Em outubro, a escritora Han Kang foi a primeira pessoa da Coreia a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Parte importante da obra de Han trata da última aplicação da Lei Marcial na Coreia do Sul, durante o convenientemente esquecido período ditatorial. Naquela ocasião, ocorreu o famoso Massacre de Gwangju, de maio de 1980. Quis o destino que dois meses depois do Nobel de Han, novamente um presidente sul-coreano decretasse Lei Marcial.
É impossível falar da Coreia sem mencionar a divisão da nação coreana em dois países, um socialista, no Norte, e o outro capitalista, no Sul; uma fratura exposta por uma guerra apenas suspensa desde 1953. Nos últimos anos, os elogios ao modelo sul-coreano vêm acompanhados de um implacável cerco militar, sanções e exotização da Coreia do Norte, sua contraparte socialista – em uma narrativa maniqueísta demais para ser verdade.
Eis que na última terça-feira, 3 de dezembro, o presidente sul-coreano Yoon Suk-yeol tentou, mediante a decretação da Lei Marcial, aplicar um autogolpe, o que ele justificou com argumentos anticomunistas contra a oposição liberal. O levante não durou um dia sequer, com a Assembleia Nacional anulando a medida enquanto a sociedade se levantava contra as indecisas tropas enviadas para as ruas e para o próprio Parlamento.
Um pedido de impeachment foi feito contra Yoon, mas a minoria governista acabou de sabotá-lo. É o segundo procedimento desse tipo nos últimos anos, embora em 2017 a conservadora Park Geun-hye tenha sofrido impeachment em meio a um enorme escândalo, seguido de muita pressão popular. No meio do caminho, houve o retorno dos liberais ao poder, sob o governo de sua ala moderada, uma centro-direita conservadora, que projetou o conservador Yoon.
Yoon, um ex-promotor público, católico romano, vindo de uma família aristocrática coreana, construiu sua carreira política no Ministério Público do seu país, se envolvendo em casos rumorosos de corrupção ao longo de 30 anos. Nomeado procurador-geral da República na presidência liberal Moon Jae-in (2017-2022), Yoon rapidamente se virou contra o governo, pavimentando sua chegada à presidência à base de lawfare – como um Sérgio Moro local.
Agora, Yoon foi mantido no poder, apesar do apoio massivo pelo seu impeachment. O governista Partido do Poder Popular (PPP), herdeiro do período ditatorial, preferiu esvaziar o quórum da votação que poderia suspender o presidente, talvez de olho nas próximas eleições – na Coreia, o parlamento abre o processo, mas é o Tribunal Constitucional, equivalente local ao STF, que decide sobre a destituição.
Em tempos nos quais a guerra na Ucrânia, paradoxalmente, quebrou o isolamento internacional da Coreia do Norte, a Coreia do Sul revela, mais uma vez, sua faceta autoritária e anômica – o que quebra o centro da narrativa ocidental que parte da exotização da Coreia do Norte para, assim, encerrar o argumento com a construção do imaginário de uma Coreia do Sul perfeitamente normal em contraste com o Norte insano.
A Coreia do Sul: longa ditadura, democratização, passando pela adesão à fórmula Mandela ao revival conservador
A Coreia do Sul foi um regime formalmente autoritário, por vezes militar, desde sua criação artificial pela ocupação americana no pós-guerra até 1987. A democratização do país ocorre em paralelo com a brasileira e de muitos outros países, onde a mão firme do Ocidente foi afrouxada com o colapso do socialismo real na Europa Oriental. Lá, no entanto, a democratização só abarcou a oposição liberal ao regime.
A primeira ditadura, do coreano Syngman Rhee, um direitista umbilicalmente ligado ao esquema dos Estados Unidos no Extremo Oriente, caiu sob protestos. Depois de uma brevíssima tentativa democratizante, veio mais um golpe que deu no general Park, criador do desenvolvimentismo sul-coreano, seguido de mais um golpe e muita turbulência até 1987, quando a democracia formal foi obtida mediante muita luta e sob brutal repressão.
Depois de governos conservadores eleitos nas duas primeiras eleições, a elite coreana cedeu os anéis para não perder os dedos: em 1997, venceu Kim Dae-jung, um ativista anti-ditadura, sob a legenda do liberal Congresso Nacional para Nova Política, que é antecessor do atual Partido Democrata. Kim foi um meio de reciclar o capitalismo sul-coreano, como num rebranding na forma de uma concessão “democrática” do sistema.
Não é impossível ver nisso um movimento internacional, ou pelo menos um espírito do tempo, que levou ao poder velhos opositores de ditaduras pró-capitalistas durante a Guerra Fria. A figura mais emblemática, nesse sentido, foi sem dúvida Nelson Mandela na África do Sul, mas também FHC e Lula no Brasil ou mesmo Chen Shui-bian em Taiwan. No fim, o capitalismo remanesceu, apesar de incrementos sociais.
Na esteira da eleição de Kim Dae-jung, Roh Moo-hyun foi eleito como seu sucessor em seguida, governando até 2008. Depois dele, uma longa hegemonia conservadora se reiniciou, culminando com a chegada de Lee Myung-bak, sucedido da primeira mulher à presidência do país, Park Geun-hye, a filha do general Park, que sofreu impeachment após um escândalo bisonho, que revelou o papel de seitas secretas no comando do país e corrupção desenfreada.
Se o velho general Park, longevo ditador, terminou assassinado, sua filha foi derrubada em uma situação tragicômica – que valeu uma ampla mobilização popular para removê-la, as maiores desde o fim do período ditatorial. No fim, Park terminou perdoada e solta, normalizada novamente pelo sistema sul-coreano, aparecendo na posse de Yoon, cujo partido é herdeiro direto do velho partido de seu pai.
A volta do campo liberal nas eleições de 2017 foi uma consequência natural. Mas apesar dos esforços pela distensão com a Coreia do Norte, a presidência de Moon Jae-in esbarrou nos primeiros limites do liberalismo coreano – ele próprio da ala mais moderada do partido, que é identificada pelo apoio aos chaebol (재벌 – 財閥), as “camarilhas financeiras”; poderosos oligopólios familiares que são donas de corporações como Samsung, Hyundai, dentre outras.
Eles são versões locais dos zaibatsu (財閥) japoneses, de quem herdam o nome, apenas adotando a pronúncia coreana, transliterado na escrita coreana. Os chaebol expressam a influência do confucionismo na sua sociedade, o que reforça características personalistas de caráter familista e patriarcal – o que os distancia dos moderno keiretsu (系列) japoneses, conglomerados impessoais semelhantes às modernas corporações ocidentais.
O chaebol é uma constante do modelo sul-coreano, expondo sua glória e seus limites, e isso permitiu ao país ultrapassar o Japão sem modernizar a gestão do seu capitalismo. O retorno dos liberais na presidência de Moon, entretanto, apenas serviu para projetar Yoon, um procurador-geral arrivista que por meio dos seus gestos espetaculares se projetou à presidência, por uma estreita margem.
Superpotência cultural, subpotência geopolítica
A explicação de como o neoliberalismo global não freou as políticas de desenvolvimento é geopolítica: a Coreia do Sul não poderia ter seu sistema capitalista sabotado, sob pena de ser derrotada pela Coreia do Norte ou mesmo fagocitada pela China. Isso foi, exatamente, o oposto do que se passou na América Latina, pioneira em processos de desenvolvimento, mas não havia uma grande ameaça socialista na vizinhança.
O avanço econômico, contudo, contrastou com um autoritarismo retrógrado em termos de direitos civis, igualdade de gênero e política criminal, no qual possivelmente a Coreia do Sul está léguas atrás do Brasil e da maioria dos países latino-americanos. Do outro lado, embora os trabalhadores tenham sido beneficiados pelo crescimento econômico, lhes faltam direitos e uma posição digna na sociedade.
O desenvolvimento das forças produtivas, em termos capitalistas, naturalmente modernizou o país, mas sua institucionalidade política permanece a mesma, agarrada com os vícios, debilidades e instabilidade da ditadura. Uma marca clara disso é a fragilidade política dos partidos sul-coreanos, que vivem se dissolvendo, fundindo ou dividindo, embora sempre tenha permanecido dois campos políticos claros, um conservador e o outro liberal.
O sistema partidário sul-coreano, obviamente, não abre espaço para partidos formalmente de esquerda, que são marginalizados. A Lei de Segurança Nacional de 1948, por sinal, continua bem viva e serve, por exemplo, para reprimir partidos sul-coreanos que busquem contato com partidos norte-coreanos, mesmo que sejam os parceiros menores na Frente Nacional de Pyongyang como o Partido Social-Democrata – sim, há três partidos na Coreia do Norte.
Mas uma revolução silenciosa atravessa tudo isso. Em paralelo à reabertura dos anos 1990, a Coreia do Sul criou uma poderosa e influente indústria de entretenimento, capitaneada pelo K-Pop e pelos doramas, com influência na Ásia e no mundo inteiro, sobretudo na juventude – e isso veio junto do desenvolvimento de uma poderosa indústria de cinema e uma grande literatura nacional, que rendeu à Coreia do Sul altos prêmios internacionais.
Para manter uma estrutura política atrasada, o sistema hipertrofiou seu aparato cultural, no sentido tanto de massas quanto de vanguarda. Nos últimos anos, se a cultura pop sul-coreana é onipresente, sua arte também chegou aos maiores prêmios internacionais: seja o multipremiado Parasita, em Cannes e no Oscar, ou o Nobel para Han Kang. Ou seja, do pop à alta cultura, a Coreia do Sul está no topo.
Nem tudo são flores, no entanto. O autor atento desta coluna poderia falar dos contratos abusivos das estrelas de K-Pop – obrigadas a fazer cirurgias plásticas, ficarem sujeitas a restrições absurdas – ou que Lee Sun-kyun, ator de Parasita, foi levado ao suicídio depois de sofrer perseguição policial por um suposto uso de drogas. Ou mesmo que a obra de Han Kang nasce da vitalidade da Coreia do Sul, mas também é uma denúncia de abusos brutais.
O K-Pop é, para a surpresa de muitos, o gênero líder entre o tipo das vendas globais da indústria musical. O que contrasta com a repressão à juventude nos anos 1960, na qual havia intensa perseguição contra músicos. E essa certamente é a maior diferença entre os dois momentos da história da Coreia do Sul, quando a abertura produzia a necessidade de uma indústria cultural como antídoto e anestésico ao mesmo tempo.
De um lado, as performances do K-Pop criam uma multidão de fãs, representam uma libertação dos corpos e redesenham os papéis de gênero em uma sociedade conservadora, gerando efeitos políticos colateralmente. Ainda que existam coisas bisonhas como os contratos escravos, por outro lado o que é produzido a partir daí cria uma contradição antagônica com as estruturas, isto é, marxismo na sua melhor forma.
Tudo isso, no entanto, expressa que a construção de uma superestrutura cultural decorre do desenvolvimento coreano, mas se acusa as suas deficiências políticas, por outro lado, coloca a institucionalidade sul-coreana contra a parede. Ou que o K-Pop e suas músicas ingênuas, por sua vez, não esteja em um contexto que, nos últimos anos, levou o país para uma revolução sexual e feminista.
Ironia das ironias, a Coreia do Norte se manteve firme a um cerco quase irresistível, tendo por base uma peculiar apreensão do marxismo que culmina no Juche (주체 – 主體), o termo em caracteres chineses que serviu como tradução para “Sujeito” – no sentido filosófico, lido como shutai em japonês e zhuti em mandarim. Enquanto a produção de subjetividade escapa às mãos da liderança sul-coreana como a água, ela é o centro da práxis norte-coreana.
A Coreia do Sul, no entanto, está sujeita ao jogo americano com milhares de soldados instalados em seu território, uma militarização silenciosa da sociedade e um estado de guerra e paranoia permanentes. A recente pacificação com o Japão, em um contato entre o governo de Yoon e a extrema direita nipônica, atendeu sobretudo ao desejo de Washington de unir o seu Extremo Oriente em uma única foto.
De um lado, a superestrutura cultural sul-coreana é de dar inveja em níveis globais, mas sua hipertrofia influencia uma geração inteira de jovens, produzindo ainda uma imagem global do país que força suas estruturas no longo prazo. A partir daí, a dissonância entre os dois elementos torna possível tanto eventos como o autogolpe de Yoon quanto a imediata resposta multitudinária a isso, criando um campo de possibilidade imenso.
Um fantasma ronda a península sul-coreana
Evidentemente, as limitações políticas da Coreia do Sul são, de imediato, sua divisão. O que aquele país é internamente se liga à fratura exposta que divide a nação coreana em dois povos, no Norte e no Sul. Enquanto o Norte busca uma estratégia autônoma de desenvolvimento, ainda que em aliança com Rússia e China, o Sul é esse luxuoso instrumento da geopolítica ocidental, embora prenhe de contradições.
O governo conservador de Yoon foi um aliado poderoso do liberal Joe Biden em suas diatribes, seja por manter alta a temperatura das tensões no Extremo Oriente, ou por interferir no conflito ucraniano, enviando armas a Kiev – graças à reaproximação entre Pyongyang e Moscou. Tudo isso é atravessado, no entanto, por uma onda cultural sul-coreana que chega ao mundo inteiro, inclusive se levantando contra a extrema direita.
A fórmula de Yoon foi, sem exagero, uma versão de sucesso do case de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol no Brasil – mas também alude à ideia de outsiders milagreiros, que surgem para salvar a política de forma improvável e messiânica, como Volodymyr Zelensky na Ucrânia. Aparentemente, esse caminho parece viciado e a oligarquia sul-coreana, e seus parceiros americanos, precisaram inventar algo novo.
Hoje, Yoon transformou a rejeição ao seu governo em números semelhantes ao desejo de impeachment, ambos na casa dos 70%. Seu partido continua forte, contudo, pois embora derrotado nas parlamentares deste ano, ainda conservou uma base de 40% nas últimas eleições parlamentares e talvez, por isso, deseje rifar Yoon ordenamente, tornando-o pessoalmente culpado pela crise sem um “impeachment traumático”.
O sistema sul-coreano busca uma novidade para que, novamente, tudo mude para nada mudar, exatamente como nos anos 1980. Uma possibilidade seria produzir novas eleições depois de uma renúncia e eleger, assim, uma versão mais arejada do Partido Democrata local, com figuras como Lee Jae-myung, atual deputado e candidato derrotado nas eleições de 2022 para Yoon – na Lei Marcial, ele obviamente teve destaque liderando protestos de dentro da Assembleia.
Lee foi vítima de uma intensa campanha de perseguição nos últimos anos e, inclusive, sofreu até uma tentativa de assassinato a facadas. Advogado trabalhista e ex-operário, ele seria um nome possível – e à esquerda – do ex-presidente democrata Moon Jae-in. Ele seria a mais ousada concessão de poder do sistema dos chaebol até hoje. A ocasionalidade política, no entanto, não importa tanto agora.
Evidentemente, ao não suspender os poderes de Yoon, o PPP pode ter atraído para si a fúria popular, sobretudo se o presidente não renunciar. Isso gerará eventos interessantes, embora a figura de Lee seja a possível ganhadora desse processo. Mas o campo de incerteza gerado pode aumentar as fissuras no sistema local, o que contribui para transformações cedo ou tarde inevitáveis.
O fracasso veloz do autogolpe, por certo, se conecta com uma geração incapaz de aceitar um retrocesso democrático a golpe de espada. O delírio de Yoon, um presidente impopular e sem maioria na Assembleia Nacional, era fazer voltar aos tempos mais simples da velha Guerra Fria, quando o anticomunismo servia de pretexto para qualquer coisa. Mas como poderia haver anticomunismo em um país no qual não há comunismo?
De um ponto de vista formalista, analistas sensatos poderiam dizer que o fantasma do anticomunismo é a prova da insensatez da extrema direita sul-coreana, vendo comunistas onde não há. Mas a ausência de um sujeito comunista não exclui a existência de uma objetividade comunista, nas maquinações práticas na subversão do imaginário, onde os sul-coreanos querem alguma coisa que eles, apenas, não encontraram ainda.
O gesto psicótico de Yoon revelou a grande verdade objetiva sobre a Coreia do Sul. Apesar do comunismo estar apartado do sistema político local, ele surge como no início d’O manifesto: fantasma sorrateiro que impede o fascismo de prosperar, ameaça o futuro do capitalismo e, consequentemente, coloca em curto a divisão da Coreia uma só nação, cindida ao meio pela violência imperialista.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.
(**) Colaborou Gabriela Barizon com a análise do estado da arte da cultura coreana atual