No dia 27 de novembro de 2024, o ministro da Fazenda Fernando Haddad, nosso companheiro de partido, fez um pronunciamento em cadeia nacional.
Não recordo se foi o primeiro. Não sei se será o último. Mas certamente será lembrado para sempre como um momento marcante na vida de alguém cotado como potencial candidato à Presidência da República.
Afinal, embora o mote do discurso tenha sido “governo eficiente, Brasil mais forte e justo”, seu real motivo foi apresentar os cortes como algo não apenas necessário, mas positivo.
Não é uma tarefa fácil. Mas é uma tarefa importante: como demonstram todas as pesquisas feitas desde o início de 2023, a opinião popular acerca da situação econômica é diferente daquela que frequenta o Ministério da Fazenda. E os resultados eleitorais de 2024, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, demonstram que uma opinião popular crítica pode se transformar em vitórias de candidaturas de direita e extrema-direita.
O discurso de Haddad apresenta os cortes como “um conjunto de propostas que reafirmam nosso compromisso com um Brasil mais justo e eficiente”. Diz que “temos sinais claros de que estamos no caminho certo”. Relaciona os feitos do governo. Fala do “combate a privilégios e sonegação nos permitiu melhorar as contas públicas”, mas infelizmente não cita as milhares de empresas beneficiadas com cerca de 98 bilhões de reais, por conta de renúncias e benefícios fiscais.
Haddad também diz que “persistem grandes desafios”. A julgar pelas críticas persistentes do próprio presidente Lula, o primeiro desafio a ser citado deveria ser a taxa de juros. Mas não: o primeiro da lista é o salário-mínimo. A respeito, Haddad diz textualmente o seguinte: “Já devolvemos ao trabalhador e à trabalhadora o ganho real no salário mínimo. Esse direito, esquecido pelo governo anterior, retornou com o presidente Lula. E com as novas regras propostas, o salário mínimo continuará subindo acima da inflação, de forma sustentável e dentro da nova regra fiscal”.
Na prática, que é o que importa, o salário mínimo vai crescer menos. Usando palavras de um texto divulgado pelo próprio Ministério:
“Regra dos dois governos anteriores: Crescimento apenas pela inflação”
“Regra atual: Crescimento pela inflação do ano passado + crescimento real igual ao PIB de 2 anos anteriores”
“Regra proposta: Mantém regra de crescimento real pelo PIB, mas a variação real estará nos limites do arcabouço fiscal”.
Haddad também anunciou que “para atender às famílias que mais precisam, o abono salarial será assegurado a quem ganha até R$ 2.640. Esse valor será corrigido pela inflação nos próximos anos e se tornará permanente quando corresponder a um salário mínimo e meio”.
Na prática, segundo explica o próprio Ministério da Fazenda, também haverá uma redução. Hoje, o abono está acessível para quem recebe até dois salários mínimos. Em 2035 estará acessível a quem recebe até 1,5 salário mínimo.
Em compensação, Haddad também informa que “as medidas também combatem privilégios incompatíveis com o princípio da igualdade. Vamos corrigir excessos e garantir que todos os agentes públicos estejam sujeitos ao teto constitucional”. Haddad não diz, mas todo mundo sabe, que corrigir estes excessos depende da concordância dos chamados “três poderes”.
Haddad informa, ainda, que “para garantir que as políticas públicas cheguem a quem realmente necessita, vamos aperfeiçoar os mecanismos de controle, que foram desmontados no período anterior. Fraudes e distorções atrasam o atendimento a quem mais precisa”.
Haddad não cita em seu discurso, mas o Ministério da Fazenda explicou que serão endurecidas as regras de acesso ao Bolsa Família e ao Benefício de Prestação Continuada.
Em contrapartida, Haddad disse que vamos promover “mais igualdade” nas aposentadorias militares, “com a instituição de uma idade mínima para a reserva e a limitação de transferência de pensões, além de outros ajustes”.
As medidas indicadas pelo Ministério da Fazenda são: acabar com a chamada “morte fictícia”, fixar “em 3,5% da remuneração a contribuição do militar para o Fundo de Saúde até janeiro de 2026”, extinguir a “transferência de pensão” e estabelecer “progressivamente idade mínima para reserva remunerada”.
Haddad também disse que serão tomadas medidas relativas às chamadas emendas parlamentares. No detalhamento divulgado pelo Ministério da Fazenda, está dito o seguinte:
– limitar o “crescimento das emendas impositivas ao arcabouço fiscal”;
– restringir “emendas nas despesas discricionárias do Poder Executivo”;
– vedar “crescimento real das emendas não impositivas, de modo que montante total das emendas crescerá sempre abaixo do arcabouço”;
– destinar “50% dos valores de emendas de Comissão para o SUS, observados critérios e diretrizes técnicas”;
– bloquear “emendas proporcionalmente aos bloqueios do Poder Executivo, limitado a 15% do total das emendas (R$ 7,5 bi em 2025)”;
Tais medidas, assim como outras anunciadas, dependem do Congresso Nacional. Nos próximos dias e semanas, saberemos se vão ou não virar realidade.
Haddad não citou, nem poderia num discurso de 7 minutos e pouco, outras medidas que seu Ministério divulgou em nota técnica, a saber:
– Educação em tempo integral: até 20% da complementação da União ao Fundeb poderá ser empregada em ações para criação e manutenção de matrículas em tempo integral na educação básica pública;
– Lei Aldir Blanc: repasse anual de até R$ 3 bi aos entes continua, mas condicionado à execução dos recursos pelos entes no ano anterior;
– Concursos públicos: faseamento de provimentos e concursos em 2025 (meta de pelo menos R$ 1 bilhão de economia);
– Subsídios e subvenções: autorização para ajuste orçamentário em cerca de $ 18 bilhões em subsídios e subvenções;
– Fundo Constitucional do Distrito Federal: submete variação de recursos do Fundo ao IPCA;
– Desvinculação de Receitas da União (DRU): prorroga a DRU até 2032;
– Criação de despesa: deve observar a variação da despesa anualizada limitada ao crescimento permitido pelo arcabouço;
– Dever de execução: revoga dever de execução do orçamento.
Haddad tampouco citou em seu discurso, mas o Ministério da Fazenda informou que serão introduzidos novos gatilhos no chamado Arcabouço, para o caso de ocorrer “déficit primário ou redução das despesas discricionárias”. A saber:
– Benefícios tributários: se houver déficit primário de 2025 em diante, no exercício seguinte à apuração do déficit fica vedada a criação, majoração ou prorrogação de benefícios tributários;
– Pessoal: gatilho de reenquadramento vedará, a partir de 2027, aumento real acima de 0,6% se despesa discricionária se reduzir de um ano para o outro.
Haddad, em seu discurso, diz que essas medidas “vão gerar uma economia de R$ 70 bilhões nos próximos dois anos e consolidam o compromisso deste governo com a sustentabilidade fiscal do país”.
A economia, portanto, não é para reduzir tributos; nem é para ampliar investimentos no desenvolvimento. A economia é para garantir a “sustentabilidade fiscal”. Neste sentido, é surpreendente que não haja, entre as medidas, absolutamente nada em relação aos juros e à especulação. Já sobre os subsídios presentes ao andar de cima (mais de 98 bilhões de reais, segundo a própria Fazenda), eventuais medidas poderão ser tomadas futuramente.
Segundo tabela divulgada pelo Ministério da Fazenda, a estimativa preliminar de impacto entre 2025 e 2030 seria de R$ 327 bilhões. No biênio 2025 e 2026, anos em que se decidirá quem vencerá a próxima eleição presidencial, o impacto seria de R$ 71,9 bilhões.
A distribuição dos 71,9 bilhões de reais, segundo a Fazenda, seria mais ou menos a seguinte:
– os militares contribuiriam com 2 bilhões;
– provimento e criação de cargos também com 2 bilhões;
– o Distrito Federal com 2,3 bilhões
– a cultura com 3 bilhões;
– subsídios e subvenções contribuiriam com 3,7 bilhões;
– a DRU com 7,4 bilhões;
– o Fundeb com 10,3 bilhões;
– as emendas parlamentares com 14,4 bilhões;
– e 26,6 bilhões de reais da economia viriam de “gastos” feitos no andar de baixo, assim distribuídos: 0,7 do abono salarial; 11,9 do salário mínimo; 5 do bolsa família; 4 do BPC; 5 da “biometria”, que nas explicações da Fazenda, se aplica no caso do BPC e do Bolsa Família.
Tendo em vista esta “distribuição do impacto”, é óbvio que Haddad teria que terminar seu discurso dando boas notícias ao “andar de baixo”.
Uma dessas boas notícias é a de que “combater a inflação, reduzir o custo da dívida pública e ter juros mais baixos é parte central de nosso olhar humanista sobre a economia”. Infelizmente, esta é a única vez, no discurso inteiro, em que aparece a palavra “juros”, principal fator isolado do crescimento da dívida pública em nosso país. Também não compareceu, no discurso, nenhuma medida relacionada ao combate à inflação, que como todo mundo sabe continua sendo um imenso problema.
Haddad também reafirmou o compromisso “com as famílias brasileiras”, com as seguintes frases: “proteger o emprego, aumentar o poder de compra e assegurar o crescimento sustentável da economia”. Infelizmente, nosso “olhar humanista” não fez nenhuma menção à vida além do trabalho e ao momentoso tema da escala 6×1, muito relevante num país onde o emprego cresce, o poder de compra nem tanto, mas a exploração cresce muito.
No lugar destes temas, a boa nova trazida por Haddad foi “a maior reforma da renda de nossa história”: “uma parte importante da classe média, que ganha até R$ 5 mil por mês, não pagará mais Imposto de Renda”. Deixemos de lado o uso abusivo do conceito “classe média” e nos foquemos no que diz o Ministério da Fazenda, em texto divulgado recentemente:
“Faremos a maior reforma do imposto de renda da história do Brasil: aumento da faixa de isenção do IR para até R$ 5 mil reais. Não haverá perda de arrecadação com a ampliação da isenção do IRPF: a compensação se dará pela inclusão dos mais ricos no imposto de renda, tornando a tributação no topo mais justa e melhorando a desigualdade social. Fixação de alíquota efetiva mínima para os mais ricos: atualmente, para o 1% mais rico, a alíquota efetiva é de 4,2% e, para o 0,01% mais rico, a alíquota efetiva é 1,75%. Proposta de revisão da isenção de IR para faixas mais altas de renda dos aposentados por moléstia grave ou acidente. Tributação de remessa de dividendos ao exterior.”
“Faremos” é no futuro, se bem lembro das lições escolares. Quando entrará em vigor e as contas detalhadas, certamente o Ministério já deve ter divulgado. Mas o central, segundo Haddad, é que “a nova medida não trará impacto fiscal, ou seja, não aumentará os gastos do governo. Porque quem tem renda superior a R$ 50 mil por mês pagará um pouco mais. Tudo sem excessos e respeitando padrões internacionais consagrados”.
Moral da história: “essa medida, combinada à histórica Reforma Tributária, fará com que grande parte do povo brasileiro não pague nem Imposto de Renda e nem imposto sobre produtos da cesta básica”. O que corrigiria “grande parte da inaceitável injustiça tributária, que aprofundava a desigualdade social em nosso país”.
Gostaria sinceramente de acreditar que, sem impostos sobre heranças, grandes fortunas, transações e propriedades, será possível corrigir a nossa injustiça tributária. Sem falar nas dúvidas sobre o impacto da medida em si. Aliás, acho que no fundo o próprio Haddad tem algumas dúvidas a respeito do conjunto da obra. Só assim para explicar que, no finalzinho de seu discurso, ele apele para a fé.
A frase citada é “Tenham fé de que seguiremos construindo um país onde todos possam prosperar pela força de seu empenho e trabalho”.
Fé, para os que têm, é uma benção. Para os que não têm, mas também para os que reservam a fé para outras esferas da vida, os problemas estão noutro lugar. Por exemplo: estas medidas vão contribuir para o governo ampliar o investimento público no desenvolvimento e no bem-estar social? Estas medidas vão contribuir para reduzir a ofensiva do grande capital e da direita contra a classe trabalhadora e contra nosso governo? Estas medidas pacificam em bom sentido a disputa, dentro do governo, entre os social-liberais e a esquerda? Ou ainda: essas medidas ajudarão o governo e o PT a chegar em melhores condições políticas e eleitorais em 2005 e 2026?
Há quem ache que sim. Entre outros motivos, porque a extrema-direita estaria sob forte pressão, devido às investigações que indicam o envolvimento do cavernícola et caterva em crimes, atentados, golpes e tudo o mais.
Infelizmente, a extrema-direita não se resume a Bolsonaro e sua turma. A extrema-direita no Brasil é um movimento político social de massas, cujos tentáculos seguem se movimentando, como pode ser visto nas redes sociais e no Congresso, por exemplo nas últimas 48 horas. Derrotar um movimento político-social, cimentado por ideias reacionárias mas muito poderosas, depende de existir outro movimento político e social, em sentido contrário e com força maior, cimentado por ideias ainda mais poderosas.
Neste contexto, o impacto tanto do discurso do companheiro Haddad, quanto das medidas anunciadas não é politicamente positivo. Essencialmente porque as medidas, assim como toda a lógica do Arcabouço Fiscal, não apontam no sentido do desenvolvimento. Aliás, esta palavrinha – desenvolvimento – não comparece uma única vez no discurso de Haddad.
Não é um ato falho. É, estou certo disto, sabotagem. Talvez até “auto sabotagem”. Nesse sentido, minha total solidariedade ao companheiro Haddad. Posto para cumprir tarefas tão desgastantes, precisava de um ghost writer mais atento.