Privatização e militarização das escolas, mercantilização do ensino com o Novo Ensino Médio e cortes drásticos no orçamento: esses são os projetos neoliberais que o capital tem implementado na educação brasileira nos últimos anos.
É claro que essas medidas devastadoras se deparam com a resistência dos estudantes e professores. O Secretário de Educação de São Paulo, Renato Feder, por exemplo, tem enfrentado dificuldades em executar seu plano, como no caso da privatização das escolas, que foi derrubada pela Justiça na última semana, sob alegação de inconstitucionalidade.

(Foto: Castro.rods / Wikimedia Commons)
Entretanto, o empresariado e seus representantes nos governos e câmaras legislativas estão determinados a inaugurar essa nova era na educação a todo custo, usando a repressão às manifestações e compra de votos. Assim, já é possível sentir os seus efeitos na vida da juventude nos quatro cantos do país. O último Exame Nacional do Ensino Médio revelou o que era uma consequência óbvia desse movimento: apenas 12 pessoas obtiveram nota máxima na prova de Redação, sendo que somente uma delas concluiu os estudos em escola pública.
A questão que se coloca diante de nós, afinal, é que além de dizer o que não queremos ver nas escolas do futuro, devemos refletir sobre qual educação efetivamente precisamos e defendê-la para a sociedade.
A escola pública de ontem e de hoje
É fato que a escola pública sempre foi um problema.
Durante o Ensino Fundamental, lembro de passar boa parte do horário de aula perambulando pelo pátio, pois não havia professores para todas as matérias. A professora de matemática era incrível, fazia o que podia, mas a gente tinha dificuldades por toda debilidade dos anos anteriores. Alguns de nós também fazia o que podia: a grande realização da nossa gestão à frente do Grêmio Estudantil foi reinaugurar a biblioteca, que não passava de uma sala minúscula com poucos livros velhos e que estava fechada há anos, por falta de funcionário. Não tínhamos nem mesmo a infraestrutura básica: a falta de assentos e papel higiênico nos banheiros formou uma geração de meninas pobres que não encontraram dignidade para viver a experiência da primeira menstruação na escola.
Essa realidade vivida anos atrás numa escola do Estado mais rico do país é exatamente a mesma fotografia dos dias atuais. De lá pra cá, nada mudou. Na última semana, por exemplo, as escolas técnicas do ABC Paulista suspenderam as aulas por conta do calor excessivo: faltam ventiladores nas salas de aula e água nos bebedouros.
A situação orçamentária é dramática. No caso do Estado de São Paulo, a Assembleia Legislativa aprovou uma PEC, de autoria do governador Tarcísio, que corta cerca de 10 bilhões de reais da educação pública. Além disso, segundo a pesquisa mais recente da Auditoria Cidadã da Dívida, a educação teve apenas 2,95% do orçamento federal executado em 2024, contra 42,96% do valor pago para os juros e amortizações da dívida, equivalente a 1,997 trilhões de reais.
Se nos faltavam professores décadas atrás, o que vivemos hoje é uma distopia: com um déficit de 140 mil docentes, o governo estadual deixa a categoria de professores temporários sem contrato. Para piorar, o Novo Ensino Médio é um crime contra o futuro da juventude, que não tem mais direito de aprender o básico. A título de exemplo, as instituições paulistas perderam 35% da carga horária em ciências humanas no último ano.
A verdade é que, como os sanguessugas que são, os donos do capital querem arrancar até a última gota de sangue desse povo sofrido. Não bastasse a exploração cruel do trabalho cada vez mais precário, o saque da terra e do que nela produzimos, a privatização dos transportes e até da água, querem agora as escolas das nossas crianças.
O paraíso das crianças
Em 1948, Jorge Amado teve a oportunidade de visitar a União Soviética e descreveu essa experiência, especialmente do ponto de vista da infância, no artigo “O paraíso das crianças”. Segundo seu relato, no socialismo “cada criança é como um pequeno príncipe, cuidado por todo o povo com o mesmo enternecido desvelo com que um velho jardineiro apaixonado cuida das suas flores raras”. Em poucas páginas, Jorge Amado nos emociona, contando o que viu com seus olhos: as crianças são cuidadas antes mesmo de nascerem e as escolas são espaços para formar seres humanos integrados ao bem comum da sociedade, conscientes dos problemas do mundo e do seu papel na transformação deste mundo. A solidariedade, o espírito de trabalho coletivo e a fé na ciência são disciplinas aprendidas nas salas de aula.
O problema é que nem o melhor dos exercícios de imaginação nos livram da terrível conclusão: é impossível sonhar com um “Paraíso das Crianças” na sociedade em que vivemos hoje. Há mais de 70 anos, Jorge Amado via no Brasil a mesma realidade que vemos: crianças morrendo por desnutrição, prostituídas por um prato de comida, vivendo nas ruas. A sede de lucro no capitalismo é imoral.
Então falar sobre a escola que queremos, afinal, é falar também sobre uma sociedade onde essa escola possa existir. Em outro exercício: os jovens que ocupam suas escolas contra a precarização, hoje estão lutando por uma educação de qualidade, mas podem perceber que esse projeto é inerente ao sistema e que, portanto, é preciso cortar o mal pela raiz.
Mesmo no presente a luta vale a pena, com vitórias que fortalecem essa consciência coletiva, como a consulta pública que, com 88% dos votos, derrotou o projeto privatista de Ratinho Jr. nas escolas do Paraná. Ainda que o governador esteja na batalha judicial para implementar o programa, já foi politicamente derrotado nessa que é a única batalha que importa, no final das contas.
Queremos professores com bons salários e jornada de trabalho justa, bem formados e lecionando disciplinas que permitam que nossas crianças e jovens conheçam o mundo e atuem sobre ele. Queremos salas de aula dignas, bibliotecas recheadas de livros interessantes, quadras esportivas bem cuidadas, aulas de música, teatro e dança. Queremos merenda de qualidade em todas as refeições e transporte gratuito. Essa é escola do futuro, o paraíso para as nossas crianças, e precisamos construí-la através da luta hoje.
(*) Isis Mustafa é dirigente do partido Unidade Popular pelo Socialismo e 1ª vice-presidente da UNE.