Há 100 anos, em 12 de setembro de 1924, nascia o revolucionário marxista Amílcar Cabral. Considerado um dos maiores líderes da resistência anticolonial na África, Amílcar Cabral ajudou a organizar a luta pela independência na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Destacou-se igualmente como intelectual, dando importantes contribuições para a análise do fenômeno do colonialismo e da importância da cultura e da identidade nacional nos processos de emancipação.
Amílcar Cabral nasceu em Bafatá, na região central da Guiné-Bissau — à época, uma colônia de Portugal. Era filho da guineense Iva Pinhel Évora e do professor cabo-verdiano Juvenal Lopes Cabral. Ainda criança, mudou-se com sua família para o arquipélago de Cabo Verde, — outra colônia portuguesa — estabelecendo-se a princípio na Ilha de Santiago. Em seguida, morou em Mindelo, na Ilha de São Vicente, onde cursou o ensino básico no Liceu Gil Eanes. Sua estadia na ilha coincidiu com um período de grave crise humanitária, quando a seca e a fome mataram 50 mil pessoas e provocaram o êxodo de parte da população local.
Em 1944, após concluir o ensino secundário, Amílcar se mudou para Praia, capital de Cabo Verde, onde passou a trabalhar na Imprensa Nacional. No ano seguinte, agraciado com uma bolsa de estudos, ele partiu para Portugal, a fim de cursar Engenharia Agronômica no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa. Único aluno negro em sua turma, Amílcar se aproximou dos grupos antifascistas e dos movimentos estudantis de oposição ao regime ditatorial de Salazar.
Na capital portuguesa, Amílcar também criou laços com a comunidade de africanos hospedados na Casa dos Estudantes do Império (CEI) — uma república estudantil mantida pelo governo português, destinada a abrigar os alunos oriundos das colônias africanas. Inicialmente concebida para fortalecer os vínculos coloniais, a CEI se converteu em um ambiente propício para a difusão do pensamento anticolonial, abrigando diversos nomes que se destacariam como líderes dos movimentos emancipacionistas africanos. Na CEI, Amílcar travou contato com nomes como Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade e Marcelino dos Santos.
O contato e a troca de experiências com estudantes de diferentes colônias portuguesas aguçou a consciência crítica de Amílcar sobre a injustiça do sistema colonial. Ele ajudou a fundar o Centro de Estudos Africanos — organização que propunha a valorização das tradições e identidades culturais africanas, inspirada por iniciativas como o grupo literário “Vamos Descobrir Angola”, criado por Agostinho Neto, ou o movimento “Negritude”, concebido por Léopold Sédar Senghor.
Amílcar também militou na seção juvenil do Movimento de Unidade Democrática (MUD), uma organização anti-salazarista vinculada ao Partido Comunista Português, mas se desligou do grupo por divergências sobre as questões coloniais.
Graduado em 1950, Amílcar trabalhou por dois anos na Estação Agronômica Nacional de Sacavém, nos arredores de Lisboa. Retornou a Guiné-Bissau em 1952, assumindo o cargo de adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais. No ano seguinte, tomou parte do Recenseamento Agrícola, tarefa que o levou a percorrer todo o país e o colocou em contato com a miséria e a injustiça social que afligiam o povo guineense. Cada vez mais ativo em sua atuação política, buscou ampliar os vínculos com as organizações anticoloniais.
Em 1955, Amílcar participou da Conferência de Bandung, sediada na Indonésia. O encontro reuniu 29 nações africanas e asiáticas e é considerado um dos primeiros movimentos voltados a fomentar a cooperação política, cultural e econômica entre as nações do Sul Global.
As atividades políticas de Amílcar despertaram incômodo no governador de Guiné-Bissau, o almirante Melo Alvim, que logo agiu para conseguir sua transferência. Realocado para Angola, ele se aproximou do líder anticolonial Viriato Clemente da Cruz. Amílcar foi um dos signatários do Manifesto de 1956, sendo considerado, portanto, um dos fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).
Ainda em 1956, inspirado pela luta dos angolanos, Amílcar fundou o Partido Africano da Independência (PAI), em conjunto com seu irmão, Luís Cabral, e outros ativistas guineenses e cabo-verdianos — Aristides Pereira, Fernando Fortes, Júlio de Almeida, Elisée Turpin, etc.

Amílcar Cabral retratado em 1964
Em 1962, a organização teria sua denominação alterada para Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Amílcar assumiu o cargo de secretário-geral da agremiação e buscou estabelecer vínculos com os movimentos sindicais e camponeses.
Em agosto de 1959, o PAIGC ajudou a articular uma greve de marinheiros e estivadores do Porto de Pidjiguiti. Os trabalhadores ligados à Casa Gouveia exigiam melhores condições de trabalho e salários dignos. Orientada a dissolver a paralisação, a polícia colonial portuguesa abriu fogo contra os manifestantes, matando cerca de 70 pessoas. O Massacre de Pidjiguiti enfureceu a população guineense e servindo como catalisador para a radicalização da resistência anticolonial, intensificando a luta pela independência do país.
Convencido de que a luta armada era imprescindível para a emancipação das nações africanas, Amílcar ajudou a fundar a Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colônias Portuguesas (FRAIN). A organização foi criada durante a 2ª Conferência dos Povos Africanos, sediada em Túnis, e reunia o PAIGC, o MPLA, a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP). A criação da frente abriu caminho que o PAIGC estabelecesse uma representação legal na vizinha Guiné-Conacri, deixando de atuar clandestinamente.
Nos anos seguintes, o PAIGC iniciou os preparativos para a guerra de independência, treinando e armando combatentes. Amílcar conseguiu cooptar apoio internacional à causa independentista, recebendo auxílio financeiro, logístico e militar de União Soviética, Cuba e China. Apoiado pelo presidente Kwame Nkrumah, ele montou diversos campos de treinamento de guerrilha em Gana. Recebeu também recursos financeiros e armas enviados pelo governo do Marrocos.
A luta armada do PAIGC contra Portugal teve início em janeiro de 1963, quando os guerrilheiros guineenses lançaram uma ofensiva contra a fortaleza portuguesa na cidade de Tite. Em seguida, as tropas do PAIGC atacaram as estações policiais de Fulacunda e Buba. Amílcar combinou as ações militares com esforços para conquistar apoio político da população guineense.
O PAIGC treinou os guerrilheiros em técnicas agronômicas para que pudessem arar os campos e aumentar a produtividade dos territórios conquistados, montou hospitais de campanha que atendiam a população em geral e criou bazares itinerantes que disponibilizavam produtos básicos a preços inferiores aos praticados pelas lojas ligadas à administração colonial.
O PAIGC também realizava ações de conscientização política e social junto aso camponeses. Ciente do peso da estrutura agrária na Guiné-Bissau, Amílcar identificava o campesinato como a força-motriz necessária a qualquer processo revolucionário. Sua experiência como agrônomo e o conhecimento da realidade da população rural foram fundamentais para o sucesso desse trabalho de politização no campo.
Amílcar comandou as forças autonomistas de Guiné-Bissau por uma década, conduzindo uma das mais bem sucedidas campanhas de independência do continente africano. Apenas quatro anos após o início do conflito, o PAIGC já controlava dois terços do território guineense. A estratégia foi tão bem sucedida que o comando militar português decidiu copiá-la: em 1968, o novo governador da colônia, António de Spínola, passou a construir escolas, hospitais e moradias para tentar cooptar apoio da população nativa.
Amílcar resistiu a todas as contraofensivas de Portugal, incluindo a fracassada Operação Mar Verde, que objetivava eliminar os líderes do PAIGC aquartelados em Conacri. Conseguiu também angariar crescente respaldo à luta emancipacionista. Em 1970, ele obteve apoio do Papa Paulo VI, que o recebeu em uma audiência privada. Em 1972, Cabral começou a formar uma Assembleia Popular para conduzir o governo provisório, já antevendo que a independência da Guiné-Bissau era uma questão de tempo. Ele não chegaria, entretanto, a testemunhar o sucesso de sua luta.
Em 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi assassinado a tiros em Conacri, em um atentado coordenado por Inocêncio Kani, um dissidente do PAIGC. A motivação do atentado, por vezes atribuída à ingerência estrangeira, permanece obscura até os dias de hoje. A morte de Cabral, entretanto, resultou na intensificação da luta armada e, alguns meses depois, em 24 de setembro de 1973, a independência de Guiné-Bissau foi proclamada unilateralmente.
Seu irmão, Luís Cabral, foi nomeado como primeiro presidente do país. Portugal reconheceria a independência de Guiné-Bissau no ano seguinte, em 25 de abril de 1974, após o regime ditatorial do Estado Novo ser deposto pela Revolução dos Cravos.
Além de ser o arquiteto da independência da Guiné-Bissau e um dos principais expoentes da luta anticolonial da África lusófona, Amílcar Cabral deixou um importante legado intelectual. Ele foi um dos primeiros teóricos africanos a destacar a importância da cultura no processo de libertação.
Em seus discursos e escritos, Amílcar argumentou que o domínio colonial não se assentava apenas na subjugação econômica, mas também na destruição da identidade cultural dos povos africanos. A valorização da cultura, portanto, seria uma condição fundamental para fortalecer a resistência anticolonial. Essas ideias seguem até hoje influenciando o pensamento e as ações daqueles que lutam pela libertação cultural, social e econômica dos povos oprimidos.