20 anos do assassinato de Irmã Dorothy, mártir da Amazônia
Missionária norte-americana que se dedicou à defesa dos trabalhadores rurais e à preservação da floresta amazônica foi morta no Pará a mando dos fazendeiros
Há 20 anos, em 12 de fevereiro de 2005, a missionária norte-americana Dorothy Stang era assassinada no Pará. Irmã Dorothy, como era conhecida, dedicou sua vida à defesa dos trabalhadores rurais e à preservação da floresta amazônica. Ela foi uma das principais incentivadoras dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável e ajudou a organizar os camponeses na luta pela reforma agrária. Suas ações despertaram a fúria dos fazendeiros locais, que encomendaram sua morte.
Quem foi Dorothy Stang
Dorothy Mae Stang nasceu em Dayton, no estado de Ohio, em 7 de junho de 1931. Era a quarta dos nove filhos de Henry e Edna McCloskey Stang, uma família católica de ascendência germano-irlandesa. Seus pais eram profundamente religiosos e participavam regularmente das atividades de uma paróquia local.
Influenciada pelos pais, Dorothy se envolveu desde pequena com as tarefas da igreja. Ela auxiliava na coleta de fundos as famílias necessitadas e ajudava a organizar almoços para crianças órfãs. Na adolescência, tornou-se membra da Juventude Estudantil Cristã (JEC), passando a frequentar cursos e atividades de formação.
Aos 17 anos, Dorothy ingressou na comunidade religiosa das Irmãs de Nossa Senhora de Namur — congregação católica fundada em 1804 por Santa Júlia Billiart. A instituição reúne mais de duas mil mulheres e mantém atividades nos cinco continentes, tendo como foco principal o auxílio de ordem religiosa, educacional e social para pobres e excluídos.
Irmã Dorothy professou seus votos perpétuos em 1956. Ela passaria os anos seguintes lecionando nas escolas paroquiais no Arizona e em Illinois. Em 1966, a freira foi selecionada para ajudar nas tarefas da congregação no Brasil. Realizava assim o seu antigo sonho de servir como missionária.
Suas primeiras ações foram desenvolvidas em Coroatá, uma pequena cidade no Vale do Itapecuru, no interior do Maranhão. Lá, a freira auxiliou na construção de escolas e tocou campanhas de alfabetização.
Ao lado das irmãs Joan, Anne e Barbara, Dorothy ajudou a desenvolver uma rede de apoio social às comunidades camponesas — um trabalho que serviria de base para a futura criação da Sociedade Maranhense dos Direitos Humanos.
A missão no Brasil se tornaria permanente. Irmã Dorothy aprendeu português, se naturalizou brasileira e fincou raízes no país. Em 1975, Dorothy se junto à recém-fundada Comissão Pastoral da Terra e intensificou suas ações junto aos trabalhadores do campo. Ela atuou em diversos estados do Norte e Nordeste, tocando projetos no Ceará, Paraíba, Piauí, Tocantins e Amazonas.
A disputa por terras no Médio Xingu
Em 1982, Dorothy se mudou para Anapu, um município na região do Médio Xingu, no Pará. O local era marcado por violentas disputas pela posse da terra desde o início dos anos 70, quando a ditadura militar passou a incentivar a imigração para a região.
Sob o mote ufanista “integrar para não entregar”, os militares desenvolveram uma série de políticas voltadas à ocupação e exploração econômica da floresta amazônica, incluindo a abertura de estradas e a concessão de subsídios para a expansão da fronteira agrícola.
Na região de Anapu, como um chamariz para os imigrantes, o governo brasileiro prometeu a concessão de lotes lindeiros à Rodovia Transamazônica, então sob construção. A promessa fez com que muitas pessoas se mudassem para o Médio Xingu — sobretudo famílias de trabalhadores sem-terra oriundas do Nordeste.
A promessa, entretanto, era ilusória. O regime militar privilegiou a concessão de terras para os grandes fazendeiros, pecuaristas e empresários do setor madeireiro. Eles foram agraciados com lotes de até 3.000 hectares, concedidos por meio dos Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATP). Os contratos determinavam que os fazendeiros deveriam desenvolver atividades produtivas em pelo menos metade da área concedida. Caso não o fizessem em um prazo de até cinco anos, as terras deveriam ser devolvidas.
Já para os colonos pobres, o governo reservou pequenos lotes margeando os dez quilômetros iniciais da Transamazônica — uma oferta insuficiente para atender a enorme quantidade de famílias que se mudaram para Anapu. Essa era precisamente a intenção dos militares ao estimularem a imigração: forçar os camponeses que não foram contemplados a servirem como mão de obra para os grandes latifundiários.
A maioria dos fazendeiros beneficiados pelos contratos de alienação não cumpriram a cláusula de produtividade. Alguns sequer chegaram a visitar as terras que receberam. Muitos lotes foram unificados, revendidos ilegalmente e registrados como propriedade particular. Outros foram abandonados pelos concessionários após a extração da madeira e dos recursos naturais.
Denunciando o descumprimento dos contratos e o mau uso da terra, os camponeses e pequenos agricultores passaram a reivindicar o direito a produzir nesses lotes.

Desde os anos 1970, a missionária Dorothy Stang intermediava conflitos pela terra na região amazônica
A atuação de Irmã Dorothy em Anapu
Foi junto a essa grande massa de trabalhadores rurais que Irmã Dorothy desenvolveu seu trabalho social. Ela ajudou a organizar politicamente a comunidade camponesa em Anapu e deu voz às reivindicações dos sem-terra, articulando o diálogo com as autoridades e movimentos sociais.
Ao mesmo tempo, a freira tratava das muitas demandas da comunidade. Ela foi responsável pela criação da primeira escola de formação de professores em todo o trajeto da Transamazônica e pressionou o poder público a ampliar a cobertura de serviços e da assistência social na região.
Dorothy denunciava o desmatamento ilegal, a grilagem e os ataques dos fazendeiros contra os camponeses. Ela chegou a depor em uma CPI no Senado para denunciar um esquema de corrupção bilionário alimentado pelo desvio de verbas da SUDAM — o que irritou profundamente os latifundiários.
Dorothy criou projetos para a geração de renda dos trabalhadores rurais e mobilizou a comunidade para atuar em ações de reflorestamento de áreas degradadas. A mais importante contribuição da freira para a luta dos camponeses, entretanto, foi sua mobilização em prol da reforma agrária.
Em 1997, a Comissão Pastoral da Terra e um grupo de trabalhadores rurais liderados por Dorothy propuseram ao INCRA a adoção de um modelo inovador de assentamentos — o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS).
O modelo proposto por Dorothy combinava reforma agrária e conservação ambiental. Ele previa que as terras devolutas fossem divididas em lotes de 20 hectares, que seriam destinados ao uso coletivo dos camponeses. Ao invés de receber títulos individuais, os assentados assinariam contratos de concessão de direito de uso. Os empreendimentos se dedicariam à agricultura sustentável e às atividades extrativistas, praticando o manejo florestal e preservando a maior parte da cobertura vegetal nativa.
Após intensa pressão de Dorothy, dos sem-terra e dos movimentos sociais, a proposta foi encampada pelo INCRA. Em 2002, o governo federal autorizou a criação dos dois primeiros PDS: o Projeto Esperança, em terras desmembradas da Gleba Belo Monte, e o Projeto Vila Jatobá, instalado na Gleba Bacajá. Os assentamentos foram oficializados em 2003, no primeiro ano do governo Lula.
O trabalho desenvolvido por irmã Dorothy em Anapu inspirou iniciativas similares em todo o país. Ela recebeu o título de cidadã honorária do estado do Pará foi laureada pela Ordem dos Advogados do Brasil por sua atuação em prol dos direitos humanos.
O assassinato de Irmã Dorothy
Os fazendeiros, por outro lado, estavam furiosos. Irmã Dorothy já havia se tornado um problema desde que começara a denunciar crimes ambientais e esquemas de corrupção para as autoridades públicas e a imprensa. A criação dos PDS — garantindo aos camponeses o uso de áreas reivindicadas pelos fazendeiros — foi a gota d’água.
Os fazendeiros reagiram violentamente, enviando jagunços e capangas para ameaçar, perseguir e atacar os assentados. Muitos camponeses tiveram suas casas incendiadas e foram forçados a deixar as terras. Irmã Dorothy passou a receber ameaças de morte e teve de enfrentar uma incisiva campanha difamatória. Ela foi alvo de assédio jurídico, sofrendo falsas acusações de fornecimento de armas e incentivo a invasão de propriedade. Em 2003, a freira foi considerada “persona non grata” pela Câmara de Vereadores de Anapu.
Apear da intimidação, a religiosa deu continuidade ao seu trabalho e seguiu denunciando os crimes cometidos contra os camponeses. “Não vou fugir nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade”, afirmou.
Em 12 de fevereiro de 2005, a voz de Dorothy foi calada pela força das armas. Durante o trajeto para uma reunião com os assentados, a freira sofreu uma emboscada. Dorothy foi assassinada com seis tiros à queima-roupa, disparados por Clodoaldo Carlos Batista e Rayfran das Neves Sales.
O assassinato de Irmã Dorothy comoveu o país e teve enorme repercussão internacional, mobilizando até mesmo o FBI. Houve uma enorme pressão internacional pela resolução do crime e o presidente Lula afirmou que “só descansaria” quando os assassinos fossem responsabilizados.
Os suspeitos foram presos em poucos dias. Além de Clodoalvo e Rayfran, a polícia identificou a participação de Amair Feijoli da Cunha (dito “Tato”). As investigações apontaram que mandantes do crime foram os latifundiários Vitalmiro Bastos de Moura (“Bida”) e Regivaldo Pereira Galvão (“Taradão”). Todos os cinco acusados foram condenados na justiça. Destes, três já estão cumprindo pena em regime semiaberto. Rayfran e Regivaldo seguem detidos.
Irmã Dorothy foi inclusa no calendário dos santos da Igreja Episcopal Anglicana com o título de “Mártir da Caridade na Amazônia”. Sua vida foi retratada no documentário “Mataram Irmã Dorothy”, lançado pelo cineasta norte-americano Daniel Junge em 2008. A religiosa também foi homenageada pela ópera “Anjo da Amazônia”, composta por Evan Mack.
