Enquanto o nacionalismo delirante de Trump causa inquietação em ambos os lados, o governo Lula parece não se sentir afetado. E ele pode estar certo se “os EUA continuam sendo seu parceiro histórico” (Lula) muito além da bravata do atual inquilino da Casa Branca, um amigo de Bolsonaro (“Trump tropical”). Contudo, ficar à margem quando os principais pontos de partida para seus produtos de exportação (Canal do Panamá e Chancay) estão na mira do “parceiro histórico”, não compreende totalmente a política de silêncio em relação a esta questão, nem contra outras que afetam diretamente o Brasil.
Dado que Trump não teve nenhuma consideração pela retirada dos EUA da OMS e do Acordo Climático de Paris, não se deve esperar muita delicadeza na hora de executar suas ameaças contra o Panamá (Canal) e o Peru (Porto de Chancay). Não se trata de uma questão pequena. É, nada menos, o triângulo logístico que explica grande parte do comércio mundial: Xangai (China), Canal do Panamá (Panamá) e Chancay (Peru). O controle, ou mesmo a influência, sobre as operações dessa infraestrutura e logística é geopoliticamente decisivo na disputa pela hegemonia mundial. A bravata de Trump não é gratuita.
A ‘ameaça chinesa’ no triângulo, segundo Trump
Durante a sua posse, Trump reiterou sua intenção de “retomar” o Canal do Panamá porque ele estava sendo “usado” pela China. “Os maravilhosos soldados chineses estão operando amorosamente, mas ilegalmente, o Canal do Panamá” (Trump). Ele enfatizou que exigiria que o “Canal fosse devolvido aos EUA em sua totalidade e sem fazer perguntas”. O presidente panamenho, José Raúl Mulino, não demorou a responder, dizendo que é “um absurdo” afirmar que a China administra o canal e que também não é verdade que “os navios americanos pagam taxas exorbitantes”. Ele ressaltou que “cada metro quadrado do Canal continuará pertencendo ao Panamá”. As cartas, ao que parece, já foram distribuídas. Vamos então ver alguns detalhes.
Lembremos que o Canal do Panamá é uma rota navegável de 80 km que liga os oceanos Atlântico e Pacífico, adquirindo a mais alta importância econômica e geopolítica para aqueles que disputam a hegemonia mundial. A República do Panamá é apenas o palco onde um conflito de dimensões ainda desconhecidas pode ser desencadeado. O Canal, por onde passa mais de 5% do comércio mundial, opera sob a administração formal do governo panamenho. Este fato não nega a presença chinesa com investimentos significativos no mesmo canal e infraestrutura associada.
Neste ponto, é necessário fazer uma distinção entre o investimento chinês feito por empresas privadas e aquele feito por empresas sob o controle do governo, mesmo que operem em regime privado. Embora, é preciso dizer, ambos os tipos de investimento privado são responsáveis perante o governo chinês, desde que cumpram o planejamento quinquenal do país.
Em termos de carga movimentada pelo canal, a China é o segundo maior usuário, depois dos EUA, respondendo por mais de 21% da carga que transita pelo meio. Em termos de investimento, a China fez mais progressos que os EUA na operação de portos (Balboa no Pacífico e Cristobal no Atlântico), bem como na construção de terminais (para navios de cruzeiro) e pontes sobre o canal. Não é preciso ser especialista para concluir que as informações disponíveis nesses portos e terminais, especialmente sobre cadeias de suprimentos, são potencialmente estratégicas no caso de um conflito armado ou guerra comercial.

Durante a sua posse, Donald Trump reiterou sua intenção de “retomar” o Canal do Panamá, fala que posteriormente foi rechaçada pelo presidente panamenho, José Raúl Mulino
Por outro lado, o Panamá, de acordo com o Tratado Torrijos-Carter, garante a neutralidade no uso do Canal e de outras rotas internacionais que sejam construídas em território panamenho. Mas também, de acordo com o mesmo tratado, “os EUA reservam-se o direito de defender qualquer ameaça à neutralidade do canal usando força militar.” (BBC, 21.01.25)
Chancay vs Canal do Panamá?
Durante décadas, o Canal foi a joia da coroa do comércio marítimo internacional na América Latina. O trânsito de mercadorias entre os oceanos Pacífico e Atlântico mereceu a distinção acima mencionada.
O surgimento de Chancay, um megaporto financiado pela China, a apenas 80 km de Lima, no Peru, não pretende tirar essa coroa, mas não poderá deixar de impactar as dimensões e a importância das operações do Canal. O porto de Chancay foi projetado para transportar cargas e se tornar o novo centro logístico da América Latina.
O surgimento de Chancay e a crise que o Canal começou a enfrentar devido à escassez de água, consequência das mudanças climáticas e do desmatamento, parecem coincidir. Por exemplo, o Porto de Balboa depende de água doce para operar suas eclusas, cuja disponibilidade não é mais a mesma. Essa situação forçou a restrição do tráfego de navios e o aumento de tarifas para manter a operação do canal. E a situação não afeta apenas sua competitividade, mas também o grau de previsibilidade e confiança dos usuários dos canais e dos próprios operadores.
Nessas condições, é óbvio que Chancay, um porto multifuncional, ofereça vantagens competitivas atraentes para operadores de comércio internacional. Com a tecnologia disponível, os custos operacionais e os tempos de carga e descarga serão menores do que os oferecidos atualmente pelo Canal. Está a caminho de se tornar um jogador global no comércio internacional.
Chancay, para concluir esta nota, conta com uma localização estratégica na América Latina que lhe permite oferecer vantagens dificilmente superáveis ao comércio internacional da Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador e Chile, para o qual dispõe de uma rede ferroviária e estradas que facilitem o acesso aos produtos dos países mencionados e outros.