O governo de Jair Bolsonaro, marcado por ataques à cultura e à arte desde a campanha eleitoral, sugeriu a quebra do contrato da Cinemateca Brasileira com a ACERP (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto), que administra a instituição desde 2018. Mesmo que o contrato ainda vigore, a instituição já sofre com cortes nos financiamentos e vê seu futuro comprometido. Em face desse cenário, uma das ações tomadas pela classe artística foi o lançamento manifesto “SOS Cinemateca”, redigido pela Associação Paulista de Cineastas (APACI) e endossado por mais de setenta associações nacionais e internacionais.
A Cinemateca Brasileira, em São Paulo, é a maior responsável pela preservação e restauração da memória brasileira em audiovisual. Ali estão armazenados 250 mil rolos de filmes (entre curtas, médias e longas), clássicos do cinema nacional, registros jornalísticos, televisivos e registros não profissionais, datados desde o início do século XX; além de documentos, fotos, cartazes, cartas e outros registros. Há também um acervo de pesquisa e imagens, desde arquivos oriundos da extinta Rede Tupi a materiais dos antigos estúdios Atlântida, a primeira indústria cinematográfica brasileira – totalizando um acervo de mais de um milhão de documentos.
A memória de grandes artistas que foram marco em nossa trajetória estão depositados sob a cuidados da instituição, como os filmes e documentos de Glauber Rocha (“Terra em Transe”, 1967), Rogério Sganzerla (“O Bandido da Luz Vermelha”, 1968), Helena Solberg (“Banana Is My Business”, 1995), Nelson Pereira dos Santos (“Rio, 40 graus”, 1955), Mário Peixoto (“Limite”, 1931), entre outros. São essas pessoas, nomes de movimentos cinematográficos de vanguarda que marcaram a maneira de pensar de diversas gerações, que representaram nosso país nos mais importantes festivais de cinemas pelo mundo.
Não é de conhecimento geral, mas o dedicado trabalho da Cinemateca na preservação de nossa história é reconhecido mundialmente, classificada em quinto lugar no ranking mundial em favor aos serviços prestados à sociedade brasileira, latino-americana e mundial. Esse espaço, que hoje é a casa do cinema brasileiro, é uma conquista de décadas de história de luta para manter em segurança o que podemos reconhecer com parte de nossa identidade.
Assim, com o desmonte da Cinemateca, está em risco o trabalho de diversos profissionais do setor – que já não recebem seus salários desde a última mudança de governo – e o acervo da Cinemateca, que está armazenado em salas frigoríficas e corre o grave perigo de sofrer incêndios assim que essas salas sejam desligadas. Isso porque muitos dos filmes guardados são autocombustores devido sua composição, o que já ocasionou outros incêndios durante a história da Cinemateca.
O neoliberalismo bolsonarista, a cultura e a memória brasileira
O avanço do projeto neoliberal no Brasil tem como seus principais inimigos a educação, a saúde e a cultura. Os constantes descasos e ataques contra esses setores são acompanhados de cortes orçamentários, justificados pela crise econômica. A cultura tem sido um alvo constante no governo Bolsonaro, sua agenda política caracteriza essa classe como promotores de “doutrinação comunista”, com objetivo claro de desqualificar o pensamento crítico promovido. O desmonte da Cinemateca tem como tarefa calar as inúmeras histórias e vozes contadas pelo audiovisual brasileiro. Significa também um grande ataque à memória da América Latina, como nós latino-americanos contamos nossa história.
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Cinemateca Brasileira: maior responsável pela preservação e restauração da memória brasileira em audiovisual
A preocupação é cabível, pois em 2018 vimos o incêndio do Museu Nacional, que transformou em cinzas mais de 200 anos de história. A mais antiga instituição científica do Brasil concentrava toda a produção científica do país e, até 2018, era considerado um dos maiores museus de história natural e de antropologia das Américas. O descaso com a ciência contribuiu para queimar o conhecimento do Brasil. Muitas coleções viraram pó. As pesquisas sobreviventes trazem informações e dados, mas a perda do acervo é irreparável. Deste modo, pode se dizer que se trata do epistemicídio das materialidades e imaterialidades presentes em cada peça de cada coleção que compunha o acervo do Museu Nacional.
Todavia, é preciso entender esse ataque para além de um corte orçamentário a uma classe identificada como inimiga, mas sim como a ação de um projeto de poder fundamentalista cristão que atravessa da cultura à política externa brasileira. O cinema e as demais produções audiovisuais são capazes de projetar poder – conhecido como soft power ou poder brando (NYE) -, e influenciar indiretamente o comportamento ou interesses de outros corpos políticos por meios culturais ou ideológicos. Esse instrumento de poder foi constantemente utilizado pelos EUA para aumentar seu poder político e comercial: a hegemonia norte americana foi construída no século XX por meio do cinema de Hollywood, a arte foi utilizada como uma ferramenta de transmissão de valores, consumo e até de democracia. Mais recentemente, a Coreia do Sul também avança no mercado internacional com suas produções cinematográficas utilizadas como soft power.
O comando da área cultural do país está, de forma irresponsável, sob o domínio daqueles que desprezam a ciência e são descompromissados com a história. O assassinato dessa memória, tão necessária para se entender o presente ao resgatar os anos regressos, não transforma em cinzas apenas os rastros e registros da colonização portuguesa ou das belezas naturais do país, mas impossibilita a construção de muitos mais conhecimentos científicos que poderiam ser gestados a partir dali e entregues ao mundo. Preservar acervo é, também, guardar narrativas da história do país. É guardar da melhor forma possível, mas é também dar a conhecer a memória de tempos pretéritos. Quando o acervo é entregue ao país e ao mundo é dado o direito à memória; é pôr a público esse acervo, essa memória, pois estes possibilitam reflexão e são responsáveis pela educação das pessoas. A memória institucional e a memória de pessoas que fizeram doação ao museu também foram queimadas, apagadas e silenciadas.
A Cinemateca Brasileira é referência de acervo e restauração no mundo. Ao destruir esse local, que história eles querem apagar? Hoje, o Brasil de Bolsonaro se torna um aliado subordinado a projeção de poder norte-americana, não há participação ativa do Brasil nessa política externa, somos mais um consumidor do projeto de poder imperialista dos EUA. É preciso lembrar que nossa memória e cultura são elementos centrais para que a sociedade brasileira possa reconstruir o Brasil pós Bolsonaro. Dessa forma, SALVE A CINEMATECA!
Amanda Harumy é professora de Relações Internacionais e doutoranda do PROLAM – USP; Andrea Rosendo é jornalista, doutoranda do PROLAM-USP e pesquisadora nas áreas de Comunicação, Cultura e Audiovisualidades; Carlos Yudji é cineasta e artista visual.
Nesta quinta-feira (02/07), especialistas participam do debate “Cinemateca brasileira e memória do audiovisual latino-americano”, realizado pelo PROLAM-USP. O evento será transmitido ao vivo a partir das 19h pelo YouTube e você pode acessar o canal aqui.
A discussão vai contar com Andrea Rosendo; Eloá Chouzal, bacharel em história e pós-graduada em cinema-documentário pela FGV; Marília Franco, doutora em Artes pela ECA-USP e professora do PROLAM; e Yanet Aguilera Matos, doutora em filosofia pela FFLCH-USP e professora de história do cinema da Unifesp.