Quarta-feira, 14 de maio de 2025
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Segundo a ciência política, o autogolpe ocorre quando um líder em exercício se move para derrubar a ordem instituída e, assim, aumentar seus poderes – ou, eventualmente, se perpetuar no poder. Pelo menos desde os fisiocratas, na França iluminista, sabemos da existência ambivalente dos líderes políticos enquanto déspotas, isto é, senhor da economia. Portanto, podemos falar em “autogolpe econômico” quanto ao que Trump fez nas últimas semanas.

O Estado é uma máquina econômico-política, cujo chefe aparece simultaneamente como rei ou presidente e déspota (o que não implica, a princípio, juízo de valor negativo) o que, no caso americano, se amplia ao mundo inteiro. Os Estados Unidos ganharam muito com a globalização, mas a distribuição social do butim se tornou negativa, atraindo descontentes numerosos, mas eles estão sendo manobrados pela mesma oligarquia que lhes explora.

O presidente dos EUA assina ordens executivas no Salão Oval da Casa Branca. <br>(Foto: Molly Riley / White House)
O presidente dos EUA assina ordens executivas no Salão Oval da Casa Branca.
(Foto: Molly Riley / White House)

O que está em jogo, portanto, é algo que a velha dialética materialista capta muito bem. A hegemonia americana, sob o regime da globalização, se sustenta na realocação de capitais para o Sul e o Leste, a qual causou a ascensão de novos atores: China, Rússia, Índia, talvez o Brasil etc. O sistema do dólar gestaria, no longo prazo, uma nova ordem multipolar, que teria lugar para os Estados Unidos, mas não para seu protagonismo, e se superaria.

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Nesse horizonte de perda de protagonismo dos Estados Unidos, sua oligarquia une dois fatos sem conexão: a crise atual, política e social, com o processo de ascensão da China e dos emergentes, como se isso fosse a causa do declínio relativo da qualidade de vida. Trump, portanto, busca unir o país contra o inimigo externo, mas na prática defende os privilégios da oligarquia, não garante nenhum ganho vindouro aos excluídos. Mas ele precisa de um ardil.

Chega a ser irônico, mas em tempos de ameaça americana contra a Groenlândia, é um dinamarquês – ou melhor, o escritor nacional da Dinamarca, Hans Christian Andersen –, quem nos fornece pistas sobre o que passa: A roupa nova do rei, seu clássico, trata de quando velhacos vendem ao monarca um tecido que só os inteligentes podem ver, quando, na verdade, não há tecido algum – uma autoilusão semelhante ao que vemos aqui.

Trump, o veneno e o remédio

Os Estados Unidos precisam de uma revolução, não de tarifas, disse um jovem chinês no Tik Tok. Faz sentido. Donald Trump liderou talvez o maior cavalo de pau econômico do seu país, mas os resultados das últimas semanas apontam, apenas, para mais ansiedade global, em um mundo entrando de cabeça no caos: bolsas de valores caindo e mercado de títulos da dívida americana com juros crescentes, gerando mais incertezas.

As altas tarifas de Trump, respondidas com retaliações simétricas pela maior parte dos países do globo, geraram um efeito no mercado de títulos da dívida do país. Com a falta de dólares no mercado, não foram poucos atores que liquidaram títulos de 10 e 30 anos da dívida americana, gerando, consequentemente, uma alta dos juros sobre eles – com uma pressão sobre os juros de curto prazo. A saída de capitais, por outro lado, derrubou o dólar.

Certamente, tarifas módicas poderiam ter gerado protestos, mas seriam pagas enquanto o comércio transcorreria de forma relativamente normal – com o possível efeito de valorizar o dólar e, por consequência, derrubar as taxas de juros, o que poderia ser a base para o boom do crescimento que ele tanto anseia, embora não derrubassem o déficit comercial no médio ou longo prazo.

Movido por maus conselheiros, Trump ignorou que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose – como dizia Paracelso, o alquimista. Tudo isso demonstra uma obsessão cármica do atual governo americano sobre os juros, como se vê pela titânica briga de Trump com o presidente do Banco Central americano, Jerome Powell, que tem sido ignorada no Brasil. De tanto mirar em juros baixos, eles passaram a subir.

O leitor atento deve notar que são por razões parecidas que Trump mira o fim da guerra na Ucrânia: petróleo mais barato e, por conseguinte, espaço para pressionar Powell a reduzir os juros – e, assim, conseguir fazer a economia crescer mais e mais rápido como uma forma de tomar impulso para as eleições legislativas de 2026, que renovam inteiramente a Câmara dos Deputados e cerca de um terço do Senado dos Estados Unidos.

Em outras palavras, 2026 é a eleição da vida de Trump, onde ele poderia conseguir a maioria para mudar a Constituição dos Estados Unidos e obter, por exemplo, o direito à nova reeleição – que lá é vedada, mesmo de forma não contínua –, além de mudanças institucionais que ele mira. Para isso, em tese, precisaria entregar mais crescimento econômico, mas pelo jeito trocou os pés pelas mãos. 

A bolsa de horrores

Apesar de haver uma crença arraigada de que Trump tem por alvo a “economia real”, isso possivelmente ignora que a preocupação do presidente americano seja a roleta russa da bolsa de valores. Com anos de valorização acionária sem tanta relação com a realidade, o perigo disso sempre esteve nos investidores perceberem que as joias da bolsa – as chamadas big techs – poderiam ter pés de barro, levando a quedas e desinvestimentos.

A fragilidade dessa realidade ficcional estimulou os cabeças das big techs a apoiar Trump, buscando esquemas protecionistas que fornecessem a blindagem aos crescentes ganhos chineses – que fizeram muito com pouco, como no rumoroso caso da Deep Seek, a inteligência artificial chinesa com um custo-benefício excelente, acertando precisamente as ações das big techs e suas gigantescas captações no mercado acionário.

O grande problema é que as mesmas big techs são favorecidas por uma cadeia global de produção e, também, de consumidores. Quando Trump anunciou suas mega tarifas e, em seguida, colheu um pânico nos mercados, ele teve de voltar atrás e suspender a ameaça, mantendo apenas aquelas voltadas contra a China, em relação às quais teve de fazer um novo reparo dias depois: excetuar os produtos eletrônicos vindos do país asiático.

A explicação do remendo feito pelo governo americano é básica: as tarifas altas e abrangentes contra a China atingiriam corporações americanas com fábricas naquele país – como, por exemplo, a Apple, ou mesmo (e isso é também bastante irônico) a Tesla de Elon Musk, que hoje protesta envergonhadamente contra o tarifaço, enquanto outras figuras assumem o protagonismo sobre o atual governo.

Aí chegamos ao ponto culminante: Trump se baseou em figuras como Peter Navarro – um notório charlatão que cita a si mesmo, sob um pseudônimo que é o anagrama do seu sobrenome, nos seus livros sobre economia –, ou Scott Bessent – um antigo colaborador de George Soros no fundo de hedge que quebrou o Banco da Inglaterra nos anos 1990 –, os quais lhe venderam a estratégia que só os inteligentes poderiam ver.

Ambos, Navarro e Bessent, são figuras pessoalmente muito diferentes, mas vendem a Trump as ilusões que ele quer ouvir, em mais um caso da ambição fatal da vítima de estelionato. No jogo, com piscadas recorrentes e queda na popularidade de Trump, abreviando a lua de mel, eles podem ter uma batalha morro acima difícil demais para lidar, agora com Wall Street pouco feliz com suas travessuras.

A China irredutível e o clímax do caos global

Se nos últimos anos Joe Biden manteve a guerra comercial de Trump em fogo brando contra os chineses, mas atraindo os europeus para junto de si, as medidas atuais mudaram o curso dos eventos. Os europeus, agora atingidos, ensaiaram uma reaproximação com os chineses, marcando um duro golpe em Trump, que esperava uma subserviência aos seus ditames. O presidente americano não deveria ter sido surpreendido por isso, mas foi. 

Na China, com uma unidade interna muito grande em torno de si – coisa que Trump não tem e, inclusive, vê evoluir em seu desfavor –, Xi Jinping recebeu o premiê espanhol Pedro Sánchez, enquanto seu primeiro-ministro manteve um encontro com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen – ela em um surpreendente giro destoante aos Estados Unidos –, além de ser recebido calorosamente em um giro pela Ásia.

Como pontua o insuspeito economista Peter Schiff, ele próprio um republicano seguidor da Escola Austríaca: “A China não precisa do dólar americano. Precisamos que a China precise do dólar” – o que é um argumento verdadeiro, mas aponta para a grande questão aqui: o sistema do dólar é, em grande medida, sustentado pela colaboração na outra ponta – e isso se sustenta pelo que apontamos no início, isto é, de como Pequim se utiliza virtuosamente do dólar para se alavancar.

O paradoxo dessa história é que o sistema do dólar permitiu aos Estados Unidos ganhos exorbitantes, principalmente depois do fim da Guerra Fria, com ganhos relativos inclusive sobre seus sócios ricos. Mas dependeu de fortalecer atores do mundo emergente, que se enriqueceram e se reorganizaram, colocando em xeque o próprio sistema monetário internacional, que inclusive é dependente deles.

A ruptura sino-americana pode gerar efeitos nocivos para a China, mas é ela que tem a produção, pode contornar a falta de consumo com a descoberta de novos mercados ou mesmo medidas de estímulos para seu mercado interno. Os Estados Unidos é que possuem a demanda, mas não a produção – não têm condições de produzir no preço ou quantidade necessários, o que só poderia mudar no longuíssimo prazo, como observa Isabella Weber.

No momento atual, a exemplo da fábula de Andersen, Trump desfila despido, enquanto na sua imaginação ele estaria trajado com a estratégia que só os inteligentes entendem – isso depois de uma criança, na sua pureza, ter revelado à multidão que o rei está nu. Tudo está à mostra. E sem o segredo e o sagrado, o poder não se sustenta. Trump volta ao tempo dos Luíses da França e retoma o mercantilismo, agora como estágio senil do neoliberalismo.

(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.