A investigação de traços racistas e eurocêntricos nas obras de pensadores considerados clássicos ocidentais – aqui cabe-nos perguntar brevemente “clássicos para quem?” – como Kant, Hegel, Comte e Marx, revela que esses autores frequentemente retratam em suas obras povos não-europeus de forma depreciativa, desumanizando-os e colocando-os em posições de inferioridade. Contudo, nos currículos universitários e da educação básica de filosofia e ciências sociais, essas visões são frequentemente ignoradas ou relativizadas, sendo vistas como produtos do contexto intelectual da época, portanto, nunca citadas de maneira honesta, tal qual a própria construção da ciência exige.
Um conceito interessante surge no diálogo de Nilma Lino Gomes em sua obra “O movimento negro educador”, ao trazer a ideia de uma sociologia das ausências, que “(…) consiste numa investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na realidade, ativamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não credível ao que existe.” No caso dos clássicos das ciências sociais, boa parte de suas obras serve a uma agenda de criação de um suposto “universalismo europeu”, cujo objetivo era provar cientificamente a superioridade e hegemonia da Europa como principal e único centro de produção de conhecimentos e saberes do mundo, o lar da racionalidade humana, ou seja, uma supremacia branca.
Nosso exercício aqui não consiste em sugerir que as obras dos autores aqui citados sejam apagadas no fogo da História, até porque nossos saberes são plurais, mas sim propor a esses tais “clássicos” uma nova perspectiva, essa ignorada por boa parte da intelectualidade moderna. Assumo aqui o risco de ser acusado de anacronismo, mas caso isso aconteça é porque esse texto incomoda.
Kant, por exemplo, ao descrever diferentes povos, retrata os africanos como incapazes de alcançar o sublime, e Hegel, igualmente, considerava os negros como seres “naturais” e selvagens, negando-lhes qualquer valor civilizatório. Afirma Kant que “Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo.” (1993: pág. 75-76). Outro bom exemplo é o trecho que se segue, onde Hegel afirma que “a África não faz parte do mundo histórico, não manifesta nem movimento, nem desenvolvimento, e aquilo que ali aconteceu, isto é, no norte, resulta do mundo asiático e europeu… Aquilo que apreendemos, em suma, pelo nome de África, é um mundo a-histórico não desenvolvido, inteiramente prisioneiro do espírito natural e cujo lugar ainda se encontra no limiar da história universal.” (HEGEL, Friedrich. La Raison dans lHistoire; Ed. 10/18, 1982, p.269.). Esses por si só já são excelentes exemplos da produção ativa da população negra africana como não-existente. Mas não paramos por aí.
Alexis de Tocqueville, por sua vez, via negros e índios como inferiores aos brancos nos Estados Unidos. Estudando a então “jovem” nação norte-americana entre os anos de 1831 e 1832, o autor afirma, sobre seus povos: “o primeiro que atrai os olhares, o primeiro em saber, em força, em felicidade, é o homem branco, o europeu, o homem por excelência; abaixo dele surgem o negro e o índio. Essas duas raças infelizes não têm em comum nem o nascimento, nem a fisionomia, nem a língua, nem os costumes. Ocupam ambas uma posição igualmente inferior no país onde vivem…” (TOCQUEVILLE, 1977: pág. 243-244).
Enquanto Durkheim e Comte associavam a superioridade dos europeus a características biológicas, como a capacidade intelectual.
Mesmo Karl Marx, nosso queridinho, apesar de sua crítica ao colonialismo, acreditava que a civilização ocidental era superior e que a destruição de sociedades “orientais” era uma etapa necessária para o progresso, como vemos no seguinte trecho: “a Inglaterra tem que cumprir na Índia uma dupla missão: uma destrutiva, outra regeneradora – a aniquilação da velha sociedade asiática e o estabelecimento dos fundamentos da sociedade ocidental na Ásia” (1982, pág.520)
Esses exemplos mostram que a Filosofia e as Ciências Sociais clássicas estão permeadas por noções eurocêntricas, que justificavam a exploração colonial e a opressão de outros povos. Apesar disso, essas ideias ainda são marginalizadas em muitas discussões acadêmicas.
Voltando aos conceitos de Nilma Lino Gomes, em contraponto à sociologia das ausências existe a sociologia das emergências: “(…) consiste em substituir o vazio do futuro segundo o tempo linear por um futuro de possibilidades plurais, concretas, simultaneamente utópicas e realistas, que se vão construindo no presente mediante atividades de cuidado.” A autora credita ao Movimento Negro o papel de ter agido como educador da sociedade civil, da escola, do Estado, nas questões raciais, dessa forma esse artigo se apresenta como parte dessa luta histórica de reavaliarmos o papel do negro no Brasil e no mundo, e isso significa que, partindo de uma perspectiva crítica, trazemos novos olhares plurais e contra-hegemônicos que busquem também uma reavaliação do papel dos tais “clássicos” no Brasil e no mundo.