Zanele Muholi e a Beleza Valente contra o apartheid
Fotógrafa e artista visual com exposição no IMS retrata sexualidades dissidentes, reprimidas durante o apartheid e oprimidas na África do Sul democrática
Quem teve a oportunidade de visitar a exposição Zanele Muholi: Beleza Valente, no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo, pôde prestigiar o trabalho de uma fotógrafa e ativista visual – ela despreza o termo “artista visual”, em prol de uma arte realmente militante –, que viveu um duplo caráter de opressão durante o Apartheid, em vigor na África do Sul entre 1948 e 1994. Não foi apenas a identidade negra que sofreu nas mãos do regime segregacionista, identidade essa que representava no país mais de 80% da população. Várias leis foram implementadas para reprimir o que eles consideravam como “doença mental”: a homossexualidade, e outras configurações de gênero e sexualidade que fugiam à regra da heteronormatividade.
Sabe-se que os Khoekhoe, povo indígena da hoje África do Sul, mantinham relações que, hoje, podemos categorizar como não-normativas. Alguns termos de hoje podem não se aplicar ao contexto e à temporalidade da África do Sul da época, mas, concretamente, as relações homossexuais eram parte da cultura desse povo. Com a colonização e a introdução do cristianisno no país, essas formas de relação – prefiro não utilizar o termo identidade, para não soar anacrônico –, logo foram tratadas com a mais pura violência. Na esteira desse processo, a organização sul-africana Find New Words, dentre outras iniciativas, busca criar e registrar palavras e termos africanos que possam exemplificar as diversas identidades de gênero existentes no continente, como Tshelabong (), Gabane (), Qhawekhazi (), entre outras.
Voltando ao apartheid, foram vários os momentos de repressão, como no Forest Town Raid, em 1966; a Immorality Amendment Act (Lei de Emenda à Imoralidade), de 1969, que criminalizava “atos sexuais” cometidos por homens em festas; e o The Aversion Project (Projeto Aversão) que, entre 1971 e 1989, realizou uma série de castrações químicas e tratamentos de aversão elétrica, com o objetivo de “curar” civis e militares sul-africanos da homossexualidade. Mas foi o fim do apartheid e a ascenção de Nelson Mandela à presidencia do país – e, claro, a resistência de organizações LGBTQIAPN+ nas ruas do país –, que possibilitaram uma série de mudanças que colocaram a África do Sul como uma das vanguardas pela igualdade de gênero. Em 1990, na cidade de Joanesburgo, foi realizada a primeira Parada do Orgulho LGBT no continente africano. Com a nova constituição do país, implementada em 1994, outras leis e políticas foram implementadas, em prol da igualdade de gênero, e contra a opressão concreta e ideológica – o que não mudou completamente o paradigma no país, que segue tendo enfrentamentos em organizações como, por exemplo, o Congresso de Líderes Tradicionais da África do Sul, que constantemente tenta derrubar certas garantias constitucionais para as populações LGBTQIAPN+. É dentro desse pequeno histórico que emerge o trabalho de Zanele Muholi.
Nascida em 1972, ela viveu quase duas décadas sob o regime de segregação. Em 2003, após concluir um curso de fotografia avançada em Joanesburgo, passou a registrar o dia-a-dia e a realidade de seus semelhantes. Em 2009, recebeu um título de mestrado em Toronto, Canadá, com uma dissertação que buscou mapear a história visual da identidade de lésbicas negras na África do Sul pós-apartheid. Em 2014, se tornou docente honorária de vídeo e fotografia na Universidade das Artes de Bremen, na Alemanha. Mas o trabalho de Zanele tem seu poder principal fora da academia. Seu trabalho busca desconstruir o imaginário que ligava a AIDS às populações africanas e LGBTQIAPN+, e criar novas formas de representações de gênero, fora dos padrões impostos pelo colonialismo, e consequentemente, pelas burguesias africanas – basta lembrar que, de 54 países africanos, 32 deles criminalizam populações LGBTQIAP+. O trabalho de Zanele é uma troca, e ela chama os fotografados de “participantes”, pela maneira como eles, de forma livre, podem escolher como e onde querem ser retratados. Constantemente comparada ao maior sociólogo da história dos Estados Unidos, W.E.B. Du Bois, Zanele subverte as representações típicas dos negros sul-africanos, e junto dessa liberdade que os participantes de suas fotos possuem, cria um arquivo fotografico em que o senso comum se desmancha no ar.
De maneira documental, ela busca não apenas criar uma memória da comunidade LGBTQIAP+, mas uma memória que parta de pressupostos visuais dos próprios integrantes dessa imensa comunidade. Esse processo se desmembra em diversas séries, como Faces e fases, e abrange desde pessoas trans, lésbicas, gays, não-binárias, queers, entre outras identidades, mostrando que a luta comum contra o machismo e o patriarcado passa, também, pela memória.
Ao mesmo tempo em que a África do Sul comporta uma mesquita aberta a homossexuais, liderada pelo imã Muhsin Hendricks, alguns cientistas sociais defendem que o novo apartheid, no país e no continente, é direcionado tão somente contra as identidades LGBTQIAP+. Frente um misto de neocolonialismo e filosofias africanas que tratam a sexualidade desde uma perspectiva binária, até uma visão completamente homofóbica, o trabalho de Zanele é uma política visual que visa, no fim das contas, o fim da opressão e o direito à existência – algo que o Apartheid buscou dizimar.