Há 114 anos, em 29 de julho de 1910, ocorria no Texas o Massacre de Slocum, um dos mais sangrentos episódios de violência racial da história dos Estados Unidos. Motivado por uma série de boatos sobre um motim da população negra, um grupo de homens brancos armados assassinou dezenas de afro-americanos. Apesar da gravidade do ocorrido, os assassinos nunca foram punidos e a matança foi apagada da historiografia oficial, permanecendo até hoje largamente desconhecida até pelos texanos.
Base da economia e da organização social do Texas até a Guerra de Secessão, a escravidão deixou uma herança das mais perniciosas. O ideário supremacista permaneceu intocado no estado e fomentou a consolidação de um sistema social rigidamente segregado, no qual os afro-americanos eram relegados à condição de subcidadãos. Esse sistema foi institucionalizado através das Leis de Jim Crow, que privavam os negros de usufruírem dos mesmos direitos e serviços a que os brancos tinham acesso.
O fim da escravidão alimentou o ressentimento dos brancos e o estímulo constante ao ódio racial fez explodir a violência no estado, submetendo os afro-americanos a um ambiente de terror e opressão. O Texas abrigou um grande número de grupos paramilitares supremacistas, nomeadamente as milícias da Ku Klux Klan, e serviu de palco para uma série de ataques contra as comunidades negras. O Texas foi o terceiro estado norte-americano com maior número de linchamentos de negros, registrando 339 casos entre 1885 e 1942.
Apesar das inúmeras dificuldades, a população negra do Texas conseguiu criar seus bolsões de resistência. Esse era o caso de Slocum, uma comunidade do condado de Anderson, no leste do Texas. Slocum era uma pequena comunidade agrícola composta por ex-escravizados e seus descendentes. Ela abrigava um bom número de famílias negras que conseguiram prosperar como proprietários de terras. No início do século XX, o padrão de vida em Slocum ainda era modesto, mas algumas famílias negras já eram donas de lojas, celeiros, fábricas de laticínios e gráficas. Isso foi o suficiente para causar desconforto na população branca da região, incomodada com a “subversão” dos preceitos da supremacia racial.
O ano de 1910 foi marcado por uma grande onda de conflitos raciais nos Estados Unidos — e o fator de ignição de uma boa parte delas foi uma luta de boxe. Em 1908, o boxeador negro Jack Johnson havia se consagrado como campeão mundial de pesos-pesados, causando indignação dos supremacistas norte-americanos. Uma campanha foi criada para convencer o ex-campeão aposentado da categoria, James Jeffries, a retornar aos ringues para “recuperar o cinturão para os brancos”. Alcunhado “A Grande Esperança Branca”, Jeffries topou o desafio. A luta contra Jack Johnson ocorreu em 4 de julho de 1910 — e terminou com a derrota humilhante do boxeador branco. A celebração efusiva dos afro-americanos enfureceu os racistas, causando uma série de motins e ataques em dezenas de cidades dos Estados Unidos, incluindo localidades do Texas. Em Houston, Charles Williams, um simpatizante da luta negra, foi degolado por comemorar a vitória de Jack Johnson.
Em paralelo, Slocum também registrou episódios que contribuíram para o acirramento da tensão racial — incluindo o desentendimento entre Marsh Holley, um rico empresário negro, e Reddin Alford, um fazendeiro branco. Os dois tiveram uma discussão acerca de uma nota promissória, mas a notícia que se espalhou entre os brancos foi a de que Holley estava tentando dar um golpe em Alford. Os brancos de Slocum também ficaram indignados quando receberam a notícia de que Abe Wilson, um proprietário de terras negro, havia sido incumbido por um oficial do condado de chefiar os trabalhos de manutenção de uma estrada da região.
A ideia de que um homem negro seria responsável por comandar os trabalhadores brancos durante uma tarefa braçal foi a gota d’água. E Jim Spurger, um fazendeiro branco, era o opositor mais virulento. Extremamente racista, Spurger seria o principal responsável por incitar a matança dos negros em Slocum. Ele começou a difundir uma série de boatos, afirmando que os negros estavam se armando e arquitetando um motim para dizimar todas as famílias brancas da região. A rebelião, segundo Spurger, seria uma resposta aos constantes linchamentos de negros no leste do Texas.
Não havia quaisquer indícios de que os afro-americanos estavam conspirando para realizar um ataque, — tampouco que estivessem adquirindo armas com esse intento — mas a notícia se espalhou rapidamente na região, causando pânico e histeria. Os brancos do condado solicitaram o envio de reforços das cidades vizinhas e iniciaram os preparativos para uma ofensiva contra os afro-americanos, estocando armas e munições. Uma milícia com cerca de 200 homens foi criada.
O massacre começou em 29 de julho de 1910. Após esconderem suas esposas e filhos nas escolas e igrejas do condado, os brancos partiram para a matança. Para cobrir toda a área de Slocum, os homens se dividiram em vários grupos e começaram uma verdadeira caçada, cobrindo casa por casa, fazenda por fazenda. Mataram todos os negros que encontraram pelo caminho, incluindo mulheres, adolescentes e crianças. Suas propriedades eram saqueadas e incendiadas. Testemunhas relataram que a matança deixou vários corpos espalhados pelas ruas e pelos campos da cidade. Algumas pessoas tentaram fugir da chacina se escondendo nas florestas da região, mas a perseguição se estendeu às matas. O massacre prosseguiu madrugada adentro e somente foi encerrado no dia seguinte.
Não se sabe o número exato de vítimas do Massacre de Slocum. As fontes da época, incluindo as reportagens locais, registraram números muito conflitantes, entre 8 e 25 mortos, mas o próprio xerife que atuou no caso, William Black, reconheceu que o número real deveria ser bem maior. A tradição oral, baseada nos relatos das testemunhas e sobreviventes, aponta que até 200 pessoas morreram na chacina. Todas as vítimas identificadas estavam desarmadas. A maioria morreu com tiros pelas costas. Amedrontados, afro-americanos que sobreviveram ao ataque abandonaram suas casas, negócios e fazendas e deixaram o condado apenas com a roupa do corpo. O censo de 1920 registrou que a população negra de Slocum havia sido reduzida pela metade.
O massacre ganhou cobertura na imprensa, mas a maioria dos jornais responsabilizou os afro-americanos pela violência. Veículos como o Fort Worth Star-Telegram, Greenville Morning Herald e New York Tribune validaram os boatos criados por Jim Spurger, atribuindo o conflito a supostos “motins negros”. A mesma justificativa foi dada pela Associated Press, que publicou reportagem afirmando que “os negros estavam se armando” e que o derramamento de sangue era “inevitável”. O New York Times foi uma rara exceção. O diário novaiorquino admitiu que os afro-americanos foram “abatidos como animais” e esclareceu que não havia nenhum motivo para a matança.
Em resposta ao massacre, o governador Thomas Campbell despachou a Milícia Estadual e uma equipe dos Texas Rangers para o condado. A investigação conduzida pelo xerife William Black resultou em 11 prisões e 7 indiciamentos — incluindo a de Jim Spurger, um dos autores intelectuais do massacre. Apesar disso, ninguém jamais foi punido. A maioria dos suspeitos foram libertados em alguns dias. Apenas dois casos foram levados a julgamento, mas os réus foram liberados com o pagamento de fiança.
A comunidade negra pressionou pela abertura de uma investigação federal, mas foi ignorada. Diversos apelos foram enviados ao procurador-geral dos Estados Unidos, George W. Wickersham — todos em vão. Um grupo de reverendos encaminhou uma carta pedindo a intervenção do presidente William Howard Taft. O mandatário repassou o pedido a Wickersham, mas o procurador afirmou que não poderia fazer nada, pois, em sua avaliação “nenhum direito constitucional havia sido violado”.
O Massacre de Slocum logo caiu no esquecimento e todas as tentativas da comunidade negra de preservar a memória da chacina foram boicotadas. O massacre não é abordado nos livros didáticos ou nas aulas de história do Texas. Não é referenciado sequer nos manuais da Associação Histórica do Estado. E a Comissão Histórica do Condado de Anderson mantém até hoje a alegação de que o massacre “nunca existiu”.
A longa luta contra o apagamento da matança começou a render frutos nos últimos anos. Em 2011, a 82ª Legislatura do Texas reconheceu a veracidade do massacre — embora não tenha autorizado a criação de uma investigação formal. Uma importante contribuição para a difusão do conhecimento sobre a chacina ocorreu em 2014, quando o historiador E.R. Bills lançou o livro “The 1910 Slocum Massacre: An Act of Genocide in East Texas”, baseado em uma longa pesquisa documental e no registro da tradição oral. Em 2015, a Comissão Histórica do Texas autorizou a instalação do primeiro marcador histórico do Massacre de Slocum.