Há 233 anos, em 22 de agosto de 1791, negros escravizados e libertos iniciavam uma grande rebelião contra o domínio colonial francês em São Domingos, dando início à Revolução Haitiana. A insurreição desembocou na independência do Haiti — primeira nação do Caribe a conquistar sua autonomia política e primeiro país das Américas a abolir a escravidão.
A colonização do atual território do Haiti teve início em 1492, quando os espanhóis reivindicaram a posse da Ilha de São Domingos. Em 1697, com a assinatura do Tratado de Rijswijk, a Espanha cedeu para a França o domínio sobre a porção ocidental da ilha. Após exterminarem quase toda a população nativa de indígenas aruaques e caraíbas, os europeus começaram a levar africanos para serem usados como mão de obra escrava nas plantações. A principal atividade econômica da colônia era a produção de açúcar, então uma das mercadorias mais valorizadas no mercado internacional.
O Haiti logo se tornou a mais rentável das possessões coloniais francesas, chegando a produzir 45% de todo o açúcar consumido no mundo — fato que lhe rendeu a alcunha de “Pérola das Antilhas”. Não obstante, os frutos dessa abundância beneficiavam apenas a metrópole europeia e a minúscula elite de colonizadores brancos.
Os africanos escravizados, que compunham mais de 80% da população do Haiti, eram submetidos a um tratamento perverso e uma exploração brutal, resultando em uma das maiores taxas de letalidade do continente. Entre escravagistas e escravizados, encontrava-se a chamada “elite crioula” — uma classe de negros e mestiços livres que prestavam serviços aos colonizadores ou que haviam prosperado através do comércio.
A luta dos negros contra o sistema escravagista desembocou em uma série de revoltas ao longo do século 18, todas violentamente reprimidas pelos europeus. Fugindo da opressão nas fazendas, os negros fundaram as chamadas “aldeias maroons”, ou palenques, refúgios equivalentes aos quilombos do Brasil. Esses agrupamentos se tornaram importantes focos de articulação da resistência e engendraram a ascensão de revolucionários como François Mackandal, guerreiro maroon que liderou uma grande sublevação de escravizados e que foi queimado vivo pelos franceses em 1758.
A eclosão da Revolução Francesa em 1789 inflamou ainda mais a luta antiescravagista no Haiti. Quando os habitantes locais tomaram conhecimento da aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão — que traz em seu primeiro artigo a proposição de que “os homens são livres e iguais em direitos” — mestiços livres afirmaram que a colônia deveria adotar os mesmos princípios iluministas reivindicados pela metrópole.
A sugestão foi prontamente negada e, em muitos casos, desestimulada com o uso da violência. “Não trouxemos meio milhão de escravos da costa da África para transformá-los em cidadãos franceses”, declarou peremptoriamente o presidente da Assembleia colonial.
A virulência dos colonizadores não bastou para intimidar os haitianos. Justificando estar respaldado pela Declaração dos Direitos Humanos, Vincent Ogé, um mestiço livre, formou uma milícia com centenas de negros libertos e tentou iniciar uma revolta em Cap-Français. Ogé foi capturado, torturado e brutalmente assassinado pelos colonizadores em fevereiro de 1791, mas a semente da insurreição já começara a germinar. Em 14 de agosto do mesmo ano, o sacerdote vodu Dutty Boukman convocou os cativos das plantações para uma grande cerimônia em Bois Caïman e profetizou o início de um grande levante dos escravizados. Inflamados pela pregação, os haitianos começaram a se preparar para a sublevação.
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Em 22 de agosto de 1791, sob a liderança de Jeannot Bullet, Jean-François Papillon e Georges Biassou, negros escravizados e libertos iniciaram uma gigantesca rebelião, incendiando as fazendas, destruindo os engenhos, expulsando os colonizadores e tomando os equipamentos e edifícios da administração colonial. Era a maior revolta de escravizados que o mundo já vira. Tão massiva foi a adesão que os rebeldes em pouco tempo conseguiram assumir o controle das províncias ao norte do Haiti.
Em 1792, um terço da colônia já estava sob domínio dos revolucionários, surpreendendo a metrópole. Os franceses elaboraram então uma estratégia para tentar conter e dividir o movimento. A Assembleia francesa propôs que as liberdades e direitos civis assegurados aos cidadãos franceses fossem estendidos para os negros e mestiços livres da colônia — excluindo os escravizados. Os revolucionários recusaram a proposta.
A rebelião na ilha atraiu cobiça das demais potências europeias, que viram a disputa como uma oportunidade de se apoderarem das terras férteis e dos recursos naturais do Haiti. Inglaterra e Espanha despacharam tropas na esperança de dominar a ilha. Os rebeldes sabiam que continuariam sendo escravizados com a eventual troca do poder colonial.
Toussaint Louverture, filho de escravizados que ascendera à condição de líder do Exército revolucionário, procurou então as autoridades francesas para propor um acordo. Prometeu que ajudaria a expulsar as tropas britânicas e espanholas, contanto que os franceses se comprometessem a abolir a escravidão no Haiti. O líder jacobino Léger-Félicité Sonthonax concordou com a condição.
As tropas de Louverture conseguiram expulsar os ingleses e espanhóis, e Sonthonax manteve sua palavra. Assim, em 1794, o Haiti se tornou o primeiro território das Américas a abolir a escravidão. Louverture também lideraria outra expedição rumo aos domínios espanhóis na Ilha de São Domingos, libertando os negros escravizados no território da atual República Dominicana. O acordo com os franceses, todavia, seria anulado durante o período do diretório, assim como várias das reformas feitas pelos jacobinos.
Em 1799, Napoleão Bonaparte ascendeu ao poder na França com um golpe de Estado e reverteu a abolição da escravatura, além de ordenar a prisão de Toussaint Louverture.
Os haitianos se recusaram a retornar ao status de escravizados e se prepararam para lutar pela própria liberdade. Jean-Jacques Dessalines, Alexandre Pétion e Henri Christophe comandaram as forças rebeldes. Os revolucionários organizaram uma heroica e aguerrida resistência e conseguiram expulsar os colonizadores da ilha. As tropas francesas foram definitivamente derrotadas na Batalha de Vertières, em novembro de 1803.
Em 1º de janeiro de 1804, Dessalines declarou a independência do Haiti. O país se tornou o primeiro Estado independente do Caribe e de toda a América Latina. Também foi o primeiro país a abolir a escravidão nas Américas, a primeira república negra do mundo e o único país da história a se tornar independente como resultado de uma rebelião de escravizados.
A Revolução Haitiana teve um impacto profundo na história mundial, questionando os fundamentos da escravidão e desafiando as estruturas do sistema colonial nas Américas. A insurreição influenciou movimentos pela liberdade em toda a região, inspirando outros levantes de escravizados, incluindo a Revolta dos Malês no Brasil. Os haitianos, entretanto, pagaram um preço alto por se rebelarem em busca de liberdade — ainda mais elevado do que as centenas de milhões de francos repassados à França ao longo de 80 anos, a título de “indenização”.
A nação de negros livres causava espanto e medo em um continente dominado pela escravidão. O país foi submetido ao isolamento diplomático e sofreu um intenso boicote econômico das nações europeias e americanas, todas dependentes do trabalho escravo.
Receoso da influência subversiva que o Haiti poderia exercer sobre os escravizados em seu país, o presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, recusou-se a reconhecer a independência haitiana. O Congresso dos Estados Unidos também proibiu o comércio com a ilha e determinou a criação de um embargo econômico contra o Haiti que durou quase um século.
Ao término do embargo, o Haiti ainda sofreria uma prolongada ocupação militar comandada pelo Exército norte-americano. Essas sucessivas intervenções insuflaram a instabilidade política e agravaram os problemas socioeconômicos do país, levando o Haiti a se tornar uma das nações mais pobres das Américas.