Segunda-feira, 9 de junho de 2025
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Há 104 anos, em 12 de maio de 1921, nascia Ruth de Souza, uma das primeiras grandes damas da dramaturgia brasileira. Ela foi a primeira atriz negra a obter destaque no teatro, cinema e televisão no Brasil — quebrando barreiras em um meio fortemente segregado e tornando-se uma referência para a luta antirracista.

Ruth de Souza ostenta uma carreira marcada pelo pioneirismo. Integrante do Teatro Experimental do Negro, ela compôs o elenco de O Imperador Jones, a primeira peça dramatizada por atores negros nos palcos do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

No cinema, Ruth atuou em diversos filmes de destaque, incluindo Também Somos Irmãos, uma das primeiras obras nacionais a discutir a questão do racismo.

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Em 1954, ela se tornou a primeira brasileira a ser indicada para um prêmio internacional de cinema, concorrendo ao Coppa Volpi de Melhor Atriz no Festival de Veneza por seu papel em Sinhá Moça. Foi ainda uma das primeiras atrizes negras a exercer o papel de protagonista nas novelas brasileiras.

Os anos iniciais

Ruth de Souza nasceu no bairro de Engenho de Dentro, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela era a filha mais velha de Alaíde Pinto e Sebastião Joaquim Souza. Ainda pequena, mudou-se para um sítio no interior de Minas Gerais, onde a família trabalhou na lavoura. Após a morte do pai, ocorrida quando tinha 9 anos de idade, Ruth retornou ao Rio de Janeiro com a mãe e os irmãos.

A família se instalou em uma vila humilde no bairro de Copacabana. Apesar das dificuldades financeiras, Alaíde se esforçava ao máximo para garantir que os filhos tivessem acesso à educação e à cultura. Trabalhando como lavadeira, Alaíde eventualmente ganhava ingressos de suas patroas para assistir filmes ou espetáculos no Theatro Municipal — experiências que encantavam a jovem Ruth.

Aos 11 anos, entusiasmada com o sucesso de Tarzan, o Filho das Selvas, Ruth passou a sonhar com a carreira de atriz. Mas quando dizia isso a outras pessoas, a menina recebia somente comentários de chacota e desaprovação. “As pessoas riam e diziam que não existia artista preto”, relembrou Ruth em uma entrevista.

O Teatro Experimental do Negro

A oportunidade de realizar seu sonho viria nos anos 40, quando Ruth conheceu o Teatro Experimental do Negro (TEN) — uma companhia criada por Abdias do Nascimento em 1944.

Considerada uma das mais importantes iniciativas culturais voltadas à valorização da identidade negra, a companhia buscava reabilitar a herança cultural afro-brasileira e ampliar a presença e o protagonismo de artistas negros nos palcos do Brasil.

A atuação do TEN ultrapassou largamente o âmbito das artes cênicas, convertendo-se em um movimento político de relevo, responsável por propor estratégias de enfrentamento ao racismo e de organização política da população negra.

Ruth de Souza participou da primeira apresentação do TEN no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 1945, participando do elenco de O Imperador Jones — peça escrita pelo dramaturgo socialista norte-americano Eugene O’Neill, que cedeu gratuitamente os direitos para a montagem.

O Imperador Jones foi um marco histórico do teatro e da luta antirracista no Brasil. Era a primeira vez em que um elenco negro se apresentava nos palcos do Municipal.

Ruth participaria de outras importantes montagens do Teatro Experimental do Negro, incluindo Todos os Filhos de Deus Tem Asas e O Moleque Sonhador, ambas de Eugene O’Neill, Aruanda, de Joaquim Ribeiro, e Filhos de Santo, de José de Moraes Pinho.

Em 1947, Ruth atuou em Terras do Sem-Fim, espetáculo baseado na obra homônima de Jorge Amado, abordando a religiosidade afro-brasileira e pontuada por comentários sociais e denúncias sobre a exclusão da população negra.

Nesse mesmo ano, Ruth viveu Aíla em O Filho Pródigo, peça de Lúcio Cardoso escrita especialmente para o TEN. Sua performance causou ótima impressão e lhe rendeu um prêmio de melhor revelação. Em uma crítica de Maria Nascimento, Ruth seria elogiada por sua “rara sensibilidade e poder expressional”.

A carreira no cinema

Ainda em 1948, Ruth fez sua estreia no cinema brasileiro. Ela foi indicada pelo próprio Jorge Amado para interpretar Joana no filme Terra Violenta, adaptação cinematográfica de Terras do Sem-Fim. O filme foi dirigido pelo norte-americano Edmond Bernoudy e contava com nomes como Anselmo Duarte e Ziembinski no elenco.

A partir de então, a carreira de Ruth no cinema deslanchou. Ela atuou em diversos filmes produzidos pelas maiores companhias cinematográficas do Brasil — Atlântida, Vera Cruz e Maristela Filmes.

Ruth de Souza
Fundo Correio da Manhã, Arquivo Nacional / Wikimedia Commons

Demonstrando grande versatilidade, Ruth brilhava em filmes que iam da comédia ao drama. Em 1948, trabalhou com Oscarito no divertido Falta Alguém no Manicômio. No ano seguinte, contracenou com Grande Otelo em Também Somos Irmãos, de José Carlos Burle, um dos primeiros filmes brasileiros a abordar criticamente a questão do racismo.

No início dos anos 50, por indicação do teatrólogo Pascoal Carlos Magno, Ruth recebeu uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller. Ela passaria um ano nos Estados Unidos, realizando cursos em instituições como a Universidade Howard, em Washington, a Karamu House, em Cleveland e a American National Theater and Academy, em Nova York.

Além do aprimoramento do repertório e das técnicas de atuação, a experiência serviu para que Ruth mantivesse forte contato com a comunidade artística negra e se conectasse com a luta pelos direitos civis, que começava a ganhar força nos Estados Unidos.

De volta ao Brasil, Ruth atuou no premiado Terra É Sempre Terra, de Tom Payne. Ela voltou a trabalhar com Payne em 1953, no filme Sinhá Moça, baseado no romance homônimo de Maria Dezonne Pacheco Fernandes.

O filme foi um grande sucesso de crítica e de público, sendo premiado nos festivais de Havana e Punta del Este e recebendo a Menção Honrosa do Festival de Berlim.

Sinhá Moça aborda a resistência negra nos últimos anos da escravidão no Brasil. Ruth interpretava a escravizada Sabina, que liderou a fuga de uma fazenda. Sua atuação foi muito elogiada pela altivez que emprestou à personagem, rompendo com os estereótipos dos cativos resignados e submissos, que eram tão comuns no cinema.

A performance de Ruth foi tão singular que em 1954 ela se tornaria a primeira artista brasileira a ser indicada para um prêmio internacional. Ela concorreu ao Coppa Volpi de Melhor Atriz no Festival de Veneza, ao lado de nomes como Katharine Hepburn, Michèle Morgan e Lilli Palmer. À época, o concurso era pontuado. Ruth perdeu o prêmio para Palmer por dois pontos de diferença.

Ruth continuou a construir uma filmografia sólida nos anos seguintes. Atuou ao lado de Mazzaropi em Candinho, interpretou Judith no clássico O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, e participou de filmes que marcaram o Cinema Novo, incluindo Pureza Proibida, Alfredo Sternheim.

Telenovelas e outros trabalhos

Ruth também foi uma das pioneiras da televisão brasileira. Em 1951, ela participou do primeiro teleteatro com elenco exclusivamente negro na TV Tupi. Sua estreia em telenovelas ocorreu na década seguinte, participando de A Deusa Vencida, folhetim da TV Excelsior escrito por Ivani Ribeiro e dirigido por Walter Avancini.

A atriz também se destacaria por sua interpretação da mãe de santo Tuiá, na novela Passo dos Ventos, de Janete Clair e Régis Cardoso, onde apresentou condignamente as nuances da cultura afro-brasileira ao grande público. Em 1969, Ruth se tornaria a primeira atriz negra a protagonizar uma telenovela na Rede Globo, dando vida à Cloé de A Cabana do Pai Tomás.

Ao longo de cinco décadas, Ruth participaria de mais de 40 trabalhos na televisão, entre novelas, especiais e minisséries, incluindo clássicos como O Bem-Amado, O Rebu, Os Ossos do Barão, Pacto de Sangue, Mandala, Rainha da Sucata, Caminho das Índias, O Clone, Memorial de Maria Moura, entre outros.

A tendência a revestir personagens negras com dignidade e profundidade e a rejeição aos estereótipos raciais eram características que marcariam a atuação de Ruth também na televisão. Além de pavimentar o caminho para o ingresso de outros artistas negros na teledramaturgia, a atriz se destacou por ser bastante ativa na luta contra o racismo, denunciando episódios de discriminação e criticando a falta de oportunidades.

Em paralelo aos trabalhos na televisão, Ruth seguiu com importantes papéis nos palcos. Em 1959, protagonizou Oração para uma Negra de William Faulkner. Dois anos depois, interpretou Carolina Maria de Jesus na peça Quarto de Despejo, dirigida por Amir Haddad.

No cinema, Ruth atuou ainda em Um Copo de Cólera, de Aluizio Abranches, O Vendedor de Passados, de Lula Buarque, e Filhas do Vento, de Zito Araújo — papel que lhe rendeu o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Gramado.

Seu último trabalho na televisão foi em 2018, na minissérie Se Eu Fechar os Olhos Agora, onde interpretou Madalena, um papel pequeno, mas carregado de simbolismo. No ano seguinte, Ruth foi elogiada pelo samba enredo Ruth de Souza – Senhora Liberdade, Abre as Asas Sobre Nós, apresentado pela Acadêmicos de Santa Cruz no carnaval do Rio de Janeiro.

A atriz também foi agraciada com o Prêmio Dulcina de Moraes, entregue pelo Ministério da Cultura, e o Prêmio Almirante Negro João Cândido, concedido pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Ruth de Souza faleceu em 28 de julho de 2019, aos 98 anos.