Trump não é um mal menor
O nacional-imperialismo de Trump entrou em choque com a linha dominante na Europa porque considera que o maior perigo para a Tríade não é a Rússia, mas a China
“A afeição cega a razão”
– Provérbio popular português
Uma parcela da esquerda mundial acompanha, até com justificado alívio, a perspectiva de fim da guerra na Ucrânia, em função do ultimato de Trump a Zelensky depois de negociações com Putin. Um cessar-fogo seria, evidentemente, uma boa notícia. Mas só porque a alternativa – a espiral de uma guerra inter-imperialista sem fim – seria mais terrível. O giro abrupto da posição de Trump corresponde a uma conclusão realista, tanto econômica quanto militar e, sobretudo, política. A nova estratégia nacional-imperialista hoje no poder em Washington entrou em choque com a linha dominante na União Europeia porque considera que o maior perigo para a Tríade não é a Rússia, mas a China. O cálculo dos EUA é que não se deve hostilizar, simultaneamente, Xi Jinping e Putin, porque o destino da luta pela supremacia da Tríade e, sobretudo, de Washington no mundo seria facilitada, em prazo previsível, de um distanciamento entre Moscou e Beijing. Trump faz um ensaio de replicar a tática Nixon/Kissinger que, no início dos anos setenta, se aproximaram de Mao Zedong contra Brejnev. Esse giro pretendia isolar a URSS, identificada como inimigo principal. Abrir o caminho para o fim da guerra na Ucrânia, admitindo concessões táticas à Rússia como uma “redução de danos” obedece à estratégia de tentar isolar a China.
A aposta da União Europeia de que o elo mais frágil da cadeia de poder internacional é o fortalecimento do imperialismo russo, incendiando a russofobia com a agitação paranoica de ameaça de uma guerra continental, está ao serviço de uma relocalização “defensiva” diante da soberba “isolacionista” dos EUA. A corrida armamentista irá disparar uma vertigem de endividamento público para financiar o complexo militar-industrial, e exigir ajustes fiscais reacionários que ameaçam destruir conquistas sociais populares que ainda foram preservadas. Esta dinâmica não vai interromper a ascensão da extrema-direita nacionalista na Europa, mas acelerá-la. A ironia da história é que o novo “consenso de Bruxelas” pode favorecer a chegada dos neofascistas ao poder. O projeto Trump é indissociável de uma estratégia de subversão dos regimes de democracia liberal que se sustentam na relativa independência de poderes. A esquerda não pode ser indiferente ao fortalecimento da Internacional neofascista. A extrema-direita no poder na Casa Branca é uma ameaça para a América Latina e, especialmente, o Brasil. O bolsonarismo está longe de ter sido derrotado. Trump não é um mal menor.

(Foto: White House / Flickr)
Na tradição marxista nem todas as guerras são iguais, embora em todas as guerras aconteça a “normalização do assassinato em massa”, ou a barbárie. A Segunda Guerra Mundial foi um processo de simultaneidade de várias guerras, em que a determinação que prevaleceu foi de uma guerra inter-imperialista. A Alemanha dirigiu uma coalizão com Roma e Tóquio pelo domínio mundial. Mas foi, em outro grau de análise, uma guerra de libertação nacional da França contra a Alemanha, da China contra o Japão, e uma guerra revolucionária da URSS contra a destruição da primeira República dos Trabalhadores. Ainda em um terceiro grau de análise foi uma guerra contra o regime nazifascista. Quando Churchill decidiu que Londres enfrentaria até o fim Hitler, mesmo sendo uma guerra inter-imperialista, existiu um elemento progressivo, porque a democracia liberal burguesa, em comparação com a ditadura fascista, era um regime político superior. Mas não há nada progressivo na política internacional de Trump. É verdade que erraram feio aqueles que apoiaram a Ucrânia quando consideraram a guerra como “justa” pelo seu direito à existência como Estado independente. Mas a guerra na Ucrânia foi, desde o início, uma guerra injusta, ou uma guerra entre a Tríade e a Rússia, ainda que tenha sido a Rússia a invadir a Ucrânia. Assim como a guerra em Gaza não começou com o ataque do Hamas, não é razoável desconsiderar que a OTAN estava há dez anos manipulando a Ucrânia para fechar um cerco à Rússia. Não deveria surpreender ninguém que, fosse qual fosse o seu desfecho, a Ucrânia, infelizmente, nunca seria independente. A Ucrânia será fraturada pela Rússia e submetida a um implacável pacto colonial em que entregará suas riquezas minerais para garantir o pagamento dos empréstimos que financiaram a compra de armas do parque industrial americano-europeu. A operação ideológica de russofilia que chegou a negar à Ucrânia o direito de existir é tão desprezível quanto a operação ideológica de russofobia de legitimar a guerra como uma luta entre a democracia e a tirania. A decisão de Trump de reconhecer que não há solução militar para a guerra favorece no curto prazo a Rússia. Mas este recuo tático de Washington obedece a um cálculo estratégico. Ganhar tempo sinalizando compensação para a Rússia, enquanto consolida coesão social interna nos EUA, inspirado em Reagan e a campanha contra o “Império do mal”, e tenta alinhar a Europa para intimidar a China.
A guerra na Ucrânia é injusta por que, apesar de ter se iniciado com uma condenável invasão da Rússia, o que explica a sua precipitação, e o que prevaleceu ao longo destes três anos, foi a natureza inter-imperialista do conflito. Aqueles que a definem somente como guerra de libertação nacional da Ucrânia têm que “esconder” que a OTAN está em guerra contra a Rússia. Mas não fosse o apoio da Otan, considerando a devastadora desproporção de forças, a guerra já teria sido encerrada há muito, e a Ucrânia estaria ocupada por Moscou. O que foi inusitado é que tem sido uma guerra por “procuração”. Mas isso não é, historicamente, excepcional. Em 1940, sem o apoio dos EUA, Londres não teria resistido à superioridade militar germânica. A ausência de tropas da OTAN no solo se explica somente porque: (a) Washington, Londres e a União Europeia fizeram um cálculo econômico-social e militar errado de que não seria necessário, subestimando a capacidade da Rússia, mesmo com sua expulsão do mercado mundial; (b) o temor a uma escalada incontível que incendiaria o mundo em perigo real e imediato de guerra mundial, arrastando a China. Não é verdade que a suspensão da guerra, com a preservação das atuais fronteiras, ou seja, uma partilha do território da Ucrânia, autoriza concluir que Moscou estaria agora encorajada a preparar uma nova guerra contra a Europa. A Ucrânia tem o direito a existir como nação independente, mas o desenlace do processo aberto nos últimos dez anos será a anexação de um quarto do território pela Rússia, enquanto Kiev não será senão um Protetorado da UE e dos EUA.
O maior beneficiário da etapa histórica iniciada com o fim da URSS e a restauração capitalista foi a China. É uma ironia da história que, ao final dos últimos trinta anos, um período de supremacia irrefutável de Washington no sistema internacional de Estados, o desfecho esteja sendo um debilitamento relativo dos EUA, em termos econômicos e políticos, apesar da supremacia financeira e superioridade militar. Em termos absolutos, o PIB da China já é o segundo maior do mundo e, embora já não atinja as taxas de expansão acima de 10% ao ano que alcançou até quinze anos atrás, cresce bem além da média mundial. Podia não ter sido assim. Não existem fatalidades na história.
Parece indiscutível que a classe dominante norte-americana cometeu erros estratégicos, e a direção do partido comunista chinês teve seus acertos. A restauração capitalista na China não exigiu uma etapa caótica de “acumulação primitiva” como ocorreu na Rússia durante a regressão destrutiva dos anos noventa. A passagem para o que, por analogia, se pode caracterizar como capitalismo de Estado, foi um processo econômico-social lento e controlado que, embora tenha acentuado a desigualdade social, erradicou a miséria e reduziu a pobreza, uma façanha histórica. No auge de seu poder de dominação, os EUA viram surgir na China um híbrido histórico que realizou a passagem mais acelerada e formidável de uma sociedade tardiamente rural para uma potência que ameaça a sua hegemonia no mundo. Esta situação criou uma emergência. A eleição de Trump para um segundo mandato expressa um giro de uma fração da burguesia mais poderosa do mundo para uma nova estratégia diante da China. Só pode ser comparado com o impacto da ascensão de Thatcher e Reagan ao poder no início da década dos 80 do século XX. Mas há uma diferença. Agora trata-se de uma contra-ofensiva liderada não por liberais radicais, mas por um programa de extrema-direita, que conquistou apoio incendiando rancores sociais e ressentimentos machistas, racistas, homofóbicos e xenófobos. O nome desta avalanche é, por necessidade de uma analogia, neofascismo. O fascismo na Europa do século passado não foi uma excepcionalidade ou anomalia. Há um padrão. O neofascismo do século XXI confirma que é uma tendência profunda inserida na evolução do capitalismo em sua deriva imperialista. Há uma Internacional neofascista sendo construída no Ocidente. O que está em disputa é o destino da sociedade humana.
Durante a etapa da globalização, a classe dirigente da Tríade ficou cega pela ilusão de grandeza. Nunca foram tão fortes, e nunca erraram tanto face à China. Pelo menos cinco fatores foram determinantes para este paradoxo: (a) a aposta da burguesia yankee, associada à europeia e japonesa, favoreceu o acesso da China a investimentos dos países centrais numa escala inaudita que, somados aos investimentos da diáspora chinesa no mundo, turbinaram um crescimento ininterrupto imprevisto; (b) a aposta de que um ciclo de acelerada industrialização e urbanização favoreceria a formação de uma burguesia interna e de uma próspera classe média como sujeitos sociais de uma revolução democrática que deslocaria o monopólio político do aparelho do partido comunista, fraturando a burocracia estatal, não se confirmou; (c) a aposta na divisão da liderança do partido comunista ou subestimação de sua capacidade de preservar a coesão política e militar interna; (d) a aposta de que a transferência de parques industriais para China, onde os custos produtivos eram, comparativamente, muito mais baixos, iria acelerar a acumulação de capital nos centros do capitalismo mundial, e baratear o acesso internacional a mercadorias baratas, favorecendo um padrão de consumo que garantiria a estabilidade de regimes democrático-liberais; (e) a aposta de que a China estaria disposta a aceitar, indefinidamente, um lugar subalterno no sistema de Estados, respeitando o papel da Tríade: a aliança dos EUA, Reino Unido e União Europeia associados ao Japão. Erraram.
Embora esteja disposta a negociar para ganhar tempo, a China confirma iniciativa diplomática com a Rússia e os Brics, audácia econômica com investimentos acima de US$1 trilhão em quinze anos, sobretudo na África subsaariana e na América Latina, empreendedorismo em ciência e tecnologia de ponta (microprocessadores, nanotecnologias, farmacêutica, transição energética), modernização e fortalecimento militar (o maior exército do mundo com mais de dois milhões de soldados). A pressão sobre a Europa, tentando impor uma paz imediata na Ucrânia, a intimidação do mundo árabe e islâmico, ameaçando levar a limpeza étnica palestina até o fim, e a escalada de guerra comercial sobre a China foram só os primeiros passos. A geografia conta. O Brasil fica na América Latina. Trump é o inimigo principal.
