No dia 7 de outubro de 2023, o grupo Hamas lançou a operação Tempestade de Al-Aqsa, inaugurando mais uma fase da luta da resistência palestina ao colonialismo de Israel.
A despeito da chama da resistência e a resiliência do povo palestino estar viva, um ano depois há muito o que se lamentar. Crianças e mulheres estão entre a maioria das vítimas dos bombardeios indiscriminados das forças israelenses contra hospitais, comboios de ambulâncias e à infraestrutura civil de Gaza. Além disso, em seu objetivo de regionalizar o conflito, o governo de Netanyahu tem lançado provocações frequentes ao Líbano e ao Irã, com vistas a arrastá-los para um embate direto e de grandes proporções, além de violar a soberania da Síria e do Iêmen.
No mês passado, após explodir mais de três mil pagers no Líbano, ferindo e matando civis, Israel assassinou o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah. Desde então, Beirute tem sido constantemente bombardeada e as forças israelenses deram início a uma incursão terrestre no sul do país. Já são mais de 2 mil assassinados e estima-se 10 mil pessoas feridas no Líbano. Em pelo menos dois momentos, Israel violou a soberania do Irã. Em abril, atacou um anexo da embaixada iraniana na Síria, deixando pelo menos 16 mortos. Em 31 de julho, assassinou o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã.
Neste momento, a situação em Gaza é catastrófica. Multiplicam-se os relatos de médicos sobre as precárias condições de saúde e nas redes é possível assistir não a um, mas a centenas de vídeos em que escolas primárias, universidades, hospitais e prédios residenciais são transformados em pó. Em julho, a renomada revista científica The Lancet apontou que os mortos em Gaza já teriam chegado a 180 mil desde o dia 7 de outubro, levando em conta os corpos sob escombros e aqueles que morreram por falta de acesso a serviços vitais.
No dia 26 de setembro, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas apresentou o relatório intitulado “Anatomia de um Genocídio”. De acordo com o documento, 80% da população de Gaza sofreu deslocamento forçado, há forte preocupação com detenções e torturas praticadas pelas forças de Israel e a fome em Gaza tem sido utilizada como arma de guerra. O documento conclui que existem motivos suficientes para acreditar que o limite que indica que Israel pratica genocídio foi atingido.
Por falar em fome, o relatório do Programa Mundial Alimentar das Nações Unidas (março) revelou que os 2 milhões de habitantes de Gaza estão sofrendo com “insegurança alimentar aguda”. Na parte norte da Faixa, uma a cada três crianças com menos de 2 anos de idade está agora gravemente desnutrida. A fome em Gaza piorou drasticamente não somente por conta dos bombardeios diários, mas também porque Israel intensificou o bloqueio à região, impedindo assim que uma parcela significativa dos caminhões com alimentos e outros itens de ajuda humanitária acessassem o território palestino. Além disso, como consequência dos bombardeios indiscriminados, mais de 100 jornalistas já foram mortos.
A sequência dos fatos deixa claro que, neste momento, o que merece nossa atenção e condenação são os crimes de Israel. E a nossa solidariedade irrestrita deve estar com os povos vítimas das mais cruéis práticas deste Estado.
Mas o Itamaraty, nosso Ministério das Relações Exteriores, preferiu dar ênfase a outros acontecimentos e dados que não estes que acabei de citar.
Para lembrar um ano da ofensiva da resistência palestina, o ministério emitiu uma nota com o seguinte título: “Um ano dos ataques terroristas do Hamas”. Na nota, o ministério emitiu pesar pelos 251 reféns e 1200 mortos em 7 de outubro. Foram citados nominalmente os brasileiros Michel Nisembaum, Karla Stelzer, Bruna Vaeanu e Ranani Nidejelski Glazer. Há uma condenação ao uso do terrorismo como método de luta e a todos os atos de violência. Por fim, a nota pede a libertação dos reféns e um cessar-fogo em Gaza e no Líbano.
Não há menção ao número de mortos do lado palestino. Não há menção à destruição da infraestrutura civil de Gaza e ao aumento das ações de Israel na Cisjordânia. A palavra “Palestina” sequer aparece na nota. O compadecimento está somente com os israelenses. Se vamos falar das vítimas, por que não as de ambos os lados, ministro?
Em fevereiro deste ano, na Etiópia, Lula comparou os crimes de Israel contra os palestinos com aqueles praticados pelo regime nazista contra os judeus. Em diferentes ocasiões, o presidente usou a palavra “genocídio” para se referir ao que acontece em Gaza. Em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, Lula foi menos incisivo e trocou “genocídio” por “crise humanitária”, mas não deixou de reconhecer o drama por qual passam os palestinos. Difícil imaginar que o presidente tenha mudado de ideia sobre a natureza das ações de Israel.
Quais sejam os motivos do tom desta nota, um descolamento com as posições públicas de Lula ou uma reorientação da nossa política externa, ela não deixa de ser vergonhosa. Peço perdão pela franqueza, mas não há outra palavra para definir tamanho rebaixamento diante dos incontornáveis crimes de Israel.
(*) Rose Martins é analista internacional e pesquisadora, formada em Relações internacionais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e mestra em Economia Política Internacional.