Claudia Sheinbaum Pardo, a presidenta eleita do México, é física de formação e mestra e doutora em engenharia de energia. De família judaica, seus pais também eram cientistas e politicamente engajados; os avós paternos de Claudia vieram da Lituânia, enquanto, pelo lado materno, tiveram origem na comunidade safredita da Bulgária – para onde seus ancestrais foram em fuga da Inquisição Espanhola, mas de onde escaparam do nazismo.
O detalhe biográfico da família materna explica o sobrenome Pardo, tão comum para hispânicos, enquanto Sheinbaum significa “bela árvore” – e se pronuncia exatamente como se escreve, nada incomum salvo pela variedade de grafias. Não deixa de ser irônico uma ambientalista trazer árvore no nome. Para além da fidelidade ao ofício e ao ideário de seus pais, o que se destaca das eleições mexicanas de 2024 é a continuidade de López Obrador, seu padrinho político.
Antes, Sheinbaum foi uma popular e bem avaliada chefe de governo – isto é, governadora – da Cidade do México, cargo que ocupou de 2018 até as eleições presidenciais, sendo antes chefe delegacional de Tlalpan, também no distrito federal mexicano – o que soaria como o cargo de prefeito regional ou sub-prefeito no Brasil. No começo do século, ela foi secretária do Meio-Ambiente do mesmo López Obrador na Cidade do México, o que lhe projetou.
Todos os cargos eletivos que ela ocupou foram pelo Morena, o Movimento de Regeneração Nacional, cuja sigla suscita à Virgem Morena de Guadalupe, padroeira de um país fervorosamente católico, embora paradoxalmente laico em termos políticos. Inicialmente um movimento da ala de López Obrador dentro do Partido da Revolução Democrática (PRD), ele se tornou um partido autônomo e Sheinbaum lhe acompanhou na cisão.
A vitória do Morena em 2018 foi tida como uma vitória pessoal de López Obrador, ou eventualmente uma chuva de verão, diante da decepção dos mexicanos com décadas de governos trágicos. Em um país sem reeleição e com mandatos de seis anos, o fato de López Obrador passar a faixa para uma correligionária e, ainda, de ver seu partido ampliar seu espaço, nos interpela a pensar se estamos mesmo diante de uma nova hegemonia política no México.
O monarquismo coletivo mexicano
Segundo maior país da América Latina, o México é a única nação da região que pode ser comparada ao Brasil. Se as analogias podem nos levar ao inferno, por outro lado, há elementos que interseccionam Brasil e México, a começar pelo fato de ambos terem sido monarquias – fato raro nas Américas, só compartilhado entre eles e o Haiti –, o que deixa uma marca difícil de apagar nas estruturas.
No caso brasileiro, um tipo peculiar de personalismo; enquanto, no caso mexicano, os ventos bifurcaram em outra direção, a do institucionalismo quase obsessivo. A ordem política posterior à Revolução Mexicana de 1917 se assentou na longeva hegemonia do Partido Revolucionário Institucional (PRI) iniciada em 1930 – alcançando o ano de 2000 –, na qual uma liderança como Lázaro Cárdenas não quis ser um Getúlio ou um Perón, e talvez nem conseguiria.
Talvez as décadas do Porfiriato, o regime político dos liberais mexicanos assentado na figura pessoal do general Porfírio Díaz, tenha esgotado por completo as possibilidades de um líder longevo. Sim, a política mexicana comporta lideranças fortes e pessoais, e López Obrador está aí para provar isso, mas isso não foi capaz de transcender o tempo ou personalizar o imaginário.
Legenda nacional-popular, materializada em um ampla aliança que congregava uma fauna complexa que ia da direita à esquerda, o PRI dominou sozinho a política mexicana até 1988, quando tudo se decidia, a priori, na disputa interna do partido – que era, na prática, apenas referendada nas eleições nacionais, nas quais o católico e conservador Partido da Ação Nacional (PAN) servia apenas para cumprir o rito democrático.
Décadas antes, o PRI já alternava presidentes de direita e centro, distanciando-se do desenvolvimentismo inequívoco dos anos 1930. Mas seu arranjo se rompe mesmo no governo de Miguel de La Madrid (1982-1988): ali ocorreu a rendição ao neoliberalismo, o que se manifestou nas privatizações e na sujeição completa aos Estados Unidos, o que resultou no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) de 1994.
De la Madrid escolheu Carlos Salinas de Gortari para seu lugar, com a missão de manter e avançar com suas políticas neoliberais, gerando fúria no interior do PRI. Depois de décadas de insatisfação das esquerdas, colocadas na berlinda do partido hegemônico, finalmente a situação atingiu o clímax, o que levou a um racha relevante do partido. Inclusive do jovem López Obrador, que à época ocupava cargos no seu estado natal, Tabasco, no Sul do país.
É esse evento que produz eleições gerais competitivas no México, escapando às teses de “ditadura perfeita”, uma vez que as forças progressistas, por livre e espontânea vontade, se acomodaram na máquina burocrática do PRI – algo que nem o massacre da praça Tlatelolco foi capaz de desfazer, mesmo tendo sido perpetrado pelo exército, sob evidentes ordens do presidente Gustavo Díaz Ordaz, contra manifestantes pacíficos em 1968.
O racha da ala esquerda do PRI, que se tornou o Partido da Revolução Democrática (PRD), gerou, rapidamente, um tripé partidário que ilustrava mais a fragmentação do que “liberdade de escolha”. O México não se tornou uma “democracia competitiva” por sua vontade, ou porque isso seja um modelo “universalmente correto”, mas pelo fato do sistema político mexicano ter encontrado o famoso interregno.
O interregno mexicano
Interregno vem do latim “inter-reino” e tem origens históricas que remontam à primeira monarquia de Roma, conforme descrito por Cícero: quando o Senado tentou usurpar as funções de rei após a morte de Rômulo, isso levou a protestos populares e ao consequente recuo dos senadores com a eleição de um novo rei, Numa Pompílio, além da criação de um instituto jurídico para regular esses momentos.
É a essa tradição que se reporta Antonio Gramsci ao falar no interregno, o clássico “o velho está morrendo e o novo não pode nascer”. O México experimentou 30 longos anos nos quais um PRI decadente agonizava, mas tampouco o país era capaz de elaborar um novo instrumento político hegemônico, como aparentemente é sua vocação e gosto. O interregno, afinal de contas, mesmo em seu sentido jurídico, sempre comportou uma dose de anomia.
Da vitória contestada e marcada pela fraude de 1988, sob a sombra de Salinas de Gortari, presidente sob o qual explodiu o levante zapatista, passando pelo derradeiro governo do PRI com Ernesto Zedillo, quando se experimentou uma grave crise econômica, a saída da elite mexicana foi mudar tudo para que tudo ficasse como está, como escreveu Lampedusa pela boca do príncipe Falconieri: ganhou em 2000 o direitista PAN, com Vicente Fox.
Obviamente, a passagem do PRI para o PAN não mudou nada em matéria de precarização do trabalho, aumento da violência, desalento social e perda de perspectiva dos mais jovens, que, com a dificuldade para migrar para os Estados Unidos, viram no crime o caminho mais simples. Mas o que interessa é como López Obrador impulsionou o PRD à época, mostrando que havia uma alternativa na sua passagem pelo governo da Cidade do México.
A nova vitória do PAN em 2006, em uma eleição fraudada e direcionada para impedir uma presidência de López Obrador, em plena primavera dos governos progressistas na América do Sul, foi seguida da volta do PRI em 2012. Tudo isso comporta tantos detalhes trágicos, frustrantes e catastróficos que não caberiam em um livro – mas o caso dos 43 estudantes secundaristas assassinados e desaparecidos por um cartel em 2014 é o maior símbolo da época.
Enquanto Enrique Peña Nieto, o derradeiro líder priista, pilhava o que restou do México nos anos 2010, uma mudança parecia cada vez mais difícil no país, com o próprio PRD envolvido na corrupção estatal e capitulando ao neoliberalismo. De 2012 a 2018, a taxa de homicídios mexicana pulou de 22 para 30 por 100 mil habitantes/ano, enquanto no começo do século era de apenas 10/100 mil – ou seja, em 18 anos, a taxa de homicídios triplicou.
O México crescia pouco e mal, gerando muitos empregos de baixa qualidade, perdendo sua posição relativa. Era digno até mesmo de estudo das Nações Unidas o declínio do mundo do trabalho mexicano – com a participação do trabalho no PIB caindo de 40% nos anos 1970 para meros 24% no último ano de Peña Nieto – e com a emigração para os Estados Unidos de 16 milhões de mexicanos entre 1965-2015.
De uma nação emergente razoavelmente estável em 1990, com um IDH 10% acima da média mundial, o país em 2018 estava para trás e sem perspectiva, apenas 5% acima da média. Enquanto a China se desenvolvia enormemente e os africanos apresentavam tendência de melhora, o México perdia importância relativa – e López Obrador estava isolado, após sair de seu partido em 2012, com o PRD convertido a uma ordem que apodrecia a olhos vistos.
A conversão do Morena em partido em 2014 despertou pouca atenção. Os movimentos de López Obrador pareciam ser de alguém que não se conformava com a derrota. Na segunda cisão em menos de um quarto de século, o que aguardava López Obrador e seus aliados? Havia pouca gente que ainda apostava neles, apesar da boa participação do Morena nas eleições de meio de mandato de 2015. Em 2017, López Obrador, contudo, passou a liderar as pesquisas presidenciais.
Um novo hegemon?
Em uma crescente nas pesquisas, López Obrador venceu as eleições presidenciais de 2018 com 53% dos votos, um recorde desde a grande cisão do final dos anos 1980. Claudia Sheinbaum venceu as eleições ao governo da Cidade do México, em uma disputa em grande medida entre o Morena e o que restou do PRD, isto é, sua ala direita. Junto disso, o partido venceu as eleições para a Câmara e Senado.
Baseado em um compromisso modesto com os mexicanos, o que no fundo era de que o país finalmente finalmente iria parar de piorar, López Obrador passou quase todas as manhãs de seus seis anos de mandato, ainda não encerrados, falando com jornalistas, explicando seus planos e ações de governo e defendendo seu programa. Na esfera internacional, o país manteve a tradição diplomática de asilo, mas agiu com máxima cautela.
Algumas medidas de austeridade simbólica, como corte de salários e demissão de funcionários públicos foram seguidas de aumento de programas sociais focalizados – e algumas boas concessões para, em troca, subir o salário mínimo sem, necessariamente, gerar um grande boom na participação dos salários no PIB, que atingiram apenas 27% e 2022, isto é, nenhum grande milagre.
Mas, obviamente, a situação de 2019 do país não ajudava – e a pandemia em 2020 menos ainda. O México passou longe de ficar incólume, mas embora tenha perdido muitas vidas – algo em torno de 2.500 por milhão, algo abaixo das 3.100 por milhão do Brasil – o país se recuperou a partir de 2022, incluindo-se no seleto grupo de países que não estava pior no primeiro ano pós-pandemia do que em 2019.
O salto qualitativo mexicano ainda está distante. Pelo menos do ponto de vista interno, o México, cuja carga tributária é a menor entre os países da OCDE – não chegando a 20% do PIB –, é, paradoxalmente, um país de lucros altíssimos não tributados – com uma taxa de investimento perturbadoramente baixa, o que nos ajuda a entender a produtividade do trabalho estagnada.
Fatalmente, os acordos do Nafta, depois transformados por Trump, favoreceram fortemente os Estados Unidos; antes de 1994, a per capita mexicana era 37,6% da americana, mas no ano passado só totalizou 30,5%. O México se tornou uma enorme reserva de mão de obra barata para os Estados Unidos, enquanto, ao fazê-lo, enfraquecia-se enquanto país – nada mal para a geopolítica americana.
A maior força de López Obrador foi, paradoxalmente, sua maior fraqueza. Isso equivaleu a mais continuidades do que rupturas, enquanto a estratégia ultra-cautelosa conseguiu sim expandir e capilarizar o Morena pelo país, ainda que o tenha feito às custas de torná-lo um partido da acomodação política mexicana – uma espécie de PRI do bem, como se tivesse sido possível voltar ao tempo e tomar uma decisão diferente daquela dos anos 1980.
Nesse sentido, voltando à carismática Sheinbaum, ela foi uma governadora hábil e inovadora, que manteve taxas de violência baixas e apostou em programas sociais bem-sucedidos. Seu desafio será agora, à frente de uma máquina hegemônica que acumulou forças optando pela fraqueza, ser capaz de suportar e gerir os vindouros choques que virão dos nós górdios no curto e médio prazos.
O México não chegou ao fundo do poço por uma perversidade inata dos seus líderes. O ciclo da crise da dívida do início dos anos 1980, causada pela alta vertiginosa dos juros pelos Estados Unidos, redesenhou o mapa do mundo – como bem observou a professora Maria da Conceição Tavares –, em desfavor justamente dos parceiros mais próximos de Washington.
Os erros que levaram ao esvaziamento do PRI se deram, inclusive, dentro de um espaço de manobra muito curto. Ao optar por um acúmulo de forças por longo prazo, obviamente, López Obrador se posicionou como o Cárdenas do nosso tempo, mas o custo de uma hegemonia ampla e, ao mesmo tempo, vacilante no antagonismo é o risco de ser, tão logo, carregado pelo vendavais que de tempos e tempos se repetem na nossa Pátria Grande.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.