Recentemente, em seu pronunciamento em rede nacional, o presidente Lula disse: “Não abrirei mão da responsabilidade fiscal. Entre as muitas lições de vida que recebi de minha mãe, dona Lindu, aprendi a não gastar mais do que ganho. É essa responsabilidade que está nos permitindo ajudar a população do Rio Grande do Sul com recursos federais. Aprovamos uma reforma tributária que vai descomplicar a economia e reduzir o preço dos alimentos e produtos essenciais, inclusive a carne.” Um discurso certamente impactante na medida em que compara sua história de vida e superação com os feitos em seu terceiro governEntretanto, apesar do apelo retórico nesta comparação de gastos familiares com gastos públicos, há um sintoma bastante importante por trás: a austeridade fiscal.
Desde o governo de Dilma Rousseff a linguagem da austeridade fiscal, usada na Europa a partir da crise internacional de 2008 como instrumento ideológico para desmontar o Estado de Bem-Estar Social e ampliar a penetração do capital financeiro nos serviços públicos, tem sido amplamente empregada no Brasil. Não por acaso, em 2010, o dicionário Merriam-Webster’s, um dos mais importantes da língua inglesa, elegeu a palavra “austeridade” como a palavra do ano com base no número de pesquisas que a palavra gerou na internet. Como bem expõem Rossi, Dweck e Arantes, a “a austeridade é a política que busca, por meio de um ajuste fiscal, preferencialmente por cortes de gastos, ajustar a economia e promover o crescimento”. Sendo muito comum o uso, nos discursos que fomentam esse tipo de política, a comparação entre orçamento público com o orçamento doméstico.
Há pelo menos três aspectos essenciais pelos quais não faz sentido este tipo de comparação. O primeiro é que o governo, diferentemente das famílias, tem a capacidade de definir o seu orçamento: isto é, a Dona Lindu não tinha como escolher o quanto vai receber por mês, mas o governo federal sim. O segundo aspecto que distingue o governo das famílias é que, quando o governo gasta, parte dessa renda retorna sob forma de impostos, inclusive o governo precisa gastar para pôr moeda em circulação e fomentar a economia. O terceiro aspecto é que as famílias não emitem moeda, não tem capacidade de emitir títulos de dívida em sua própria moeda e não definem a taxa de juros das dívidas que pagam.
No plano econômico, o que embasa a austeridade fiscal é um determinado pressuposto de que o setor público e o setor privado disputam recursos e que uma redução do gasto público abre espaço para o investimento privado. Dada uma suposta maior eficiência do gasto privado, a contração do gasto público geraria um aumento ainda maior do gasto privado. A austeridade teria, portanto, a capacidade de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e retomar o crescimento econômico. Não fosse o fato de que não há qualquer comprovação disso, como inclusive adverte o Relatório de Comércio e Desenvolvimento 2010 da UNCTAD: “Há um alto risco de que a retirada dos estímulos fiscais antes do retorno do forte consumo e investimento interno prejudicará a recuperação econômica”.
Entretanto, por mais que os riscos tenham sido anunciados, se percebe o aprofundamento das estratégias conservadoras de política econômica, cujo destaque é a austeridade fiscal – na tentativa de assegurar sustentabilidade e legitimidade no poder – na medida em que aumenta o processo de delegação ao capital privado, dos serviços prestados pelo Estado e corta gastos que afetam drasticamente direitos sociais e a renda das e dos trabalhadores. Nota-se que a política social, que já foi considerada emblemática dos governos petistas, perdeu seu posto de mecanismo econômico de sustentação da demanda agregada e do crescimento.
Em 2015, o governo promoveu o maior contingenciamento na autorização orçamentária desde o início da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000. Esse esforço fiscal tem como motivação a necessidade de atender às exigências do capital financeiro e do rentismo, que continuam se impondo ao atual governo, pedindo por equilíbrio nas contas públicas para seguir tendo os pagamentos dos juros da dívida pública. Assim, um processo que se iniciou lá no segundo governo Dilma se aprofunda com aprovação da Emenda Constitucional nº95 (o Teto de Gastos) pelo governo golpista de Temer e ganha uma nova face com o Novo Arcabouço Fiscal.
O Teto de Gastos mostra a força deste projeto que, em nome do discurso de austeridade fiscal e de uma suposta falência do Estado, facilita as condições de apropriação do fundo público pelo grande capital. E o Novo Arcabouço Fiscal, que poderia ser a completa derrocada do Teto de Gastos do Temer, na verdade constitui-se em modelo mais brando da mesma ideia central: a de que os gastos do governo devem ser limitados por um determinado percentual e não pelas necessidades da população. Não inesperadamente, o orçamento das universidades federais para 2024, comparando com 2023, sofreu um corte de 310,3 milhões. Em 2023, o orçamento foi 6,2 bilhões, em 2024, 5,9 bilhões. Alguém acha que as universidades públicas já estão na sua mais completa excelência, de modo que possam ter seus recursos diminuídos? Mais grave ainda é a possibilidade que um governo de centro-esquerda, em prol da suposta “responsabilidade fiscal”, veja como necessária a revisão dos mínimos constitucionais nos gastos com saúde e educação, uma vitória democrática e cidadã registrada da Constituição de 88.
A privatização, a austeridade fiscal e as mudanças na gestão orçamentária são ferramentas importantes para permitir a canalização de recursos públicos para o grande capital, de modo a garantir a acumulação capitalista. Os recursos públicos ganham importância cada vez maior para sustentar as taxas de lucro, reforçando seu papel estrutural na dinâmica de acumulação. Assim, derrotar a austeridade fiscal é uma batalha extremamente importante, e a esquerda não deve abrir mão dessa luta. É necessário que as ideias de metas e responsabilidades sociais assumam o lugar de destaque dos discursos, mostrando que o comprometimento é com o povo e não com o grande capital, que já abocanha uma grande parte dos recursos públicos via privatizações, parcerias público-privadas, desonerações fiscais, etc. A responsabilidade da qual o presidente Lula deveria se comprometer em rede nacional é com a ampliação de direitos sociais e pleno emprego baseado em trabalho formal, de qualidade e sem jornada 6×1.
(*) Bianca Valoski é doutoranda no Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da UFPR, dentro da linha de pesquisa em Economia Política do Estado Nacional e da Governança Global. É servidora da Câmara Municipal de São José dos Pinhais, onde trabalha com finanças públicas.