilizamos, além de estarmos sempre ampliando a complexidade informacional das inteligências artificiais que automatizam operações como a curadoria dos conteúdos que surgem para nós nas redes.
Aliás, ainda no campo da delegação de atividades, é fundamental atentarmos para esse aspecto central das plataformas digitais: a seleção do que aparece para os usuários é automatizada de acordo com o perfilamento de indivíduos e grupos desde suas interações online. Dentre tantas implicações relativas a esse tipo de automação da curadoria de conteúdos, cabe aqui apontarmos como a própria escolha do que consumimos enquanto conteúdo é delegada a uma espécie de automação das escolhas que implica tanto a redução das complexidades quanto um cálculo de previsibilidade, além da delegação dessa própria seleção de conteúdos. Essa dinâmica produz também uma endogamia de identificações, gostos, opiniões, onde os conteúdos são orientados por princípios que fomentam a exclusão das diferenças, as chamadas bolhas, câmaras de eco, vieses de confirmação, etc.
Também encontramos, com certa metrificação inerente às plataformas digitais, uma nova dinâmica de consideração da relevância que tem uma qualidade ambígua e duvidosa, com os dados sobre número de seguidores, interações em uma postagem, compartilhamentos, visualizações funcionando como indicativos de impacto e alcance. As chamadas fake news são afetadas por essa dinâmica, na medida em que ganham impacto pela visualização, que por sua vez passa a ser um indicativo de que alguém acredita no conteúdo em questão. Considerando a estrutura da crença por uma dinâmica interpassiva, a própria suposição (de um sujeito que acredita) é suficiente para fazer com que determinada crença passe a operar: independente do sujeito que de fato crê diretamente em determinado conteúdo, a suposição da crença engendra sua própria efetividade.
Além disso, a quantidade de seguidores propicia um novo tipo de status — como vemos, por exemplo, com o mercado de influenciadores digitais — de tal maneira que até mesmo a venda de likes e seguidores torna-se um serviço disponível, e a própria relevância digital passa a ser artificialmente produzida. Em uma estrutura que produz o imperativo de ampliação do alcance e das interações como objetivo principal, fomenta-se também o apelo a qualquer tipo de estímulo para desencadear uma resposta imediata: gerar nojo, revolta, choque, indignação, repulsa, passam a ser estratégias de engajamento para a viralização de conteúdos. Dessa maneira, a própria produção do que circula nas plataformas digitais é condicionada por essa dinâmica, tornando o ridículo e o absurdo cada vez mais normalizados e aceitáveis, na medida em que passam a compor a paisagem digital como parte constitutiva e consequência direta de sua própria lógica.
Os efeitos dessas culturas digitais já demonstram consequências nas subjetivações: cada vez mais esses espaços propiciam a formação de uma estrutura solipsista da crença, que se origina de uma subjetividade cada vez mais autocentrada em sua própria experiência, sensação, sentimento, produzidas em uma cultura do hiperestímulo. Junto disso, a atenção torna-se um asset fundamental de um mercado em alta expansão. As consequências futuras desse processo não podem ser plenamente antevistas mas, dadas as características de nosso tempo, devemos pressupor que a tendência é vermos a radicalização das tendências que foram observadas. Com a progressiva delegação da crença, dos gostos e das opiniões, organizada em uma estrutura com princípios como de mercado — da influência, da atenção e dos dados —, é cada vez mais necessário e urgente engajarmos em uma crítica da digitalização.