Os sinais são claros de que estamos mudando de época, mas também são mais do que evidentes os riscos de retrocesso – como foi no século 20 –, com a volta do nazifascismo, em sua versão trumpista ou europeia, não por coincidência expressa nas versões alemãs e italianas.
Esse risco se deve em grande medida à memória e ausência de um acerto histórico de contas com o nazismo na Alemanha, fruto da Guerra Fria que levou os Estados Unidos e a elite alemã do pós-guerra a absorver no aparelho do Estado e na sociedade os “bons” nazistas, e na Itália o fracasso da democracia com a falência dos seus dois principais partidos – o Democrata Cristão e o Comunista.
O Zeitgeist ainda está em disputa como entre guerras, e a extrema direita disputa com a direita a hegemonia e as saídas para a crise atual do capitalismo, que se aproxima de uma crise civilizatória pelo agravamento da questão climática e pelos riscos da guerra e dos retrocessos democráticos.

(Foto: White House / Flickr)
Nações e povos estão em perigo, como mostram as invasões e a destruição do Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e, agora, a Palestina. Potências médias como Turquia, Irã e Arábia Saudita se envolvem nos conflitos e, na prática, têm exércitos internacionais, como o Hezbollah, ou atuam diretamente, como fez a Turquia na Síria e a Arábia Saudita no Iêmen. Na África, Uganda e República Democrática do Congo se enfrentam; Angola se envolve em guerras regionais, inclusive na Ucrânia; no Sudão, a guerra civil não tem fim.
Assistimos a uma deslegitimação das organizações criadas no pós-guerra, incluindo as Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Organização Mundial de Saúde (OMS). Acordos internacionais são simplesmente desconsiderados pelos Estados Unidos, inclusive em tema sensível e urgente, como é o climático. O abalo está sendo sentido também na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que desde o fim da Segunda Guerra Mundial representa a aliança transatlântica entre os Estados Unidos e a Europa. Em meio a dúvidas sobre o comprometimento do presidente norte-americano, Donald Trump, com a Europa, lideranças da União Europeia apoiaram um plano, estimado em 800 bilhões de euros, que abre caminho para a elevação de gastos com Defesa.
Mesmo a globalização financeira sofre, na prática, um retrocesso com a decisão dos países europeus e dos Estados Unidos de recorrer ao protecionismo e à reindustrialização de suas economias frente à superioridade evidente da China e das mudanças geopolíticas, que fazem do Sul global, Ásia e BRICs o centro do mundo e da nova época que surge.
Dogmas e consensos são jogados no lixo em nome do interesse nacional e da face do imperialismo, o que nos faz lembrar do colonialismo europeu dos séculos 18 e 19.
Nacionalismo, racismo, homofobia, machismo, obscurantismo e negacionismo se expressam no ódio ao imigrante. O fundamentalismo religioso alimenta guerras e o ódio a culturas que não as nacionais. A Europa se afunda na contradição do fim do bônus demográfico e a negação da urgente e necessária imigração para sustentar suas economias estagnadas, situação agravada pela guerra da Ucrânia.
As saídas estão em disputa, e a eleição na Alemanha e nos Estados Unidos são exemplos dos dilemas e riscos. Não há mais eleições nacionais. O que fica demonstrado com a vitória de Donald Trump e sua política externa intervencionista e imperialista, que se expressa nas decisões de agravar a guerra comercial e tecnológica com a China e todos os parceiros – sejam eles amigos ou adversários –, pôr fim à guerra da Ucrânia e apoiar abertamente Israel no conflito palestino, estender sua influência e mesmo domínio sobre a Groenlândia, Canadá e o Canal do Panamá, além da decisão de derrotar o governo trabalhista inglês ou de apoiar a extrema direita na Alemanha e em toda Europa, tendo a primeira-ministra da Itália, Georgia Meloni, como líder da articulação conservadora mundial na Europa.
Se cada país e nação cuida de seu destino e soberania, e se a democracia corre o risco com um retrocesso civilizatório, a questão nacional e a questão democrática passam a ser estratégicas e decisivas para todos os países, e mais ainda para o Brasil. Como em outros momentos históricos, temos de articular a questão nacional com a democrática, sem perder de vista os interesses do povo brasileiro e das classes trabalhadoras.
Nossas elites estão articuladas e integradas na hegemonia norte-americana e europeia, que constituíram nossa economia no século 20. Uma economia agravada por sua financeirização extrema, expressa na abertura indiscriminada, privatização e desregulamentação, quando a experiência chinesa e a dos próprios Estados Unidos recomendam colocar o interesse nacional em primeiro lugar e dotar o Estado Nacional de condições para desenvolver e proteger a economia nacional. Esse é um momento decisivo para os setores das nossas elites que se alinharam à frente ampla em 2022 e se opuseram ao risco que Jair Bolsonaro representava para o País. Os retrocessos, neste momento, são igualmente perigosos – e em escala global –, com impacto direto sobre o futuro brasileiro.
Os partidos, líderes e movimentos sociais que defendem os interesses populares e nacionais têm um desafio para além de representar as classes trabalhadoras e seus interesses na disputa pela riqueza e distribuição de renda, ou da representação dos interesses de nossas elites não-bolsonaristas e não-extremistas: assumir a defesa da Nação e sua soberania e assegurar a democracia para construir uma maioria nacional que permita defender o Brasil e ao mesmo tempo dar continuidade ao fio da História de um país soberano, democrático e justo.
(*) José Dirceu foi ministro-chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula (2003-2005), presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e deputado federal por São Paulo.