Há 51 anos, em 20 de junho de 1973, militantes da direita peronista abriam fogo contra os peronistas de esquerda nos arredores do Aeroporto de Ezeiza, subúrbio de Buenos Aires. O Massacre de Ezeiza deixou ao menos 13 mortos e 365 feridos e marcou a derradeira cisão entre o governo de Juan Domingo Perón e os setores progressistas.
Juan Domingo Perón ascendeu politicamente após sua participação na “Revolução de 43”, movimento político que encerrou a ditadura de cariz fascista da Década Infame. Apoiado pela classe trabalhadora em função da abrangente legislação de direitos trabalhistas que implementara durante sua gestão no Ministério da Guerra e do Trabalho, Perón foi eleito presidente da Argentina em 1946.
Seu governo foi marcado pela aplicação da doutrina do justicialismo (politicamente representada pelo Partido Justicialista), aliando projetos de reformas e justiça social ao dirigismo econômico, assentado sobre alianças com os setores da burguesia nacionalista — plataforma que o próprio Perón classificou como uma “terceira via” entre o capitalismo e o socialismo. Além das medidas de proteção aos operários, sua gestão se destacou pelo trabalho social desenvolvido por sua esposa, a primeira-dama Evita Perón, granjeando-lhe enorme popularidade entre os chamados “descamisados” — as classes baixas e os trabalhadores precarizados.
A partir da reeleição em 1951, Perón moderou significativamente seu discurso reformista e as pautas trabalhistas, passando a priorizar as alianças com a direita argentina. A inflexão não bastou para debelar o antiperonismo exaltado dos setores reacionários e de um grande contingente das Forças Armadas — uma oposição que se tornou progressivamente mais violenta após a morte precoce de Evita.
Em junho de 1955, após uma série de atentados contra sindicatos e organizações governistas, os militares argentinos chegaram a bombardear uma multidão de apoiadores de Perón reunidos na Plaza de Mayo, em Buenos Aires, matando centenas de pessoas. Alguns meses depois, um novo golpe militar — autointitulado “Revolução Libertadora” — obrigou Perón a renunciar.
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Os militares argentinos cassaram o registro do Partido Justicialista e implementaram medidas criminalizando o peronismo. Banido da Argentina, Perón permaneceu exilado na Espanha por 18 anos. Sua influência e respaldo popular, entretanto, seguiram incólumes. Mesmo proscrito, o peronismo permaneceu como a força política mais proeminente da Argentina. Era também o movimento de maior abrangência em termos de espectros ideológicos. O ex-presidente era apoiado por grupos que iam da esquerda à direita, englobando facções e tendências que divergiam em tudo — exceto no apoio a ele. Enquanto ainda estava na Argentina, Perón conseguiu conciliar os grupos conflitantes que formavam sua base de apoio. Na sua ausência, entretanto, polarização e as cisões internas tornaram-se cada vez mais evidentes.
O acirramento das tensões políticas e a crescente insatisfação popular haviam contribuído para o crescimento do peronismo. A luta pelo retorno do líder argentino havia se tornado uma das bandeiras com maior capacidade de mobilização popular. Grupos que não pertenciam às bases tradicionais do peronismo, incluindo os estudantes e a classe média intelectualizada, passaram a aderir ao movimento. Jovens ligados à esquerda radical iniciaram uma reinterpretação teórica do peronismo, buscando adaptá-lo ao pensamento marxista revolucionário e ao foquismo, seguindo uma tendência em voga desde o triunfo da Revolução Cubana. Como fruto desse processo, surgiram uma série de grupos guerrilheiros de peronistas de esquerda, tais como os Montoneros, as Forças Armadas Peronistas e Forças Armadas Revolucionárias.
Paralelamente ao surgimento da esquerda peronista radical, os setores da extrema direita também se mobilizaram para cooptar a insatisfação popular. Assim, várias organizações peronistas direitistas também surgiram nesse período — em muitos casos, em estreita colaboração com os órgãos de repressão do governo argentino e até mesmo com governos estrangeiros. É o caso da Aliança Anticomunista Argentina (Triplo A), que se identificava como defensora do “peronismo ortodoxo”. A Triplo A foi fundada por agentes da polícia federal argentina, contou com financiamento e apoio logístico da CIA e atuou ativamente na Operação Condor — a aliança política entre as ditaduras militares sul-americanas e o governo norte-americano, que visava suprimir a esquerda através de repressão, vigilância, tortura e assassinatos.
A crise política da Argentina se acentuou ainda mais durante o governo do general Alejandro Agustín Lanusse, marcado pela eclosão de protestos enormes por todo o país e pelas ações armadas conduzidas pelas guerrilhas, cada vez mais frequentes e audaciosas. Convencidos de que apenas um governo respaldado por Perón poderia conter a convulsão social, os militares autorizaram a realização de eleições.
Ainda no exílio, Perón não concorreu ao pleito de março de 1973, mas indicou Héctor Cámpora, destacado líder da esquerda peronista, como seu candidato. O apoio foi decisivo para a vitória esmagadora do indicado. Ele venceu em todas as províncias argentinas e obteve mais votos do que todos os seus adversários somados.
A expectativa de que a eleição Cámpora acalmasse os ânimos, no entanto, mostrou-se ilusória. A agitação social se aprofundou ainda mais, com a ocorrência generalizada de greves, ocupações de fábricas e de instalações do governo — incomodando a direita peronista, sobretudo o sindicalista José Ignacio Rucci, secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT). A decisão de Cámpora de conceder anistia aos presos políticos e guerrilheiros que haviam sido encarcerados pela ditadura causou enorme mal estar até mesmo entre seus aliados — incluindo o próprio Perón. Embora mantivesse publicamente um discurso de apoio às guerrilhas, afirmando que “a violência do governo justifica a violência do povo”, Perón considerava que a agitação social seria danosa para o seu governo e criticou severamente Cámpora por “favorecer provocadores” e permitir a “infiltração de marxistas”.
As contradições ideológicas existentes na base de apoio peronista eram cada vez mais inconciliáveis — e ao notar isso, Perón fez uma clara opção pela direita. O líder do Partido Justicialista endossou a ofensiva conduzida por José Ignacio Rucci contra a esquerda peronista nas organizações sindicais e instruiu Cámpora a isolar a ala esquerda na burocracia do governo. Perón também delegou a uma comissão formada por membros da direita peronista a responsabilidade por organizar a cerimônia de recepção que marcaria seu retorno do exílio.
Entre os organizadores do evento estava López Rega, um dos fundadores da organização de extrema direita Triplo A. O tenente-coronel Jorge Osinde, também ligado à direita, foi encarregado de garantir a segurança do evento.
O tão aguardado retorno de Perón à Argentina estava marcado para o dia 20 de junho de 1973 e prometia ser uma data histórica. A comissão de recepção escolheu a ponte El Trébol, localizada nos arredores do Aeroporto de Ezeiza, para montar um palco onde ocorreria a cerimônia de boas-vindas. Os edifícios lindeiros à ponte, de onde se tinha uma vista estratégica para a área reservada à multidão, foram escolhidos para sediar o aparato de segurança do evento. Osinde determinou que a segurança do comício não seria feita por policiais, mas sim por paramilitares do “peronismo ortodoxo”.
Enquanto a ala direita se encarregava de organizar o evento, a esquerda peronista cuidou da mobilização popular. Os militantes pretendiam demonstrar sua força política, de modo a convencer Perón a se alinhar às reivindicações e demandas populares. Um grande esforço de divulgação e convocação das bases foi feito nos dias que antecederam o retorno de Perón. O empenho foi recompensado: no dia 20 de junho, uma enorme multidão, estimada entre um e três milhões de pessoas, compareceu ao local reservado para o comício.
A princípio, o clima no evento era de euforia e de expectativa pela chegada de Perón, mas logo as tensões começaram a aflorar. Os organizadores tentaram impedir os militantes de esquerda de se aproximarem do palco, causando confusões e desentendimentos. Os paramilitares trazidos por Osinde ocuparam o palco e bloquearam os acessos, portando metralhadoras e fuzis. Quando os militantes dos Montoneros, da Juventude Peronista e de outras organizações da esquerda radical tentaram se aproximar, os homens de Osinde dispararam contra a multidão. Não se sabe o número exato de vítimas, mas a maioria das fontes registram que ao menos 13 pessoas morreram.
Desesperado, o público tentou fugir dos disparos, resultando em um tumulto que deixou centenas de feridos. Alguns militantes de esquerda armados tentaram reagir ao ataque e o comício logo virou cenário de uma batalha campal. Algumas pessoas que tentavam fugir do local foram capturadas pelos vigilantes de Osinde e levadas até o Hotel Ezeiza, onde foram interrogadas, espancadas e torturadas.
Informado sobre a chacina em Ezeiza, Perón ordenou à tripulação que mudasse a rota do voo. Seu avião aterrissou na base militar de Morón.
Diante das evidências claras de que os homens de Osinde foram responsáveis pela chacina, os militantes da esquerda esperavam que Perón condenasse a ala reacionária — mas ocorreu exatamente o oposto. Em uma declaração dada um dia após o massacre, Perón condenou as organizações de esquerda pela violência e alertou que se “os inimigos encapuzados e ocultos” continuassem “tentando se infiltrar nas classes populares”, haveria mais reações tempestuosas. O governo argentino não determinou a abertura de investigação sobre a matança e não houve qualquer punição aos assassinos.
Um mês após os ataques, Cámpora renunciou à Presidência. Nas eleições de setembro de 1973, Perón saiu vitorioso com 63% dos votos. Seu mandato seria melancólico, marcado pela cisão definitiva com a esquerda. A tentativa de aprovar um projeto de lei criminalizando a esquerda radical provocou indignação dos parlamentares e a renúncia de oito membros da cúpula do governo.
O derradeiro mandato de Perón também seria curto. Convalescendo de uma doença cardíaca, o mandatário faleceu já em julho do ano seguinte. Sua esposa, Isabelita Perón, eleita vice-presidente na mesma chapa, assumiu a chefia do governo, mas foi derrubada por um golpe militar já em 1976 — que contou com o respaldo de vários membros da direita peronista. Teve início assim a derradeira e mais sangrenta ditadura militar argentina, responsável por conduzir a chamada “Guerra Suja”, que matou 30 mil opositores e reverteu conquistas históricas dos tempos áureos do peronismo.