Há 31 anos, em 29 de agosto de 1993, um grupo de extermínio composto por policiais militares invadiu a favela de Vigário Geral, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e assassinou 21 moradores da comunidade. A chacina foi uma punição coletiva pelo assassinato de quatro policiais militares por traficantes da região.
As vítimas, no entanto, eram trabalhadores, donas de casa e estudantes, sem quaisquer ligações com o crime organizado. Nenhum dos mortos tinha antecedentes criminais. 52 pessoas foram denunciadas pelo massacre, mas somente 4 foram condenadas.
A década de 1990 foi marcada pela intensificação das chacinas policiais no Rio de Janeiro. Paradoxalmente, esse fato ocorreu em paralelo com a consolidação do processo de redemocratização, já sob a vigência da Constituição Federal de 1988. Houve quem acreditasse que a refundação do Estado brasileiro sob os princípios da “Constituição Cidadã” atenuaria os vícios legados do autoritarismo e da violência institucional da ditadura militar — e que as forças de segurança, forjadas como instrumentos repressivos a serviço dos interesses das classes dominantes, finalmente poderiam ser subordinadas ao controle civil e democrático.
A sequência de massacres já no início dos anos 90 — Acari em 1990, Carandiru em 1992, Candelária em 1993, etc. — tratou de desfazer quaisquer ilusões sobre o “novo Brasil”. O “Estado democrático de direito” e a “Constituição Cidadã” estavam limitados aos bairros nobres e às áreas de classe média. Nas periferias e favelas, a repressão, a violação dos direitos humanos e os abusos policiais seguiriam sendo a regra.
A repressão ao tráfico de drogas serviria como carta branca para a violência policial, ao mesmo tempo em que o discurso de desumanização dos moradores das favelas — e a demonização generalizada das vítimas da violência policial como “bandidos” — buscava naturalizar a aceitação dos massacres pela sociedade.
No Rio de Janeiro, a situação era agravada por outros fatores. Havia uma disputa travada entre as forças policiais e o governo de Leonel Brizola. Quando assumiu o governo fluminense, Brizola instituiu uma série de medidas que visavam reforçar o controle político sobre as forças policiais do estado.
O governador limitou as operações policiais nas favelas, puniu agentes corruptos e criou uma comissão para investigar a atuação de policiais em grupos de extermínio. As forças de segurança reagiram intensificando a truculência e as incursões na periferia, usando a violência policial como instrumento de pressão política e desestabilização do governo.
Além do contexto político, o Rio de Janeiro assistia à disputa entre forças policiais, grupos paramilitares e facções criminosas pelo controle das periferias. A favela de Vigário Geral era um dos territórios disputados. A comunidade era dominada pelo Comando Vermelho, mas também era submetida às extorsões e chantagens praticadas por um grupo de extermínio apelidado de “Cavalos Corredores”, composto por policiais militares e civis.
Membros dos “Cavalos Corredores” teriam sido responsáveis por sequestrar e assassinar o irmão de Flavio Negão, um dos chefes do tráfico em Vigário Geral. Como vingança, os traficantes armaram uma emboscada, levada a cabo em 28 de agosto de 1993.
Um grupo de policiais se dirigiu até a Praça Catolé da Rocha, após receber um telefonema anônimo. Quando chegaram ao local, os agentes foram executados a tiros. Quatro policiais morreram na ação: o sargento Ailton Ferreira dos Santos (acusado de ser o líder dos “Cavalos Corredores”) e os soldados José Santana, Luís Mendonça e Irapuan Caetano.
A retaliação viria no dia seguinte — e seria covardemente direcionada contra os moradores inocentes na comunidade.
Por volta da meia-noite do dia 29 de agosto, um grupo de aproximadamente 40 homens encapuzados, divididos em três equipes, invadiram a favela de Vigário Geral, com armas em punho. A grande maioria eram policiais militares do 9º Batalhão, muitos dos quais ligados aos “Cavalos Corredores”.
Ao chegarem na Praça Córsega, os policiais metralharam e incendiaram os trailers dos vendedores ambulantes. Executaram então as duas primeiras vítimas: o adolescente Fábio Pinheiro Lau, de 17 anos, e o metalúrgico Hélio de Souza Santos, de 38 anos.
Em seguida, os policiais se dirigiram ao Bar do Caroço, na Rua Antônio Mendes. O bar ainda estava cheio. As pessoas estavam celebrando a goleada do Brasil sobre a Bolívia nas eliminatórias da Copa do Mundo. Os policiais perguntaram se o público no bar eram trabalhadores. Eles disseram que sim — e alguns até exibiram a Carteira de Trabalho para comprovar.
De nada adiantou. Uma bomba de efeito moral foi jogada no interior do estabelecimento. Em seguida, os policiais abriram fogo, matando mais sete pessoas: o dono do bar, Joacir Medeiros (69 anos), o enfermeiro Guaracy Rodrigues (33 anos), o serralheiro José dos Santos (47 anos), o motorista Paulo Roberto Ferreira (44 anos), o ferroviário Adalberto Souza (40 anos), o metalúrgico Cláudio Feliciano (28 anos) e Paulo César Soares (35 anos).
Os policiais seguiram avançando pela comunidade, disparando aleatoriamente contra as casas e executando os moradores que encontravam pelo caminho. No trajeto, mataram mais três pessoas: o gráfico Cleber Alves (23 anos), Clodoaldo Pereira (21 anos) e Amarildo Baiense (31 anos). Encontraram ainda uma família que voltava para casa — o mecânico Edmilson Costa, de 23 anos, sua esposa, Rose Maria, de 25 anos, e as duas filhas pequenas do casal. Os agentes mandaram a mulher correr com as meninas. Logo depois, Edmilson foi executado.
Por fim, os policiais invadiram uma casa nos arredores do Bar do Caroço, e assassinaram toda a família de evangélicos. Oito pessoas foram mortas: o vigilante Gilberto Cardoso dos Santos (61 anos), sua esposa, Jane dos Santos (58 anos), a nora do casal, Rúbia (18 anos), e os filhos do casal, Lúcia dos Santos (33 anos), Lucinete dos Santos (27 anos), Luciano dos Santos (24 anos), Lucinéia dos Santos (23 anos) e a vítima mais jovem, Luciene dos Santos, uma menina de 15 anos, estuprada pelos policiais antes de ser executada.
Ao todo, 21 pessoas foram assassinadas na Chacina de Vigário Geral. Nenhuma das vítimas tinha passagem pela polícia ou ligações com o narcotráfico. A matança revoltou a comunidade. Os moradores saíram às ruas para protestar contra a matança. Os acessos ao bairro foram fechados. Os familiares impediram que os bombeiros levassem os corpos antes de todas as vítimas serem identificadas.
Caio Ferraz, sociólogo e morador da comunidade, organizou os corpos lado a lado em uma praça, identificando as vítimas e suas profissões — um meio de mostrar à sociedade que os mortos não eram bandidos. O governador Leonel Brizola definiu o massacre como uma “inadmissível operação de vingança” e exonerou de imediato o comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar, César Pinto. Outros 13 policiais seriam expulsos da corporação nas semanas seguintes.
Como costuma ocorrer com as chacinas policiais no Brasil, o massacre de Vigário Geral foi marcado pela impunidade. O Ministério Público denunciou 52 pessoas por participação da chacina, sendo 47 policiais militares, 3 policiais civis e 2 informantes. Somente quatro foram condenados: José Fernandes Neto, Paulo Roberto Alvarenga, Sirley Alves Teixeira e Alexandre Bicego Farinha. Nenhum está preso.
José Fernandes e Paulo Roberto obtiveram liberdade condicional em 2006 e 2013, respectivamente. Alexandre foi assassinado em 2007, enquanto aguardava julgamento de recurso em liberdade. Sirlei estava no regime semiaberto desde 2017 e foi assassinado em 2021.
Outros três policiais chegaram a ser condenados em primeira instância, mas foram absolvidos nos julgamentos seguintes: Arlindo Maginário Filho, Roberto César do Amaral e Adilson Saraiva da Hora. O PM Leandro Marques da Costa, vulgo “Bebezão”, foi indiciado nos processos, mas permaneceu foragido por 20 anos, até que os crimes prescrevessem.
A Chacina de Vigário Geral foi a maior matança promovida pela polícia carioca nas favelas da cidade até então. As imagens dos corpos dos trabalhadores enfileirados rodaram o mundo e geraram consternação. O massacre foi denunciado pela Organização dos Estados Americanos (OEA), que criticou a conivência do Estado brasileiro com as violações de direitos humanos perpetrados por seus próprios agentes. A Anistia Internacional e outras organizações da sociedade civil criticaram a impunidade e o fato da justiça ter negado o provimento de ações de indenização promovidas por familiares das vítimas.
Longe de constranger as autoridades, o derramamento de sangue visto em Vigário Geral tem se tornado rotina dede os anos 90. Conforme relatório divulgado pela plataforma digital Fogo Cruzado, a Região Metropolitana do Rio de Janeiro registra em média uma chacina por semana. Somente nos últimos cinco anos, mais de mil pessoas foram mortas em chacinas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. De cada quatro chacinas, três são derivadas de operações conduzidas pelas forças policiais do estado.