No final de 1968, Henry Kissinger caminhava para ser o homem forte das relações exteriores dos Estados Unidos, no mandato do recém-eleito Richard Nixon. Ele relatou a William Buckley Jr ter alertado o novo presidente sobre o Vietnã, dizendo que “se Thieu encontrasse o mesmo destino de Diem, a palavra que será espalhada para as nações do mundo é que pode ser perigoso ser inimigo da América, mas ser amigo da América é fatal”.
Na ocasião, Kissinger não lançava mão de um aforismo cínico: ele fazia uma profecia tenebrosa sobre o futuro americano, vaticinando que Nixon não poderia permitir a queda do novo presidente sul-vietnamita – e seu aliado na Guerra do Vietnã – Nguyen Van Thieu. Anos antes, John Kennedy tinha abandonado à própria sorte o presidente Ngo Dinh Diem, literalmente deixado para morrer por Washington durante um golpe militar sangrento.
Kissinger considerava que seu país tinha de manter os compromissos com seus aliados, sob pena de parecer um amigo desleal. Seis anos depois desse alerta, o mesmo Thieu partiu em fuga desesperada, denunciando a traição americana, meses antes da queda de Saigon para os comunistas. O “se” da profecia foi confirmado, portanto não é de se estranhar que ela seja relatada como uma afirmação, já que a História e o erro lhe amputaram a condicionante.
Quando disse isso, Kissinger parafraseava o geopolítico russo Alexey Efimovich Vandam (Edrikhin), que, em 1912, arrematava que os chineses descobriram que “é ruim ter um anglo-saxão como inimigo, mas Deus nos livre de tê-lo como amigo!”, depois que os americanos, na restituição à China de parte das indenizações devidas pela Revolta dos Boxers, financiaram bolsas de estudos aos locais para ganhar corações e mentes contra a monarquia chinesa.
A mensagem de que é fatal ser amigo dos Estados Unidos, contudo, demorou décadas a se espalhar para as nações do mundo. Mas a recente vitória de Donald Trump e os constantes, e bruscos, giros de Washington obrigam os líderes mundiais a, quem sabe, considerar a profecia feita por Kissinger – e que o próprio tentou evitar, a ponto de relutar inutilmente na operação para evacuar os americanos de Saigon, contribuindo para a trágica foto final.
Trump, Biden e Trump de novo
Depois de Thieu, muitos líderes ou países, apoiados pelo consenso bipartidário americano, caíram em desgraça em razão da mudança de humores em Washington – Saddam Hussein que o diga. Sempre houve o caso de alianças de presidentes de um partido não serem respeitadas pelo novo ocupante da Casa Branca – vide como Barack Obama se mostrou desdenhoso com Lula no Brasil ou hostil com Bashar al-Assad na Síria.
Um caso emblemático é a Ucrânia, com a dramática expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para lá. O consenso político europeu aceitou as duras ordens de Joe Biden para gastar o que tinha, e o que não tinha, para derrotar Vladimir Putin. Apoiar Biden, mesmo em uma empreitada duvidosa e cheia de riscos, era assumir os custos de uma aliança tão frutífera em sua essência, consideraram a contragosto os europeus.
O problema é que quatro anos depois, em parte pelas consequências econômicas da guerra na Ucrânia, Donald Trump voltou à Casa Branca, mais hostil ainda à Europa. Todo o sacrifício que os europeus fizeram nos últimos três anos, em nome da parceria com Washington, perdia inclusive o sentido, ainda mais com Donald Trump ameaçando ocupar a Groenlândia, tomar o Canadá – cujo Estado é chefiado pela Coroa Britânica – e ainda tarifar os europeus.
Nem queremos nos demorar em uma análise do fantástico desastre que foi o plano de Biden para a Ucrânia – e como suas consequências contribuíram para sua derrota eleitoral, na forma de inflação e juros altos –, nem tripudiar sobre os liberais e a setores da esquerda de que nisso Trump está, ao seu modo, certo. O objetivo aqui é alertar para algo muito maior: a cada mudança radical saída das urnas, é possível dizer que ainda há um único Estados Unidos?
Há quem possa responder que países não têm aliados eternos, nem inimigos perpétuos, mas interesses, parafraseando Kissinger – a frase novamente não é dele, mas de Lord Palmerston –, só que não é disso que se trata; é da capacidade dos Estados Unidos de agir de forma coerente após cada eleição, não se tornando praticamente outro país, por força do impasse entre sua elite rachada.
Israel e China, as exceções
O leitor atento poderá dizer que, no entanto, a política de alinhamento automático, cego e total com Israel persiste – e que esse elemento tão essencial não mudou. Obviamente, há nuances, embora Biden, que deveria ser mais avesso a Netanyahu, tenha apoiado Israel mesmo no atual contexto de genocídio em Gaza. Da China pode-se dizer o mesmo, pois um consenso bipartidário parece ter se sedimentado para bloqueá-la.
Trump e Biden desenvolveram uma maneira própria de manter uma regularidade com esses dois países chave. No entanto, a posição quanto a Israel é não só sobre o papel ativo do seu lobby dentro dos Estados Unidos, mas principalmente pelo fato de que sua elite não se comportou jamais como a contraface colonial no esquema imperialista, por uma razão simples: ela não é, mas sim apêndice de uma fração dominante nos Estados Unidos, isto é, a metrópole.
Israel, portanto, escapa aos ditames da política externa americana, inclusive de seu recém-descoberto transtorno de personalidade. Israel é o maior exército ocidental instalado dentro do Oriente Médio, e consegue traçar sua estratégia nacional como um trator dentro dos Estados Unidos, bem sabedor das peculiaridades americanas – que são também suas –, mesmo tendo diante de si um Trump em espírito de distensão.
No caso chinês, a ambiguidade estratégica criada pelo próprio Kissinger, contudo, cai para a guerra comercial de Trump, que ousou perder um financiador importante da dívida pública para, simplesmente, evitar ou frear o desenvolvimento tecnológico dele. Biden, igualmente, resolveu lançar mão de uma guerra contra a Rússia, mas não desfez a pressão contra a China, fazendo o gesto que Kissinger definiu como unwise – a rigor, “não-sábio”.
A luta em duas frentes, que Trump quer evitar, embora isso não seja fácil, ganhou contorno real, com Xi Jinping e Vladimir Putin protagonizando inúmeras cúpulas bilaterais nos últimos anos, as quais produziram a mais sólida relação entre China e Rússia de toda a história – superando, inclusive os anos 1950, quando a China e a União Soviética deveriam, em tese, viver sob a fraternidade do socialismo real, o que não aconteceu exatamente.
Trump de volta à América Latina
A aposta mais geral das lideranças latino-americanas progressistas foi buscar uma sinergia com a administração Biden, com exceção talvez do México que escolheu, assertivamente, ficar à meia distância. Não faltaram demonstrações de boa vontade e sinais, que Biden preferiu ignorar, inclusive descumprindo suas promessas para Cuba, mesmo antes do conflito na Ucrânia e ainda com maioria no Congresso.
O Brasil, no terceiro governo de Lula, buscou um diálogo permanente com a frente ampla americana – lá encabeçada por liberais, mas com a esquerda na sua base organizada –, apostando em enviar, durante vários momentos de 2024, gestos de boa vontade para Kamala Harris e até freando seu movimento em direção ao Sul Global – com o veto à Venezuela no Brics ou a não adesão à Nova Rota da Seda em parceria com a China.
Se faltaram gestos positivos de Biden ao longo de quatro anos, por outro lado, o governo brasileiro apostou alto demais, não só na amizade com os democratas quanto, ainda, na força eleitoral deles. Por isso, é simplesmente mais fácil para o México hoje reagir à desumana expulsão de imigrantes indocumentados ou, ainda, responder às ameaças de tarifação pelos seus produtos pelos Estados Unidos.
Guardadas as devidas proporções, a exemplo da Europa, o Brasil sente na pele a fatal amizade com os Estados Unidos. Não que seja novidade: no passado, a gestão conservadora de George W. Bush foi capaz de cumprir acordos com o Brasil, mas quando se supôs uma relação melhor ainda com Obama, por razões supostamente autoevidentes, houve uma profunda frustração – sobre a qual pouco se fala.
A situação atual de Brasília poderia ser mais confortável, inclusive por toda construção multilateral da política externa altiva e ativa dos primeiros governos petistas, as quais legaram espaços de primeira ordem como o Brics – mas tudo isso, no entanto, tem sido relegado ao segundo plano pelos hierarcas do Itamaraty. A isso se somam as manifestações desencontradas sobre como reagir às tarifas trumpistas.
A autossuperação da doutrina Kissinger
Ironia das ironias, Kissinger, que era um anticomunista visceral e que nunca procurou entender o marxismo, terminou por ser tratado com mais deferência na China – que ele julgava ser sua grande vitória pessoal, mas para a qual abriu caminho para o país oriental avançar de forma colossal. De certa forma, o orgulho de Kissinger com a China é quase a comemoração de uma vitória pessoal que, na prática, é uma derrota política involuntária e cotidiana.
Em sua derradeira obra, publicada postumamente, o jornalista e sinólogo americano Edgar Snow profetizou que a visita de Nixon à China em 1972 não faria o país vermelho se render – ou se converter lentamente para distante de Mao e do comunismo. Talvez Kissinger ansiasse por isso ou, apenas, supusesse que era preciso agir desesperadamente para conter a pressão soviética – o que seria da economia política, ele não sabia, embora talvez tivesse pouca escolha.
Hoje, o problema não está em largar ou não a mão do presidente vietnamita – e o mesmo raciocínio se aplica a Volodymyr Zelensky na Ucrânia –, mas certamente deveria envolver um exame de racionalidade sobre como e por que os americanos foram ao Vietnã ou à Ucrânia. E isso tem menos a ver com estratégia internacional e mais com o modelo econômico – por essa razão, os chineses até agora ganharam relativamente mais no aperto de mãos de 1972.
Assim como o sonho americano terminou por se aniquilar no contexto do neoliberalismo, o realismo de Kissinger entrou em combustão, resultando no pior dos mundos: uma instável metamorfose ambulante a cada eleição. Se o mundo desperta para isso, os chineses parecem realmente ter se dado conta, ainda no começo do século 20, da fatal amizade americana como observou Edrikhin – e por isso os chineses souberam tirar proveito até aqui.
Mas o imperialismo é menos sobre elites metropolitanas – e sua capacidade de gerir seus súditos, assim como a capacidade de resistência deles –, e mais das elites coloniais nativas, que dependem da hegemonia de uma potência externa para conservar sua força artificial no plano interno. Isso salvou os Estados Unidos várias vezes, e pode salvar mesmo agora, nesse contexto indecoroso. Estejamos atentos, caso queiramos nos salvar.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.