Há 103 anos, em 19 de setembro de 1921, nascia o filósofo e educador pernambucano Paulo Freire, expoente máximo da pedagogia crítica e referência basilar dos movimentos de educação popular. Influenciado pelo existencialismo cristão e pelas ideias marxistas, Paulo Freire desenvolveu um método de alfabetização dialético, assentado na conscientização política e no recurso aos temas da vida cotidiana dos alfabetizandos. Sua obra mais famosa, “Pedagogia do Oprimido”, é o terceiro livro mais citado em trabalhos acadêmicos de ciências sociais em todo o mundo.
Paulo Freire nasceu em Recife, como um dos quatro filhos do policial Joaquim Temístocles Freire e da dona de casa Edeltrudes Neves Freire, dita “Dona Tudinha”. A família passou por graves dificuldades financeiras após a eclosão da Crise de 1929 e o falecimento de Joaquim em 1934, sendo submetida a severas privações materiais — experiência que marcaria profundamente a futura atuação política e profissional do educador. Malgrado as dificuldades, Paulo Freire concluiu o ensino básico como bolsista do Colégio Oswaldo Cruz. Atuou como auxiliar de disciplina nessa mesma instituição e, posteriormente, como professor de língua portuguesa. Em 1943, ingressou no curso de direito da Universidade do Recife (atual UFPE). No ano seguinte, casou-se com a professora Elza Maia Costa de Oliveira.
Em 1947, Paulo Freire assumiu a direção do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (SESI), onde coordenou um trabalho de alfabetização de jovens e adultos voltado aos operários da indústria e suas famílias. Ocupou paralelamente diversos cargos públicos na prefeitura de Recife: foi membro do Conselho Consultivo de Educação a partir de 1956 e diretor no Departamento de Documentação e Cultura após 1961. Doutorou-se em filosofia e história da educação pela Universidade de Recife em 1959, com a tese “Educação e Atualidade Brasileira”. Tornou-se professor dessa mesma instituição, lecionando filosofia da educação na Escola de Belas Artes. Em 1961, assumiu a direção do Departamento de Extensões Culturais, ocasião em que iniciou seus trabalhos experimentais com alfabetização de adultos. Foi igualmente um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular, surgido em Recife no início dos anos 60.
Em 1963, Paulo Freire chefiou um projeto experimental de erradicação do analfabetismo na cidade de Angicos, no interior do Rio Grande do Norte. O educador elaborou um plano de ação, criou uma comissão de coordenadores e treinou os professores para aplicar o método. O projeto resultou na alfabetização de 380 jovens e adultos em apenas 40 horas. O modelo didático experimental estimulava o aprendizado por meio da discussão sobre o cotidiano da comunidade, o universo vocabular e as experiências de vida dos alfabetizandos, encorajando igualmente o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre a realidade social. O método, fundamentado na autonomia pedagógica do estudante, contrapunha-se ao que Paulo Freire chamava de “educação bancária” — modelo dominado pela figura do professor como centro do processo de aprendizado, detentor do conhecimento que é “depositado” junto aos alunos.
O sucesso na aplicação do método experimental, que permitia a alfabetização rápida de um grande contingente de pessoas a baixo custo, despertou o interesse das autoridades. Ainda em 1963, Paulo Freire foi indicado pelo governador de Pernambuco, Miguel Arraes, para integrar Conselho Estadual de Educação. Também no mesmo ano, Paulo Freire foi conduzido à direção do Plano Nacional de Educação (PNE), durante o governo de João Goulart, recebendo a incumbência de aplicar seu método de alfabetização a 16 milhões de adultos durante quatro anos.
A iniciativa, entretanto, enfrentou forte resistência das oligarquias e da classe dirigente, receosos em relação ao impacto político da alfabetização em massa. Como a legislação eleitoral vigente assegurava o direito de voto aos cidadãos alfabetizados, o projeto tocado por Paulo Freire daria direitos políticos a milhões de novos eleitores de baixa renda, desvinculados dos interesses das classes dominantes. Paralelamente, ocorreu no Rio Grande do Norte uma greve de trabalhadores da construção civil alfabetizados pelo método freiriano. Após tomarem ciência do conteúdo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os operários cruzaram os braços e passaram a exigir dos empregadores o cumprimento de direitos como o descanso semanal remunerado e a jornada de trabalho limitada.
Após a deposição de João Goulart no golpe de 1964, o cancelamento do Plano Nacional de Educação foi uma das primeiras medidas tomadas pelos militares. Paulo Freire foi preso pelos golpistas e ficou detido por 72 dias. No inquérito que embasou o pedido de prisão, conduzido pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima, o educador era descrito como “cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador” e “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”. O documento ainda descrevia a atuação de Paulo Freire no campo da alfabetização como “nada mais que uma extraordinária tarefa marxista de politização”.
Outras dezenas de educadores ligados ao PNE e à experiência de Angicos também foram presos, incluindo o coordenador Marcos Guerra. Posteriormente, em substituição ao projeto de alfabetização de Paulo Freire, a ditadura militar instituiria o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), alicerçado sob os preceitos autoritários e despolitizantes do regime.
Após ser libertado, Paulo Freire se exilou no Chile, onde trabalhou para o Instituto Chileno de Reforma Agrária. Durante sua estadia em Santiago, escreveu duas de suas principais obras: “Educação Como Prática da Liberdade”, publicada em 1967, e “Pedagogia do Oprimido”, lançada em espanhol e inglês em 1970 e publicada em português em 1974. Em 1969, convidado a lecionar na Universidade de Harvard, viajou para os Estados Unidos. No ano seguinte, mudou-se para Genebra, Suíça, passando a atuar como consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Ao longo da década de setenta, Paulo Freire viajou para mais de 30 países, prestando consultoria educacional e ajudando a coordenar projetos de alfabetização. Teve destacada atuação na África, onde implementou importantes projetos educacionais em Guiné-Bissau, Moçambique, Zâmbia e Cabo Verde.
Paulo Freire retornou ao Brasil em 1980, um ano após a sanção da Lei da Anistia, que permitia o regresso dos exilados políticos. Nesse mesmo ano, tornou-se um dos membros-fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Atuou no movimento pela redemocratização e na campanha das Diretas Já. Também retomou a carreira letiva, dando aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 1988, dois anos após o falecimento de sua primeira esposa, Elza, casou-se com Ana Maria Araújo, que seria sua companheira até o fim da vida. Nesse mesmo ano, foi nomeado secretário de educação da Prefeitura de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina. À frente da pasta, Paulo Freire expandiu a rede de ensino, buscou universalizar o acesso à educação básica, criou o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA) e instituiu a política de formação continuada em serviço. Permaneceu no cargo até 1991, sendo sucedido por seu orientando de doutorado na PUC-SP, Mario Sergio Cortella. Faleceu na capital paulista seis anos depois, em 2 de maio de 1997, aos 76 anos.
Paulo Freire é considerado o mais influente educador da teoria e da prática da pedagogia crítica. É o terceiro acadêmico mais citado em trabalhos na área de humanidades no mundo, à frente de nomes como Michel Foucault e Pierre Bourdieu, e é o único brasileiro presente entre os cem autores mais lidos nas universidades anglófonas. O acadêmico alemão Heinz Peter Gerhardt o descreveu como “o educador mais bem conhecido de nossa era” e “um educador utópico que manteve sua fé na habilidade das pessoas expressarem suas ideias, ajudando a recriar um mundo mais inclinado à justiça social.” Em todo o mundo, há cerca de 350 escolas, universidades, bibliotecas e instituições batizadas com seu nome. É o patrono de nove cátedras dedicadas à sua memória e foi homenageado com 35 títulos de doutor “honoris causa” em universidades brasileiras, americanas e europeias. Também foi laureado com o Prêmio da UNESCO para a Educação e a Paz em 1986 e é o Patrono da Educação Brasileira desde abril de 2012.