O presidente dos EUA, Donald Trump, mal tomou posse e já anunciou medidas drásticas para tentar recuperar a capacidade produtiva de seu país frente ao agigantamento da China como motor da produção mundial. Trump revelou, sem cerimônia, a intenção de sobretaxar produtos importados de vários países, a começar pelo México, o Canadá e a China. O líder de extrema direita mostrou-se decidido a tirar a máscara do império estadunidense ao explicitar qual será a linha de seu governo nas relações internacionais: “rendam-se aos EUA ou sofram as consequências”.
Os primeiros sinais de sua nova política repousam em agressões já externadas em seu discurso. Ele ameaçou tomar a Groenlândia, preocupado com as incursões do comércio chinês no Atlântico Norte e no Ártico; ameaça tomar o canal do Panamá, frente à política comercial e portuária chinesa que ali opera fortemente; promete aumentar absurdamente as tarifas de exportações de outros países, começando pelo México; e iniciou uma política desumana de deportação em massa de imigrantes, sobretudo de pessoas oriundas da América Latina.

(Foto: Gage Skidmore / Flickr)
Temos nessas ações a tentativa de preservar o poderio estadunidense frente ao crescimento chinês. Trump promoverá mudanças na política externa em relação à aplicada pelos democratas. Enquanto os partidários de Obama buscavam tensionar China e Rússia nas fronteiras das zonas de influência daqueles países através da OTAN, Trump tentará barrar o avanço chinês cercando e preservando com mão de ferro as zonas de influência dos EUA, buscando ao máximo dificultar o movimento comercial chinês na Europa, no Atlântico Norte, em parte do Pacífico e na América do Sul e Central.
Paralelamente a esse movimento, forçará os países subordinados ao império a enviarem o máximo possível dos ganhos do comércio e do investimento estrangeiro aos EUA, seja através de pesadas tarifas às exportações, seja na humilhante obrigação que imporá aos europeus para o financiamento da OTAN – a Europa, sobretudo a Alemanha, caminha para tempos sombrios. O resultado será uma enorme pressão sobre as balanças de pagamentos e desestabilização da economia dos países dependentes, com potencial para causar um verdadeiro caos no comércio internacional, de onde os profetas estadunidenses acreditam que os EUA sairão mais fortes.
Trata-se da radicalização da lógica econômica que garante o domínio estadunidense no Ocidente desde o fim da Segunda Guerra e no mundo inteiro desde a década de 90. Qual seja: impor, através do endividamento em dólar e do sufocamento econômico, seus interesses imperiais aos países subjugados. Ora, sempre foi esse o papel do FMI e do Banco Mundial: emprestar dinheiro com uma mão e destruir a capacidade produtiva dos devedores impondo-lhes rígidas políticas austericidas com a outra. O que Trump propõe agora é o aprofundamento dessa dinâmica, deixando que as promessas e as ideias de liberdade e prosperidade para seus satélites se dissolvam no ar, aos olhos do mundo inteiro.
Vem aí uma dura política de manutenção da força do império estadunidense, que tentará impor uma colossal austeridade aos países subjugados como condição para suportarem os efeitos colaterais das medidas americanas, sem se rebelarem. A alternativa a esse caminho seria a negação, por parte dos devedores, do pagamento de suas dívidas, denominadas em dólar, o que constituiria verdadeiro ato revolucionário frente à conjuntura atual. Ou buscar socorro no bloco que ameaça os EUA e promete prosperidade, parceria tecnológica e crescimento econômico: o BRICS. Porém, qualquer uma dessas duas últimas opções poderia levar ao uso da força pelos norte-americanos, que seguirão tendo nas Big Techs instrumentos para desestabilização e golpes em governos não-alinhados.
Frente a tudo isso os países latino-americanos precisam buscar reconstruir laços mais fortes de cooperação e parcerias entre si. Na atual quadra de avanço do imperialismo, entre todas as saídas possíveis, nenhuma pode prescindir do fortalecimento da relação política, econômica e cultural entre os países da nossa região.
Um dos norteadores da política externa de Trump, aliás, é a crença na doutrina do Destino Manifesto, segundo a qual os EUA estão destinados, por vontade divina, a dominarem o mundo. Essa ideia colonial e xenófoba desenha a nós, latino-americanos, como o “outro” inferior, cuja coação e expulsão do centro imperial tem significado e papel funcional para o discurso e a ação trumpista. As deportações em massa de mexicanos, colombianos, brasileiros e tantos outros nos localizam nesse projeto como os “indesejados”. Esse é um discurso perigosíssimo, que deve ser combatido com altivez e em conjunto por nossos países.
Brasil, México, Venezuela e Colômbia serão fundamentais numa busca pelo fortalecimento mútuo, pelo enfrentamento do imperialismo e abertura de parceria mais consistente com países como a China e a Rússia. Precisamos fortalecer laços de solidariedade e cooperação, apostando na ação em bloco em torno de um plano consistente de desenvolvimento tecnológico e econômico para a região, como já havíamos esboçado no início do século XXI. Além disso, é preciso criar um movimento coordenado de combate à extrema direita latino-americana, que deverá ser fortalecida por Trump. Atitudes como a brasileira, de não rechaçar a direita golpista venezuelana e barrar a entrada da Venezuela nos Brics, devem passar longe do nosso horizonte, pois vão na contramão de tudo aquilo que a América Latina precisa.
Quanto à China, talvez ela não responda imediatamente à provocação estadunidense e siga sua estratégia de deixar que as contradições se aprofundem, já que um dos efeitos das tarifas será a sobrevalorização do dólar, ruim para a política industrial estadunidense e potencialmente elevadora da inflação por lá. Também não é razoável supor que ela investirá na desdolarização imediata, convidando-nos para sua festa de pronto. Ela parece buscar, isto sim, disputar a própria zona do dólar, deixando o processo de desdolarização como “cartada final”, num futuro, espera-se, não tão distante. Mesmo assim, a China tem buscado abrir relações mais profundas conosco, como as saídas para a Nova Rota da Seda. Não faz sentido algum nos negarmos a isso.
Quanto ao Brasil, temos dois desafios. O primeiro é mudar a linha da política interna, voltando a construir um projeto de desenvolvimento das nossas forças produtivas, apostando em tecnologia e na retomada do pleno controle de nossas fontes energéticas. Segundo, diminuir a influência da burocracia do Itamaraty sobre nossa política externa, que deve voltar-se tanto quanto possível para o chamado Sul Global, para o fortalecimento da América Latina e para a parceria possível com a Europa, em segundo plano. Derrotar a extrema direita em 2026 ganha ainda mais importância para qualquer tentativa de avanço nessa direção.
A ação truculenta de Trump pode em alguma medida até nos favorecer num primeiro momento, dada nossa condição, conquistada nos governos Lula, de baixo endividamento em dólar, abrindo mercados em detrimento dos países a serem sobretaxados. No entanto, uma aposta isolada nisso nos mantém reféns do modelo primário-exportador de sempre e da nociva dependência aos EUA, impede uma política mais firme de enfrentamento em bloco na América Latina e limita nosso desenvolvimento.
Aqueles que na esquerda brasileira aderiram ao discurso de Fukuyama sobre o fim da história após a queda da União Soviética devem voltar a se acostumar com categorias como imperialismo, colonialismo, e – não se assustem –, a volta do socialismo e da rebelião dos povos como saída contra um capitalismo austericida e genocida, contra uma novíssima fase do imperialismo. Qualquer debate sobre democracia e soberania que não passe pela luta de classes, pela luta anti-imperialista e pelo entendimento sobre a reconfiguração por que passa o capitalismo será insuficiente para construção de um projeto nacional de libertação, emancipação e cidadania. Sigamos firmes e na luta.