Há 36 anos, em 27 de fevereiro de 1989, tinha início o Caracaço — onda de manifestações e revoltas populares que se espalhou pela Venezuela, em protesto contra as medidas neoliberais de Carlos Andrés Perez. O Caracaço pavimentou o caminho para a radicalização da esquerda e serviu de prenúncio à Revolução Bolivariana.
A Década Perdida
Na América Latina, anos 80 ganharam o epíteto de “década perdida”, em referência à prolongada crise econômica que castigou os países da região. Após o boom do petróleo nos anos 70, as nações latino-americanas assistiram a uma maciça fuga de capitais, o que forçou a desvalorização das moedas e levou ao aumento das taxas de juros.
A Venezuela, maior produtora de petróleo da região, foi gravemente afetada por essa conjuntura. A queda abrupta do preço do barril do petróleo nos mercados internacionais causou um enorme desequilíbrio fiscal na economia do país — inteiramente dependente da exportação dessa commodity.
As reservas cambiais secaram, a dívida externa explodiu e a inflação disparou. O país registrou um aumento sem precedentes na taxa de desemprego e amargou um longo período de estagnação econômica, gerando o agravamento da pobreza e da desigualdade social.
O governo de Luis Herrera Campíns tentou contornar a crise aplicando um novo regime de controle cambial e impondo restrições à saída de capital. Ele foi responsável por criar o RECADI — o Regime de Câmbio Diferenciado, que trabalhava com três taxas de câmbio distintas. As medidas, entretanto, surtiram pouco efeito.
A crise se agravou ainda mais durante o governo de Jaime Lusinchi, o sucessor de Campíns. Buscando projetar artificialmente um cenário de estabilidade econômica, Lusinchi determinou o congelamento dos preços e dos salários — o que apenas contribuiu para fortalecer os mercados paralelos e ampliar a tensão social.
Ao término dos anos 80, a situação da Venezuela era bastante delicada. Cerca 85% dos venezuelanos estavam vivendo abaixo da linha da pobreza, enquanto menos de 3,5% da população integrava as classes A e B.
Carlos Andrés Pérez e o FMI
As propostas para debelar crise econômica se tornaram o ponto central dos debates durante a eleição presidencial venezuelana de 1988. E Carlos Andrés Pérez, o candidato da Ação Democrática, foi quem melhor soube projetar a imagem de salvador, prometendo ações enérgicas para superar a crise econômica e retomar o crescimento.
A candidatura de Pérez foi impulsionada pela memória positiva sobre a sua gestão nos anos 70. Ele já havia governado a Venezuela durante o boom do petróleo, em uma época de grande prosperidade e recursos abundantes. Sua estratégia consistia em prometer um retorno aos “anos dourados”, ao mesmo tempo em que rechaçava veementemente as medidas de ajuste fiscal e austeridade recomendadas pelo FMI.
A estratégia deu certo: Pérez foi eleito com 52,9% dos votos. Apenas duas semanas após assumir a presidência, entretanto, ele surpreendeu seu eleitorado fazendo exatamente o que garantiu que não iria fazer: ajoelhar-se ao FMI.
No dia 16 de fevereiro de 1989, Pérez apresentou seu pacote econômico para combater a crise — chamado “El Gran Viraje”, ou “A Grande Virada”. O programa consistia na aplicação do receituário neoliberal do FMI e das recomendações dos economistas da “Escola de Chicago”. Em troca, o FMI se comprometia a liberar um empréstimo de US$ 4,5 bilhões para o país.
As medidas incluíam a liberalização da taxa de juros, a desvalorização da moeda venezuelana, o aumento de tarifas e a redução dos investimentos e gastos públicos — com um corte expressivo sobre os programas sociais e o fim dos subsídios dados aos alimentos. O pacote também previa a privatização de empresas estatais, medidas de desregulação do setor financeiro e a redução das taxas alfandegárias.
O pacote econômico indignou a população, que se sentiu traída pelo presidente. Além disso, as medidas impostas pelo FMI apenas contribuiriam para acelerar a perda do poder de compra dos trabalhadores e ampliar a pobreza e a concentração de renda.

Populares revoltados no Terminal de Ônibus de Guarena, durante o Caracaço
A ação de maior impacto imediato no bolso dos trabalhadores, entretanto, foi o fim do subsídio da gasolina. Em um único fim de semana, os preços do combustível subiram mais de 100%, gerando reajuste nas tarifas do transporte público (que subiram 30% em um único dia) e aumentos em cascata em diversos setores da economia.
A insurreição
Para a população, o reajuste das tarifas foi a gota d’água. Na manhã do dia 27 de fevereiro de 1989, uma manifestação espontânea eclodiu em Guarenas — uma cidade-dormitório nos arredores de Caracas. Estudantes e trabalhadores foram às ruas protestar contra o aumento das passagens de ônibus e das tarifas dos serviços básicos.
Manifestações semelhantes logo começaram a surgir nos bairros operários, subúrbios e favelas de Caracas. Quando a imprensa começou a noticiar os atos, os protestos rapidamente se espalharam por todo o país.
O que havia se iniciado como um protesto contra o aumento das passagens logo se converteu em uma revolta popular contra o governo neoliberal de Carlos Andrés Pérez, mobilizando multidões em cidades como Mérida, San Cristóbal, Maracay e Barquisimeto.
Na capital venezuelana, a população se deslocou em massa das favelas e bairros periféricos para a região central. Revoltados, os populares saquearam lojas, armazéns e supermercados, levando alimentos e produtos que haviam se tornado escassos ou inacessíveis para a classe trabalhadora.
Os manifestantes montaram barricadas nas ruas e picharam os muros de Caracas com frases como “o povo tem fome”. Ônibus, automóveis, lojas de luxo e prédios do governo foram depredados, invadidos e incendiados. Os atos despertaram até mesmo a simpatia de alguns agentes da Polícia Metropolitana de Caracas. Sofrendo com salários atrasados, alguns policiais fizeram vista grossa para os saques.
Em reação à rebelião popular, o governo venezuelano decretou estado de emergência e toque de recolher. A população, entretanto, seguiu protestando nas ruas.
O massacre
No dia 28 de fevereiro, durante um comunicado em rede nacional, o presidente Carlos Andrés Pérez anunciou a imposição da lei marcial e a suspensão de uma série de garantias constitucionais e direitos civis. Também informou que mobilizaria as Forças Armadas para garantir o “restabelecimento da ordem”.
O governo venezuelano enviou tropas do Exército e da Guarda Nacional para esmagar os protestos. Os soldados foram autorizados a utilizar armas de guerra para conter os manifestantes.
A repressão resultou em um verdadeiro massacre, com inúmeros registros de execuções sumárias, torturas e desaparecimentos. Os soldados ocuparam militarmente os subúrbios de Caracas e passaram a invadir as casas dos populares, em busca de suspeitos e de mercadorias saqueadas.
O governo de Carlos Andrés Pérez divulgou que as ações do exército resultaram em 276 mortes e deixarem milhares de feridos. A cifra é subdimensionada. Organizações independentes estimam que entre 2.000 e 3.500 pessoas foram assassinadas durante a repressão ao Caracaço.
Algumas cidades venezuelanas sofreram com a escassez de caixões e registraram colapso de seus sistemas de atendimento médico, diante do grande número de feridos. A Anistia Internacional publicou um relatório denunciando as execuções extrajudiciais e o sepultamento de vítimas em valas comuns — tais como a que foi descoberta em La Peste. O massacre também foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Ignorando o enorme descontentamento popular com o pacote econômico imposto pelo FMI, o governo de Carlos Andrés Pérez manteve seu receituário econômico quase inalterado.
Apesar disso, o Caracaço se tornaria um ponto de inflexão na história da Venezuela. A indignação diante da repressão do governo venezuelano alimentou o descontentamento popular com o chamado “Pacto de Punto Fijo” — o arranjo institucional firmado entre os três principais partidos políticos da Venezuela, que se revezavam no poder desde meados do século 20.
O episódio marcou o início da derrocada política dos setores liberais e conservadores na Venezuela. Desiludida com o sistema político, a população venezuelana daria apoio às duas tentativas de golpe que ocorreram contra o governo Pérez em 1992 — bem como ao processo de impeachment que derrubaria o mandatário no ano seguinte.
Essa conjuntura criaria uma atmosfera de radicalização política que fortaleceria a ação dos movimentos populares e pavimentaria o caminho para a ascensão da esquerda revolucionária — em especial, o Movimento Bolivariano e seu principal líder, Hugo Chávez.