O ministro Fernando Haddad anunciou um bloqueio adicional de R$6 bilhões de reais junto com a divulgação do Relatório Bimestral de Avaliação de Receitas e Despesas do quinto bimestre. Os bloqueios se referem a cortes de despesas discricionárias forçados pelos limites do arcabouço fiscal em 2023.
O arcabouço, lembremos, impõe que a despesa primária (que exclui as despesas financeiras, como os juros da dívida pública) cresça o equivalente a 70% das receitas, limitado a 0,6% e 2,5% acima da inflação. As receitas do governo têm crescido em ritmo forte, graças ao crescimento forte da economia e às medidas de recuperação de receitas, como a taxação dos fundos exclusivos e offshore dos super-ricos.
No entanto, o próprio sucesso da política econômica está antecipando a contradição fundamental do novo arcabouço fiscal: as principais despesas do orçamento estão vinculadas diretamente ao crescimento das receitas ou do PIB, mas o total do orçamento só pode crescer a uma velocidade menor.
As despesas com saúde e educação crescem no mesmo ritmo das receitas porque existe um piso constitucional para cada uma delas. Da mesma forma, os gastos da previdência social e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) crescem no mesmo ritmo do PIB, pois estão vinculados ao salário-mínimo.
Isso quer dizer que previdência, saúde e educação crescem mais rápido que o total do orçamento e acabam por espremer o espaço para outros gastos, como os investimentos em infra-estrutura do PAC. Ou seja, quanto mais bem sucedido for o governo em gerar crescimento econômico, mais rápido chegará a contradição fundamental do arcabouço fiscal.
Quando o governo lançou o arcabouço fiscal, avaliei que o cálculo do governo era de que esta contradição chegaria apenas no potencial segundo mandato de Lula. Ou seja, o próprio governo não contava com um crescimento econômico e das receitas tão forte quanto está ocorrendo em 2023 e 2024. Esperava-se que um governo com uma coalizão fraca no Congresso não conseguiria avançar muito no primeiro mandato. Com um crescimento razoável, se reelegeria com um pouco mais de força política e, aí sim, poderia buscar uma solução para a contradição do arcabouço fiscal. Esse parecia ser o plano de José Dirceu, que percebeu o problema e já refez sua análise.
Com o sucesso da política econômica e a antecipação da contradição do arcabouço, o campo liberal dentro da frente ampla começou a colocar pressão sobre o governo para resolver a contradição da sua forma: se algumas despesas crescem mais que o total do orçamento, elas devem ser ajustadas para crescer no mesmo ritmo do total. Não interessa que saúde e educação tenham pisos definidos na constituição, com valor legal acima do próprio arcabouço fiscal, que é regido por uma lei complementar. Para esse campo, é a constituição que tem que caber no orçamento.
A solução de nosso campo, expressa desde o começo dos debates sobre o arcabouço, é que pisos constitucionais têm que estar acima de regras fiscais. O orçamento tem que caber na constituição, não o contrário. Se a vontade do poder constituinte (e do poder legislativo que emendou a constituição) é que tenhamos uma saúde e educação bem financiadas, as leis que regem a formulação das peças orçamentárias devem obedecer essa vontade. O governo deve buscar receitas para que o desejo do constituinte seja bem financiado.
Isso já está acontecendo. As receitas estão crescendo com sobra. Não há o menor problema em financiar os pisos constitucionais da saúde e da educação e a previdência social. Se precisarmos, há oportunidades de sobra para encontrarmos receitas adicionais, principalmente cortando os gastos tributários excessivos.
Ou seja, nós já temos a solução para a contradição do arcabouço fiscal. Ela já está acontecendo. Basta apenas alterar o texto da lei para que o arcabouço fiscal se conforme à realidade e ao desejo do poder constituinte. A realidade e o desejo constituinte apontam para um crescimento do Estado brasileiro, compatível com o crescimento da riqueza nacional e em sintonia com as experiências de outros Estados de bem-estar social.
O único problema no caminho da solução da contradição do arcabouço fiscal é que os desejos da banca, da imprensa hereditária e de seus representantes dentro do governo são contrários à realidade e ao poder constituinte.
(*) Pedro Faria é economista pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em História pela Universidade de Cambridge