Björn Höcke lidera o Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão) na Turíngia e ficou em primeiro lugar na recente eleição estadual, ainda que sem maioria absoluta. Na Saxônia, houve outro avanço da AfD e nas próximas eleições em Brandemburgo, o partido igualmente está em primeiro nas pesquisas. Todos são estados que pertenceram à antiga Alemanha Oriental, o que desperta uma óbvia curiosidade.
Höcke, em particular, é o principal nome da tendência interna chamada Der Flügel, “A Ala”, supostamente a extrema-direita da extrema-direita. Anos atrás, ele foi investigado por atacar a existência do Memorial do Holocausto, além de soltar uma série de apitos de cachorro para a direita neonazi. Nada que o tenha impedido de concorrer nas últimas eleições estaduais, uma vez que ele foi tratado com o mesmo rigor da esquerda radical.
Na Alemanha da teoria dos dois demônios, o poderoso Gabinete de Defesa da Constituição [Bundesamt für Verfassungsschutz] gastou anos investigando integrantes do Linke por “ligação com o comunismo” – e isso equiparado à negação do Holocausto: ter sido investigado pelo Verfassungsschutz foi um grande prejuízo para Bodo Ramelow, governador de esquerda cessante da Turíngia, enquanto a não condenação de Höcke foi uma vitória.
No mais, a República Federal Alemã, ironicamente, segue sem uma Constituição, o que parece preciosismo técnico, mas não é: A Lei Fundamental [Grundgesetz], que faz às vezes de uma Constituição [Verfassung], foi imposta por americanos, britânicos e franceses, alinhados com a burguesia local ao final da Segunda Guerra Mundial. Não deixa de ser irônico que haja um gabinete para defesa de uma Constituição que, a rigor, não existe.
Nazismo, antes e depois na Alemanha
A Democracia Cristã sempre foi uma espécie de “partido do regime” na Alemanha Ocidental. Seu líder original, Konrad Adenauer, era um militante antinazista, e o mesmo vale para para seu sucessor, Ludwig Erhard. Isso não quer dizer que a antiga Alemanha Ocidental não tenha tido uma boa dose de nazistas nos seus partidos “democráticos”. Kurt Georg Kiesinger, sucessor de Erhard, foi um grande exemplo disso.
Adenauer, Erhard e Kiesinger se sucederam no poder em tempos nos quais a Democracia Cristã era uma força imbatível em termos federais. Mas Kiesinger, ao contrário de seus rivais, carregava a mancha de ter ocupado altos cargos no Ministério das Relações Exteriores do regime nazista, o que lhe valeu a prisão ao final do conflito. Perdoado, como muitos “quadros técnicos”, ele foi beneficiado por uma narrativa que lavava seu passado.
Ao caso de Kiesinger pode se somar o de Hjalmar Schacht, o banqueiro liberal que serviu como ministro das Finanças nos primeiros anos de Adolf Hitler, ou do aviador Johannes Steinhoff, que chegou a comandar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em seus primeiros anos. Os argumentos para justificar esses perdões iam desde que “eles não eram nazistas ativos”, “não tiveram escolha na época” ou “eram quadros indispensáveis”.
No fundo, a elevação do anticomunismo como doutrina central nos países ocidentais na Guerra Fria, naturalmente, relativizou o papel desses quadros. Embora todos soubessem do que se tratava, o discurso oficial que relativizava o papel de Kiesinger na Alemanha Nazista, por sua vez, caiu por terra com reportagens que demonstraram sua atuação providencial, elaborando discursos, e sua relação próxima ao então ministro Joachim von Ribbentrop.
Cortando para os dias atuais, muitas lideranças da AfD possuem indisfarçáveis relações com a Democracia Cristã. Tino Chrupalla, um dos co-líderes federais do partido, foi da juventude democrata cristã. Alice Weidel, a outra co-líder, recebeu uma bolsa de estudos para seu doutorado da Fundação Konrad Adenauer, ligada à Democracia Cristã. O radical Höcke teve, igualmente, vínculos com a juventude democrata cristã.
Do mesmo modo que a Democracia Cristã jamais foi um partido formado, exclusivamente, pela direita dissidente do nazismo, a moderna AfD não veio do nada: seus quadros não apareceram hoje de uma máquina do tempo vinda diretamente dos anos 1940 – o fato de disputar bases com a esquerda não muda o fato de que seus quadros vieram da “direita democrática e normal”.
A disputa alemã hoje
Esse avanço da AfD em três estados “orientais” aparece no mapa das recentes eleições europeias na Alemanha, que remete à divisão da Guerra Fria, com a Democracia Cristã vencendo em todo o Oeste e a AfD levando a melhor na velha Alemanha Oriental. Teses de que o Leste era propenso ao “totalitarismo” por causa do socialismo real escondem a adesão desses estados aos partidos da ordem da Alemanha Ocidental no meio do caminho.
As três últimas décadas foram de decepção com a Democracia Cristã, exceção feita a Brandemburgo, estado que envolve a capital Berlim e sempre elegeu a Social-Democracia, que inclusive já governou o estado em coalizão com o Linke. Na Turíngia, o recente governo de esquerda veio na esteira de décadas sob a Democracia Cristã. Na Saxônia, a Democracia Cristã sempre esteve no topo.
Como em muitas partes da antiga Alemanha Oriental, que era um Estado unitário, quando os estados foram restabelecidos no processo de anexação pela Alemanha Ocidental, a centro-direita foi favorecida e governou boa parte deles – além da Democracia Cristã, a princípio, ter vencido os primeiros pleitos federais na região, com Helmut Kohl, o premiê da “reunificação”, recebendo a gratidão dos antigos alemães orientais.
É só a partir daí, com o crescente esvaziamento da Alemanha, que se pode falar na ascensão da extrema-direita em termos abertos. De um lado, com a burguesia alemã e suas instituições autorizando a aprovação da AfD como partido. Do outro, trabalhadores desesperados aderindo às velhas explicações xenofóbicas e racistas sobre a crise do capitalismo. Junto disso, havia ainda um recuo das esquerdas.
Lembrando que o gabinete federal de Gerhard Schröder, na virada do século, foi aquele que aprovou as medidas de desmonte da proteção trabalhista – e normalizou um privatismo que nem a Democracia Cristã ousou colocar em marcha, pelo menos até que Angela Merkel, uma dissidente da Alemanha Oriental, chegasse ao poder nacionalmente em 2004. Isso estimulou a criação do Linke, mas ele foi absorvido pela força gravitacional do regime.
A estagnação salarial é a regra da Alemanha contemporânea, com diminuição na extensão de serviços públicos dentro de uma estrutura engessada. Não chega a ser pior do que no resto da Europa, mas é bastante disfuncional, vide a tragédia da Covid-19 naquele continente, onde, embora longe da desgraça americana, os resultados não foram nem de longe satisfatórios, se comparados com o Extremo Oriente.
Atualmente, na Turíngia, a esquerda não perdeu exatamente o seu tamanho. Mas o racha do Linke que originou o Razão e Justiça – ou bloco Sarah Wagenknecht (BSW, em alemão) – dividiu os votos com o Linke, superando-lhe e ainda atraindo votos de outros campos, descontentes com as políticas neoliberais e com a submissão à OTAN, do atual governo e das esquerdas. Do outro lado, inúmeras críticas surgem contra o novo partido de esquerda.
De certa forma, Wagenknecht buscou sintetizar certos clamores da base de trabalhadores, que não escondem a insatisfação com a imigração – e como isso gera efeitos sobre emprego, salários e serviços sociais em um sistema tão burocrático quanto austero como o alemão. A escolha do BSW é defender restrições à imigração, além de se opor à OTAN e sua guerra na Ucrânia, o que drena recursos do orçamento público alemão.
Todos esses itens geram polêmicas consideráveis na Alemanha e no mundo, uma vez que o BSW, com seu personalismo, estaria violando cânones da esquerda. Do outro lado, é possível argumentar que Wagenknecht, antes uma estrela marxista que tem pasteurizado suas opiniões em direção ao apoio de uma Social-Democracia clássica, simplesmente disputou as massas pela esquerda em vez de deixar o campo para a AfD.
Seja como for, o BSW tem obtido resultados melhores não apenas que o Linke, mas também do que o Partido Social-Democrata Alemão (SPD, na sigla local), e se colocou como uma força de fora do sistema – em uma aposta na crise fatal do regime alemão, o que exige da esquerda romper com dogmas para evitar que a AfD se torne o partido nacionalmente hegemônico, o que nos jogaria nos anos 1930.
AfD: partido de tendências e rachado
Höcke, o líder da ala direita da AfD e chefe do partido na Turíngia, a rigor defende uma velha extrema-direita pouco disposta a se alinhar com os Estados Unidos ou Israel, mas que alude a práticas assombrosas – o que tampouco se alinha à causa palestina, uma vez que seu discurso é antissemita, islamofóbico e arabofóbico ao mesmo tempo. Em vez de querer ser a perna direita do sistema, ele quer implodir o sistema.
Contra o Flügel, e seu assustador discurso “social-patriótico” ou “nacional-revolucionário”, se insurge a tendência Alternativa Moderada [Alternative Mitte], otanista e pró-americano. O que equivale dizer que vai dentro dos limites do Ocidente: como não há problema em ser islamofóbico e anti-imigração, tudo bem; é isso que essa tendência faz e defende. Assim como foge a apitos de cachorro para neonazistas ou numa busca de implodir o regime.
O que os “moderados” querem é ser o equivalente alemão do Irmãos da Itália [Fratelli d’Italia] de Giorgia Meloni ou o Conferência do Japão [Nippon Kaigi 日本会議], ala de extrema-direita do Partido Liberal Democrata do premiê Fumio Kishida – ambos herdeiros diretos das forças que lideravam Itália e Japão durante os tempos do Eixo, mas que hoje seguem no poder sob a hegemonia da estratégia americana para o mundo.
Essa tese move o “Alternativa Moderada”, inclusive com nomes como Beatrix Von Storch, neta de um ministro nazista e que não esconde seu pedigree – ela inclusive visitou o Brasil para se encontrar com Jair Bolsonaro –, mas que buscam fazer da AfD algo como os Fratelli ou o Nippon Kaigi: a ultradireita mais radical possível dentro da hegemonia dos Estados Unidos, o que lhe faz aparentemente ser menos “radical”.
De resto, as trocas de acusações entre as alas da AfD se aceleram, em uma pausa enquanto eles competem para dar a declaração racista e xenofóbica mais radical contra as minorias do Sul Global. A sua dissidência, o Partido Azul, tampouco deu certo, e o partido se desfez rapidamente, sem ser capaz de atrair eleitores que fugiam do extremismo politicamente incorreto do Flügel.
Na sua composição social, a AfD aparece como um partido financiado por ricos doadores, mas paradoxalmente muito bem votado por trabalhadores comuns e desempregados, as duas categorias nas quais ele venceu nas últimas eleições europeias. É sintomático. Inclusive porque é importante separar a origem dos dirigentes da AfD de sua base, especialmente numerosa na desfavorecida – e traída – ex-Alemanha Oriental.
Esse diagnóstico nos coloca em um cenário no qual não apenas o AfD precisa fazer maioria absoluta para governar, diante da lógica de cordão sanitário que prevalece no establishment partidário alemão, mas em que, mesmo que ele vença uma eleição federal, teria de resolver seu racha interno – ou, de repente, ele só venceria uma eleição federal se resolvesse seus problemas internos.
Epílogo: os fantasmas de Marx e Engels
Há exatos 30 anos, a Folha de São Paulo falava que “Um fantasma ronda a Europa” para se referir à extrema-direita crescente na Rússia, com Vladimir Zhirinovsky, e na França, com Jean-Marie Le Pen, o pai de Marine. O título aludia ao famoso início de O Manifesto Comunista, o qual comporta incontáveis traduções para o referido trecho, produzindo uma boa dose de anedotas e divergências.
A escolha do verbo rondar para descrever o que faz o fantasma [Gespenst], possivelmente da tradução de Álvaro Pina para o português d’O Manifesto, dos anos 1970, talvez seja próxima do verbo alemão gehen um [rodear], embora tenha um sentido militar e policial – que só é contrastado no Norte de Portugal, onde tem sentido também transgressor e carnavalesco –, mas nenhuma das duas está no “geht um” alemão, cujo sentido é literal.
Na tradução de Barata-Moura, o fantasma, trocado por “espectro” tão somente “anda”, enquanto na centenária tradução brasileira do anarquista alagoano Octávio Brandão, a primeira genuinamente nossa, o “espectro” apenas “existe” – além das infindáveis polêmicas entre o uso de fantasma e espectro, ainda que caía melhor o primeiro, uma vez que Marx e Engels eram leitores de Shakespeare, para quem os fantasmas têm uma função particular.
Já na primeira tradução para o inglês, se usou o verbo haunt – de modo muito vulgar, assombrar – em uma clara alusão a Shakespeare, uma tradução “criativa” com a supervisão e aprovação do poliglota Friedrich Engels, influenciando também a tradução francesa, o que gerou belas análises na filosofia em inglês e em francês – como em Jacques Derrida, no seu Espectros de Marx, e em Mark Fisher e sua Assombrologia/Hauntology.
O russo бродить recupera a casualidade de “gehen um”, mas no chinês temos a opção por yóudàng 游荡, que é o próprio crime de vadiagem, o que é maravilhoso. A ronda do fantasma do comunismo acaba por atribuir à entidade o ato de rodear espreitando, pronto a dar um golpe no inimigo – que no português brasileiro atual aparece como um conotação bélico-policial, em contraste com a tradução chinesa.
Traduções & traições à parte, não deixa de ser irônico, e plausível, a imagem de uma ronda nazista – como ação típica de um fantasma dessa ordem. Mais de cem anos depois da Revolução de Outubro, no entanto, a burguesia ainda teme o comunismo, mas desde 2008 ela parece disposta a acionar a alavanca de emergência fascista preventivamente – e não mais pagar para ver os efeitos da indignação antissistêmica. É o caso da Alemanha.