Trump no poder: não é erro, é ensaio
Humilhação a Zelensky na Casa Branca foi episódio inserido no contexto de um projeto político de reconfiguração do poder
* Especial para Opera Mundi
Os Estados Unidos sempre se enxergaram como o condutor do mundo. Desde sua ascensão como potência global, no século XX, apresentaram-se como o arquiteto da ordem internacional, um império que não se via como tal, mas que impunha seus modelos, sua cultura e suas regras. Seu poder nunca se apoiou apenas em sua força militar ou em suas sanções econômicas, mas em algo mais profundo: a capacidade de tornar seus interesses universais e sua cultura irresistível. Foi assim que se estabeleceram como modelo de civilização, mesclando soft power – Hollywood, a cultura pop, o American Way of Life – com a ameaça constante de coerção. A persuasão e a violência sempre caminharam juntas, cada uma operando no momento adequado.
O liberalismo econômico e político que exportaram nunca foi um fim em si mesmo. Serviu a um propósito maior: a manutenção de uma estrutura de dominação que, na superfície, se apresentava como democrática e inclusiva, mas que, na prática, dependia da exclusão sistemática dos que não se enquadravam. O império americano aprendeu cedo que não precisava governar diretamente, nem ocupar territórios indefinidamente. Bastava construir dependências e controlar o imaginário coletivo, garantindo que a ideia de progresso estivesse sempre atrelada ao modelo ocidental-liberal. Mas essa estrutura, que parecia sólida, começa a ruir.
Agora, porém, o império muda de rumo. Trump e Musk não querem apenas desmantelar o Estado americano. Querem redesenhar sua função. Estão construindo um modelo, um experimento que poderá ser replicado onde for conveniente. O que acontece hoje nos Estados Unidos não é uma anomalia, nem um erro de percurso. É um ensaio. E a intenção é clara – transformar a destruição do serviço público em um espetáculo bem-sucedido, pronto para ser exportado.
A destruição do Estado como método político não é uma inovação. Desde Joseph de Maistre (1753-1821), que via a Revolução Francesa como um equívoco a ser corrigido pela restauração da monarquia e do poder divino, até Carl Schmitt (1888-1985), o jurista do nazismo que argumentava que a política só existe na oposição entre amigos e inimigos, a ideia de que a ordem precisa ser desmontada para dar lugar a algo novo sempre circulou entre os pensadores da reação. Julius Evola (1898-1974), filósofo tradicionalista e um dos ideólogos do fascismo italiano, levou essa lógica ao extremo: não bastava destruir um sistema, era preciso demolir o próprio princípio da igualdade e da razão como fundamentos da sociedade. Seu ideal não era um novo Estado, mas um retorno a uma ordem hierárquica e mística, onde o poder pertencesse a uma elite escolhida.
O projeto atual de Trump e Musk se encaixa nessa linhagem, ainda que reformulado. Eles não defendem a abolição do Estado, mas sua redução a uma ferramenta exclusivamente voltada aos interesses privados e à repressão. Não há um objetivo claro de construção de uma nova ordem pública – apenas a eliminação progressiva do que ainda resta de bem comum. O esvaziamento do Estado não se dá de maneira silenciosa ou burocrática, como nas privatizações do século XX. Ele se tornou um espetáculo, um evento midiático onde a precarização do serviço público é encenada como prova de sua ineficiência. O DOGE (Departamento de Eficiência Governamental), a nova máquina de desmonte federal, não busca apenas cortar. Busca humilhar. Expor servidores públicos como parasitas, transformar cortes de orçamento em trending topics e vender a destruição como uma libertação.
Essa lógica, que combina choque econômico com guerra cultural, não se restringe aos Estados Unidos. Em 2019, durante um jantar em Washington, Bolsonaro declarou: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer.” A fala, que à época poderia parecer apenas mais uma bravata, condensava a essência do projeto bolsonarista. O Brasil, sob sua ótica, não precisava de políticas públicas, mas de uma purificação – um expurgo ideológico, administrativo e simbólico. O método era o mesmo que agora se vê nos Estados Unidos: primeiro, arrasar. Depois, apresentar o próprio caos como justificativa para entregar as sobras ao mercado.

Zelensky recebe reprimenda de Trump durante visita à Casa Branca
David Harvey já alertava: o neoliberalismo não é apenas um arranjo econômico, mas um projeto político de reconfiguração do poder. Ele não se limita a esvaziar o Estado em favor da iniciativa privada – redefine a própria relação entre governantes e governados, solapando as bases da coletividade e minando qualquer possibilidade de resistência organizada. Sua vitória definitiva não se dá apenas na política econômica, mas na transformação do imaginário social, na normalização da precariedade e na difamação do público.
Esse processo, no entanto, não se restringe à economia – ele opera sobre o próprio conceito de democracia. Wendy Brown argumenta que o neoliberalismo não destrói o Estado de uma só vez, mas o remodela para que se torne um instrumento de desdemocratização. Ao contrário da velha retórica liberal sobre um Estado menor e eficiente, o que vemos é um Estado reconfigurado para servir exclusivamente ao capital e à repressão. A suposta diminuição do setor público não significa uma retirada do governo da vida social, mas uma inversão de prioridades: enquanto o bem comum é desmantelado, o aparato coercitivo e os subsídios ao grande capital se expandem. O neoliberalismo não quer menos governo – quer um governo que só responda aos interesses da elite econômica, convertendo a cidadania em mera sujeição ao mercado. Trump e Musk não desejam um Estado mais enxuto, mas um Estado capturado, onde a política se dissolve e a governança se torna um privilégio dos que podem pagar por ela.
Ontem, 28 de fevereiro de 2025, Trump e seu vice, J.D. Vance, desmontaram um dos últimos pilares da aliança entre os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Zelensky, até então peça-chave na engrenagem da resistência ocidental à Rússia, foi tratado como um operador menor dentro de um jogo que não controla. Esse episódio não foi um gesto isolado, mas um movimento calculado – um recado de que a nova administração americana não está interessada em manter a ordem global que seus antecessores ajudaram a construir. Não se trata apenas de uma ruptura com a OTAN, mas de um abandono simbólico do modelo de hegemonia que os EUA praticaram por décadas.
A destruição do Estado sempre precisa ser vendida como uma necessidade, um destino inevitável. Para isso, Naomi Klein identificou o uso sistemático da Doutrina do Choque – a estratégia de explorar crises, ou mesmo fabricá-las, para implementar mudanças que, sob condições normais, seriam inaceitáveis. Trump não esperou furacões, recessões ou atentados terroristas para justificar sua política de terra arrasada. Ele transformou o funcionalismo público no inimigo interno, um bode expiatório perfeito. Quanto mais o governo parece disfuncional, mais argumentos há para privatizá-lo. Quanto mais as políticas públicas são sabotadas, mais se reforça a crença de que o mercado precisa assumir seu lugar.
O que se desenha hoje nos Estados Unidosnão é uma transição para um modelo melhor. É a inauguração de uma era onde o governo é privatizado, a soberania é terceirizada e a democracia se torna um conceito obsoleto.
E o pior é que não será um experimento isolado.
Será um protótipo para o mundo, o ensaio de um novo regime onde desconstruir para reconstruir se torna a justificativa última para a destruição.
