106 anos de Dorina Nowill, a ‘Dama da Inclusão’
Educadora criou uma organização que se tornaria referência internacional na produção e distribuição de livros em braille
Há 106 anos, em 28 de maio de 1919, nascia a educadora, filantropa e ativista Dorina Nowill, pioneira da luta pela inclusão de pessoas com deficiência visual no Brasil. Ela foi a primeira aluna cega a conseguir se formar em um curso de magistério no país e também foi responsável por criar o primeiro curso de especialização em educação para cegos na América Latina.
Em 1946, Dorina criou uma organização que se tornaria uma referência internacional na produção e distribuição de livros acessíveis — a Fundação Dorina Nowill, uma das maiores produtoras de livros em braille do mundo.
Dorina dirigiu a Campanha Nacional de Educação de Cegos por mais de uma década e se tornou presidente da União Mundial de Cegos. Articulou igualmente a aprovação da Convenção 159 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que resultaria na ampliação dos direitos para deficientes visuais em todo o mundo. Sua luta incansável pelos direitos dos deficientes visuais lhe valeu o apelido de “Dama da Inclusão”. Desde 2024, é oficialmente reconhecida como heroína do Brasil.
Primeiros anos
Dorina de Gouvêa nasceu na cidade de São Paulo, filha de um casal de imigrantes — a italiana Dolores Panelli e o português Manoel Monteiro de Gouvêa. Alfabetizada em casa, a menina aprendeu a ler e a escrever já aos quatro anos de idade e desenvolveu um enorme interesse pela leitura.
Em 1927, Dorina ingressou no Externato Elvira Brandão, onde cursou quase todo o ensino básico. Aos 17 anos de idade, entretanto, ela teve de interromper os estudos, após ser acometida de uma grave infecção ocular que resultou em uma hemorragia. A causa nunca foi diagnosticada e os procedimentos terapêuticos e cirúrgicos não surtiram efeito. O problema piorou progressivamente, resultando na perda total de sua visão.
O impacto na vida de Dorina foi muito profundo. À época, o Brasil carecia de recursos e políticas voltadas ao atendimento de pessoas com deficiência visual, o que representou um enorme obstáculo para uma jovem.
Com isso, o apoio da família foi fundamental para que Dorina pudesse se adaptar e dar continuidade aos estudos. A mãe a incentivava diariamente e se oferecia para ler revistas, jornais e livros para a filha.
A formação e o curso para cegos
Dorina aprendeu a ler e escrever no sistema braille em 1939, frequentando o Instituto de Cegos Padre Chico. O primeiro livro em braille que ela leu foi A História da Minha Vida, autobiografia escrita por Helen Keller, a primeira surdocega da história a obter um diploma universitário.
A obra inspirou Dorina a dar continuidade ao seu sonho de ser professora — e a estabelecer seus próprios marcos de pioneirismo. Em 1943, ela se tornou a primeira estudante cega a frequentar o Curso Normal da Escola Caetano de Campos, voltado à formação de professores.
A experiência representou uma grande conquista para Dorina, mas também evidenciou as enormes lacunas e desafios do sistema educacional — sobretudo a ausência de livros em braille e o despreparo dos educadores. Alguns professores chegavam a se mostrar incomodados com a presença da jovem. Outros não faziam qualquer esforço para adaptar o conteúdo às suas necessidades.
Essas dificuldades motivaram Dorina a se envolver ativamente na luta pela inclusão de pessoas com deficiência visual no sistema de ensino. Ao longo do curso, ela desenvolveu seu próprio modelo pedagógico a ser utilizado para educação de estudantes cegos.
Dois anos depois, em 1945, Dorina concluiu seu curso de magistério. Ela apresentou então seu modelo pedagógico para o Departamento de Educação do Estado de São Paulo. O projeto foi bastante elogiado e deu origem ao primeiro curso de especialização em educação para cegos da América Latina.
Ainda como fruto dessa iniciativa, no ano de 1947, o governo paulista criaria o Departamento de Educação Especial para Cegos. O órgão seria responsável por estruturar programas educacionais específicos e formar professores especializados, ampliando o acesso à educação para pessoas cegas em todo o estado.
A Fundação Dorina Nowill
Dorina também foi responsável por criar uma das mais importantes organizações voltadas à inclusão das pessoas com deficiência visual no Brasil. Em 1946, auxiliada por amigos e familiares, ela estabeleceu a Fundação Para o Livro do Cego no Brasil (FLCB). A instituição teve seu nome alterado para Fundação Dorina Nowill em 1991 e segue ativa até hoje.
O principal objetivo da fundação era democratizar o acesso a materiais didáticos, sobretudo livros em braille, além de promover programas gratuitos de educação especial, apoio, reabilitação e empregabilidade.
Ainda em 1946, Dorina foi agraciada com uma bolsa de estudos concedida pela American Foundation for The Blind. Ela partiu então para os Estados Unidos, onde realizou um curso de especialização em educação para cegos ministrado pelo Teacher´s College da Universidade de Columbia, em Nova York.
A viagem possibilitou a Dorina o contato com métodos inovadores de ensino e novas estratégias de reabilitação. Também permitiu que ela conhecesse Edward Nowill, um comerciante carioca que estava em uma viagem de negócios a Nova York. Os dois iniciaram um relacionamento que duraria pelo resto da vida. Casaram-se em 1950 e tiveram cinco filhos: Alexandre, Cristiano, Denise, Dorininha e Márcio Manuel.
Nos Estados Unidos, Dorina expôs as dificuldades enfrentadas pelos deficientes visuais no Brasil, em especial a falta de livros em braille. Sensibilizados pelo relato, representantes da Kellogg Foundation e da American Foundation for The Blind doaram uma imprensa braille completa para a Fundação Dorina Nowill, com todo o maquinário e materiais necessários para a operação.
O novo equipamento possibilitou a produção em larga escala de livros em braille no Brasil, marcando o início de uma revolução na acessibilidade educacional. Além dos livros didáticos, a Fundação Dorina Nowill ampliou o seu catálogo, passando a publicar obras literárias, científicas e culturais, permitindo que pessoas cegas tivessem acesso a um universo de conhecimento que até então era extremamente restrito.

Arquivo da Fundação Dorina Nowill
A Campanha Nacional e o ativismo global
Em 1953, Dorina encabeçou outro importante movimento em favor da educação inclusiva, liderando a campanha pela aprovação da lei 2.287, que garantia o direito à educação especial para pessoas cegas. A lei foi sancionada e regulamentada através do decreto 24.714, que detalhou as diretrizes para a implementação de programas de inclusão, estabelecendo um marco na história da educação especial.
No ano seguinte, Dorina viabilizou a realização de uma reunião do Conselho Mundial Para o Bem-Estar do Cego no Brasil. A reunião impulsionou a unificação dos movimentos locais e levou à criação do Conselho Brasileiro Para o Bem-Estar dos Cegos.
Dorina foi nomeada pelo presidente Jânio Quadros, em 1961, para dirigir a Campanha Nacional de Educação de Cegos. Ela permaneceria nessa função por quase 13 anos, promovendo a criação de serviços especializados em todos os estados do Brasil e coordenando iniciativas de capacitação de professores. A educadora também representou o país durante a Conferência da ONU Sobre os Direitos da Mulher, sediada na Cidade do México em 1975.
Internacionalmente reconhecida como uma das grandes lideranças da luta pela inclusão, Dorina seria eleita presidente do Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos (atual União Mundial de Cegos) em 1979.
A brasileira teve uma atuação diplomática de grande relevância ao longo dos anos 80. Em 1981, durante o Ano Internacional da Pessoa Deficiente, Dorina representou o Brasil na Assembleia Geral da ONU — ocasião em que realizou um discurso incisivo, exortando a transferência de tecnologias assistivas dos países desenvolvidos para as nações periféricas.
Durante as conferências da OIT, a educadora defendeu a adoção de medidas para estimular o ingresso de pessoas com deficiência no mercado formal de trabalho. Dorina também foi responsável por negociar a aprovação da Convenção 159 da organização — que seria ratificada por vários governos, incluindo o do Brasil, permitindo a ampliação dos programas de apoio às pessoas cegas.
Em 1996, Dorina lançou sua autobiografia, intitulada E Eu Venci Assim Mesmo, onde narrava sua jornada de superação e seu trabalho incansável pela inclusão social. Apresentado durante a conferência sul-africana da União Mundial de Cegos, em 2004, a obra seria traduzida e distribuída para vários países.
Em seus últimos anos, Dorina ajudou a difundir a campanha “Acessibilidade: Siga Esta Ideia”, que visava criar iniciativas para a superação de limitações arquitetônicas, de mobilidade e de informação.
O legado de Dorina Nowill
Dorina de Gouvêa Nowill faleceu em 29 de agosto de 2010, aos 91 anos de idade. Seu legado e sua missão permanecem vivos no trabalho da Fundação Dorina Nowill, que se consolidou como uma referência internacional em inclusão de pessoas com deficiência visual.
Além dos diversos serviços gratuitos voltados para pessoas cegas, a fundação opera uma das maiores imprensas braille do mundo, responsável por produzir mais de 6.000 títulos e dois milhões de volumes em braille, bem como milhares de obras em áudio ou em meio digital.
A Fundação Dorina Nowill produz mais de 80% dos livros para deficientes visuais utilizados pelo Ministério da Educação. Também é responsável por manter o Centro de Memória Dorina Nowill, o primeiro museu brasileiro voltado a preservar a história das lutas das pessoas cegas.
A vida de Dorina Nowill foi retratada no documentário Dorina – Olhar Para o Mundo, dirigido por Lina Chamie. A educadora também empresta seu nome a uma comenda do Senado Federal, concedida a personalidades que se destacam na promoção dos direitos das pessoas com deficiência.
Dorina também inspirou a criação de “Dorinha”, uma personagem de Maurício de Sousa vinculada à Turma da Mônica. Dorinha é uma menina cega que vive de forma independente e integrada, servindo como um símbolo da inclusão social nas histórias em quadrinhos.
Em 2024, o presidente Lula sancionou a lei 14.796, incluindo o nome de Dorina Nowill no Livro de Aço dos Heróis e Heroínas da Pátria.