Uma famosa canção da banda britânica Tears for Fears afirma que “todas as pessoas querem dominar o mundo”.[1] Seria deselegante, é claro, além de tolo, exigir dos compositores uma formulação precisa sobre as relações políticas internacionais (embora, valha notar, seus posicionamentos são, em geral, mais razoáveis do que os de outros artistas provenientes do Norte global que se aventuram pelos mesmos temas). Mas como a arte imita a vida e vice-versa, seu refrão pode nos ajudar a refletir sobre uma ideologia muito arraigada no pensamento moderno, a saber, aquela que projeta sobre os demais povos o mesmo desejo de dominação e reconstrução do mundo à sua imagem e semelhança, que permeia o imaginário ocidental desde as cruzadas medievais e que encontrou o seu ápice nos colonialismos europeus e no imperialismo capitalista sobre África, Ásia e América Latina.
Certa vez, numa conferência acadêmica sobre a “Europa como Ator Global”, ocorrida em 2021, uma pesquisadora alemã exasperou-se perante a indiferença do autor destas linhas (e de seu coautor, com quem participava naquele painel) acerca de seu pânico moral-racial, disfarçado de temor geopolítico, quanto a uma iminente invasão russa sobre a Europa ocidental, ou diante do risco da dominação chinesa subjugar de forma totalitária o planeta inteiro, impondo seu autoritarismo congênito sobre a humanidade. Beirando a deselegância, a cientista social germânica mal conseguia acreditar que dois pesquisadores brasileiros tivessem visões próprias sobre o assunto, além de não disfarçar sua irritação com a insolência iconoclasta (ou ingenuidade terceiro-mundista) daqueles que ousavam duvidar de uma verdade auto-evidente para qualquer mente civilizada.
“Não duvidem”, bradou a voz teutônica da razão embranquecida, “pois hoje os chineses podem parecer benévolos ou desinteressados mas, assim como os russos, seu propósito é sim conquistar o mundo, só pode ser isso: é preciso ter cuidado!”, concluiu. Tamanha arrogância paternalista, contudo, não pode ser simplesmente descartada como um gesto individual ou caso isolado. Na verdade, é melhor tratá-lo como exemplo perfeito de uma mentalidade de larga duração, que insiste em se fazer presente até hoje, sob diversas formas, e que se ofende quando encontra obstáculos na propagação missionária de sua fé.
Chega a ser supérfluo o apelo a alguma psicanálise de botequim para reconhecermos que há uma evidente projeção do próprio desejo sobre o desejo de Outros em operação aqui. Neste caso, um desejo assassino, eugenista e epistemicida que visa remodelar (“salvar”) ou liquidar, em nome do bem universal, a povos e culturas consideradas inferiores, bárbaras, infiéis. Não ocorre apenas na política internacional. Sabemos de inúmeros casos em que pastores homofóbicos ou políticos conservadores foram encontrados em orgias gays; ou quando defensores da chamada “guerra às drogas” são revelados como grandes usuários, senão traficantes, daquilo que em público dizem execrar. Contudo, não é preciso psicologizar a análise. Basta olhar para alguns traços constitutivos da racionalidade hegemônica no mundo ocidental, ontem e hoje.
A suposta necessidade de resgatar os povos atrasados de sua própria ignorância, ou salvá-los da fé errada, remonta aos primórdios da colonização europeia, justificada inicialmente em nome da catequese cristã e, posteriormente, via o mito do salvador branco durante o imperialismo do século XIX, que opera, desde então, através do prisma da mission civilisatrice. Na primeira fase, encontra-se o Ego Conquiro ibérico, que antecedeu e deu origem ao Ego Cogito cartesiano, fazendo da noção de conquista um traço fundante da modernidade europeia.[2] Uma conquista com traços peculiares, baseada na “pureza de sangue”, que iria exterminar, expulsar ou assimilar a milhões de “mouros”, ou judeus na Península Ibérica e que, em seguida, daria origem à moderna ideia de “raça”, como resultado do encontro com os “indígenas” do Novo Mundo.[3] Já na segunda fase, é o “fardo do homem branco” que requer a expansão imperial-capitalista sobre o resto do planeta, em uma época marcada pelo racismo científico (ou “biológico”), em pleno apogeu da sociedade liberal nas grandes potências ocidentais.
É por isso que o Eurocentrismo difere de um etnocentrismo qualquer: não é apenas que os europeus (e estadunidenses) se julguem superiores; a questão é que eles se creem naturalmente superiores a todos os demais.[4] Seus valores são melhores, ponto. Disto advém certa “responsabilidade de proteger” os inferiores: a tarefa impossível, porém dignificante, de salvá-los de sua própria inferioridade civilizacional.
Por isso, quando liberais falam em “fim da História” nas relações internacionais, o que querem dizer é que se trata de um tipo de poder absoluto (“dominação de espectro total”), que não admite a convivência pacífica com outros poderes cujas características ontológicas, percebidas ou reais, difiram da sua. Em suma, é mais do que simples desejo de poder ou dominação, que são parte da natureza humana, pode-se argumentar. É sobre salvação, remodelação do caráter; sobre missão religiosa, mandamento divino; sobre a busca por um sentido existencial num mundo desalmado: nessa hora, até o relativismo dos realistas soa mais humano do que o afã homogeneizante do liberalismo civilizador…
Houve, é claro, liberais que se opuseram ao imperialismo (já não se fazem tantos hoje em dia). Norman Angell, coitado, soa ingênuo em sua tentativa de demonstrar a inutilidade econômica da expansão imperialista, mas sua oposição decidida aos argumentos chauvinistas em pleno coração do Império Britânico é digna de nota. Por sua vez, John Hobson foi mais arguto ao enfatizar os matizes de classe e demais forças sociais beneficiárias da política imperialista, que ele denominou de “parasitas econômicos do imperialismo”. Ambos cumpriram seu papel histórico ao contestarem publicamente o senso-comum dominante em sua época, lastreado por especialistas da recém-criada “geopolítica”: segundo o imaginário político, organicista e reacionário, dos fundadores desta pseudociência internacional, como Friedrich Ratzel ou Rudolph Kjellén, os Estados nacionais (etnicamente concebidos) deveriam expandir-se ou morrer.
Esta seria a base doutrinária da chamada “geopolítica alemã”, que marcou as concepções dos estrategistas nazistas. “Toda a sociedade, em um determinado grau de desenvolvimento, deve conquistar territórios onde as pessoas são menos desenvolvidas”, dizia Ratzel, após maravilhar-se com a doutrina estadunidense do “Destino Manifesto”. Nunca é demais lembrar que a ideia de “espaço vital” (lebensraum), tão usada pelo regime de Hitler, já havia sido cunhada por Ratzel décadas antes. Mas também é importante reconhecer que os expoentes do pensamento geopolítico britânico e norte-americano, Mackinder e Alfred Mahan, cada qual a seu modo – terrestre ou naval – igualmente subscreviam à tese central expansionista-supremacista.[5]
Em suma, há inúmeras fontes compondo o mosaico filosófico ocidental que têm a certeza de que é preciso destruir ou dominar o mundo – todo o mundo – por alguma razão superior, seja religiosa ou lastreada por sua mentalidade racional, esclarecida, científica. Ao menos no ocidente, especialmente nos Estados Unidos, existe bom humor e boas doses de verossimilhança, pois ninguém melhor do que os personagens do desenho animado Pink & Cérebro para ilustrar essa verdade. “O que vamos fazer hoje?” – pergunta um rato ao outro no começo de cada nova jornada. A arte imita a vida.
Por sorte, houve quem, no ocidente e ainda no século XIX, conseguisse rir desta ânsia mal disfarçada por expansão civilizacional. “A burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras”, dizem Marx e Engels no Manifesto para, em seguida, completarem com o sarcasmo que lhes era habitual:
“Sob pena de ruína total, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar a chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança.”[6]
Os comunistas riem-se dos que chamam a si mesmos de civilizados no ocidente e enxergam a barbárie sempre no Outro. Nossa colega pesquisadora, tão alemã como Marx e Engels, poderia adotar a mesma postura em vez de seguir usando seu lugar de especialista em política internacional como plataforma ideológica do Partido da Guerra ocidental, sempre disposto a atacar primeiro para não se arrepender depois: si vis pacem, para bellum ( “Se queres a paz, prepara-te para a guerra”, em tradução livre), diz o ditado latino (que não é chinês, nem eslavo). É impossível saber o que China e Rússia querem, até porque países não são pessoas para quererem alguma coisa. Trata-se, sem dúvidas, de dois Estados altamente envolvidos nas tramas do capitalismo mundial. Mas ainda não os vemos iniciando guerras a torto e a direito (nem na Ucrânia, vale dizer) ou espalhando 800 bases militares ao redor do globo. Certamente, o que eles querem não é a mesma coisa, mesmo que não seja coisa boa.
O desejo de dominação total não pertence à humanidade como um todo, menos ainda o desejo de remodelação (ou extinção) de tudo que não corresponda ao modelo cultural dominante. Aos olhos do resto do mundo, trata-se de um desejo exótico, excêntrico e particular; nada universal. Mas os proprietários da razão insistem que não.
Hoje, aqueles que vociferam esse desejo invertido de uma invasão militar russa até Lisboa ou de humilhação imperialista chinesa somente logram fazer uma coisa além de delirar em público – ou pior, provocar irresponsavelmente uma profecia autorrealizável: revelar, uma vez mais, para todo o mundo, menos para suas limpas consciências, supostamente iluminadas, o seu desejo mais íntimo de uniformização da raça humana (sim, é disto que se trata); de genocídio e extermínio; ou, no melhor dos casos, de “mera” humilhação de uns povos sobre outros. E sabem disto, pois volta e meia se arrependem daquilo que desejaram. Às vezes, tarde demais. Como dizem os compositores do Tears for Fears na mesma canção: “It’s my own design/It’s my own remorse”. ( É meu próprio designo/É meu próprio remorso, em tradução livre.)