Há 107 anos, em 3 de julho de 1917, nascia o militante comunista, jornalista e treinador de futebol João Saldanha. Atuante nas lutas operárias nos anos 50, João Saldanha se consagrou como comentarista esportivo. Indicado como técnico da Seleção Brasileira, garantiu a classificação para a Copa do Mundo de 1970, mas foi removido do comando da equipe por se negar a selecionar os jogadores indicados pelo general Médici.
Por sua oposição firme à ditadura militar, recebeu o epíteto de “João Sem Medo”.
João Saldanha nasceu em Alegrete, interior do Rio Grande do Sul, filho do advogado Gaspar Saldanha e de Jenny Jobim. Sua família participou ativamente da Revolução de 1923, associando-se aos “Maragatos” — herdeiros do levante federalista e apoiadores de Assis Brasil, que faziam oposição a Borges de Medeiros e seus correligionários, ditos “Ximangos”. Exilou-se com a família em Rivera, no Uruguai, auxiliando no contrabando de armas e munições para os rebeldes gaúchos.
Com o término do conflito, retornou ao Rio Grande do Sul, mudando-se em seguida para o Paraná. Interessou-se pelo futebol em Curitiba, frequentando os treinos das divisões de base do Atlético Paranaense. Com a ascensão de Getúlio Vargas na Revolução de 1930, sua família, partidária do líder gaúcho, se mudou para o Rio de Janeiro, onde obteve a concessão de um cartório.
No Rio de Janeiro, Saldanha concluiu o ensino secundário no Colégio Pedro II e atuou nas categorias de base do Botafogo, chegando a jogar profissionalmente por alguns anos. Em 1935, ingressou no curso de direito da Universidade do Distrito Federal (atual UERJ), onde travou contato com militantes da esquerda radical, filiando-se posteriormente ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB). Foi expulso da universidade depois de enfrentar um grupo de policiais que invadiu o campus para reprimir apoiadores do Levante Comunista de 1935.
Entre 1939 e 1940, atuou como intérprete de Dori Kürschner, treinador húngaro contratado pelo Botafogo, com quem aprendeu noções básicas sobre os esquemas táticos do futebol.
Em 1944, Saldanha assumiu o cargo de diretor de futebol do Botafogo, exercendo a função de forma intermitente em função de sua atividade política. Terminada a Segunda Guerra Mundial, viajou para França para aprofundar seus estudos sobre marxismo. Em Paris, fez amizade com o jornalista italiano Sandrino Saverio, que o convidou para atuar em sua agência de notícias.
Em seu retorno ao Brasil, Saldanha passou a trabalhar na redação da Folha do Povo, órgão de imprensa do PCB, e assumiu a secretária-geral da União da Juventude Comunista (UJC). Em 1947, foi detido pelo DOPS, acusado de subversão. Após a cassação do registro do PCB, assumiu a Presidência da UJC e participou do I Congresso Brasileiro de Defesa da Paz, organizado clandestinamente pela União Nacional dos Estudantes (UNE).
Durante a repressão ao congresso, Saldanha foi alvejado pela polícia e voltou a ser detido. Seguiu para São Paulo, onde integrou a campanha “O Petróleo é Nosso” e foi novamente preso. Decidiu então deixar o país, partindo para a Europa em 1949.
Depois de frequentar cursos de formação política na União Soviética, Saldanha embarcou para a China, onde participou das celebrações do primeiro aniversário da Revolução Chinesa. Regressou ao Brasil em 1950, recebendo do partido a incumbência de auxiliar os militantes do PCB ativos na chamada Guerra de Porecatu — conflito armado entre camponeses e latifundiários pela posse de terras no Vale do Rio Paranapanema.
Saldanha organizou a entrega de recursos aos camponeses rebelados e ajudou a negociar o fim do conflito com o governo do Paraná, assegurando a distribuição de terra a mais de 1.500 famílias. Em 1953, Saldanha se tornou um dos articuladores da Greve dos 300 Mil em São Paulo — histórica paralisação que marcou o ápice da mobilização operária iniciada com a Passeata da Panela Vazia. A greve se estendeu por quase um mês, paralisando os transportes e diversos setores da economia, e garantiu um reajuste salarial de 32% para as categorias mobilizadas.
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Em 1957, foi contratado como técnico pelo Botafogo. Contando com um elenco de estrelas do porte de Garrincha, Didi e Nilton Santos, Saldanha liderou o time na conquista do Campeonato Carioca daquele ano, coroada pela vitória de 6 a 2 contra o Fluminense na final, encerrando um jejum que se arrastava desde 1948. Permaneceu na função até 1959, quando iniciou sua trajetória de comentarista esportivo na Rádio Nacional, destacando-se de imediato pelas análises assertivas, cáusticas e bem humoradas, eventualmente pontuadas por comentários políticos. Atuou ainda nas rádios Guanabara, Globo e Tupi e passou a escrever artigos e crônicas esportivas para o Última Hora e o Jornal do Brasil.
Estreou na televisão integrando a mesa redonda do programa Grande Resenha Facit, transmitido pela TV Rio, ao lado de Luiz Mendes, Nelson Rodrigues e Armando Nogueira. Após o golpe militar de 1964, Saldanha foi demitido da Rádio Nacional. Recebeu então um convite para trabalhar na Rádio Continental, mas foi dispensado logo após a sua estreia por fazer críticas aos militares.
Dois anos depois, foi contratado pela Rede Globo, onde obteve destaque nacional com seus comentários ácidos sobre o desempenho sofrível da equipe brasileira na Copa do Mundo de 1966. Em 1969, Saldanha aceitou o convite de João Havelange para ser técnico da Seleção Brasileira. Atribuindo o fiasco na Copa da Inglaterra à ausência de um time base, Saldanha buscou compor uma equipe majoritariamente formada por nomes do Santos, Botafogo e Cruzeiro, visando potencializar o entrosamento dos jogadores em seus respectivos clubes.
Abarcando nomes como Carlos Alberto Torres, Djalma Dias, Felix, Jairzinho, Tostão e Pelé, o time alcunhado como “Feras do Saldanha” obteria 100% de aproveitamento nas eliminatórias, garantindo a vaga do Brasil na Copa do Mundo de 1970. A presença de um comunista na Seleção Brasileira, entretanto, desagradava profundamente o general Emílio Garrastazu Médici. Saldanha também nutria repulsa pelo general e se recusou a comparecer a uma reunião que Médici marcara com a Confederação Brasileira de Desportos, justificando posteriormente que o militar era “o maior assassino da história do Brasil”.
Quando Médici comentou que gostaria que o centroavante Dadá Maravilha fosse escalado para a Seleção Brasileira, Saldanha rejeitou enfaticamente a sugestão: “nem eu escalo Ministério e nem o presidente escala time”, afirmou. Duas semanas após a declaração, Saldanha foi demitido e substituído por Zagallo.
O time escalado por Saldanha venceria a Copa de 1970 e se consagraria como uma das melhores seleções da história. Saldanha, por sua vez, receberia de Nelson Rodrigues a alcunha “João Sem Medo” pela coragem de desafiar o regime.
Além das críticas públicas à ditadura, Saldanha havia montado um dossiê com os nomes de mais de 3.000 pessoas que foram presas, assassinadas e torturadas pela ditadura e distribuiu às autoridades internacionais durante suas viagens com a seleção. Após sua demissão, Saldanha retomou sua atuação no jornalismo esportivo, apresentando o Dois Minutos com João Saldanha na Rede Globo, o Manchete Esportiva na Rede Manchete e escrevendo para a revista Placar.
Tornou-se um dos maiores críticos da “europeização” do futebol brasileiro, rejeitando a adoção de esquemas táticos alheios às características do futebol nacional.
Em 1985, nas primeiras eleições diretas para a prefeitura do Rio de Janeiro desde o golpe militar, Saldanha concorreu como vice na chapa encabeçada por Marcelo Cerqueira, do PSB. A chapa terminou em quarto lugar na disputa, angariando 7% dos votos.
Debilitado por problemas respiratórios, faleceu em Roma em 12 de julho de 1990, enquanto fazia a cobertura da Copa da Itália.