Há 53 anos, em 17 de setembro de 1971, o guerrilheiro Carlos Lamarca era assassinado pelos órgãos de repressão da ditadura. Capitão do Exército, Lamarca abandonou a carreira militar para se juntar à resistência revolucionária. Ele se tornaria uma das figuras centrais da luta armada, comandando a VPR, liderando a guerrilha no Vale do Ribeira e concebendo algumas das mais importantes operações de enfrentamento ao regime.
Carlos Lamarca nasceu em 23 de outubro de 1937 no Rio de Janeiro, filho do sapateiro Antonio Lamarca Neto e da dona de casa Gertrudes da Conceição. Ele teve uma infância humilde, crescendo no Morro de São Carlos, no bairro do Estácio, junto com seus cinco irmãos — Walter, Wanda, Norma, Ivan e Célia. Cursou o ensino básico na Escola Canadá e concluiu o ginásio no Instituto Arcoverde, um colégio de padres. Foi atraído pelo debate político desde muito cedo. Ainda adolescente, Lamarca se engajava nas manifestações convocadas pela campanha “O Petróleo é Nosso”.
Em 1955, aos 18 anos, Lamarca ingressou na Escola Preparatória de Cadetes de Porto Alegre. Dois anos depois, seguiu para o curso de formação de oficiais na Academia Militar de Agulhas Negras, em Resende. Teve seu primeiro contato com as ideias marxistas durante sua formação militar, quando um militante comunista distribuiu de forma anônima panfletos do PCB para os cadetes.
Lamarca se graduou em 1960 e assumiu seu primeiro posto no 4º Regimento de Infantaria de Quitaúna, em Osasco, na Grande São Paulo. Ele obteria destaque como melhor atirador de seu regimento, sendo enviado para representar o II Exército em competições de tiro. Também data desse período o casamento de Lamarca com Maria Pavan, sua amiga de infância e futura mãe de seus dois filhos, Cláudia e César.
Lamarca foi um dos 6.000 soldados brasileiros que serviram no Batalhão de Suez — o contingente brasileiro que integrou as Forças de Paz da ONU durante o conflito entre Israel e as nações árabes. Ele ocupou o posto de segundo-tenente das tropas da ONU, permanecendo por 18 meses na Faixa de Gaza. Durante esse período, Lamarca conviveu com militantes dos movimentos independentistas e testemunhou a opressão e as péssimas condições de vida a que os refugiados palestinos estavam submetidos. A experiência o estimulou a aprofundar seus estudos sobre o marxismo, o socialismo e as ideias revolucionárias.
Após retornar ao Brasil, Lamarca foi alocado na 6ª Companhia da Polícia do Exército em Porto Alegre. Ele ainda estava na capital gaúcha quando João Goulart foi deposto no golpe militar de 1964. Discreto opositor da quartelada, Lamarca ajudaria um militar legalista preso pela ditadura a fugir. O homem era Alfredo Ribeiro Daudt, capitão da Aeronáutica e brizolista convicto. Lamarca não chegou a ser formalmente responsabilizado pela fuga, mas passou a ser hostilizado pelos seus colegas. Requisitou então sua transferência, retornando para o quartel de Quitaúna, em Osasco.
No quartel, Lamarca reencontrou seu amigo Darcy Rodrigues — um sargento legalista, que havia sido preso por protestar contra o golpe de 1964. Rodrigues conseguiu ser reintegrado ao exército por ordem judicial e iniciou um trabalho de cooptação dentro do 4º Regimento, agregando cabos e soldados críticos da ditadura militar e alinhados às ideias da esquerda. Lamarca se somou ao grupo e se aprofundou no estudo das teorias revolucionárias, lendo textos de Lenin, Mao Zedong e Che Guevara. Ele também ajudou a arregimentar novos membros e incentivou que o grupo avançasse rumo à realização de ações concretas.
Darcy Rodrigues foi o responsável por intermediar os contatos entre o capitão e as organizações ativas na luta armada contra a ditadura militar. Em 1968, Lamarca ingressou na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), então sob a liderança de Onofre Pinto. Fundada no ano anterior por egressos do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e por dissidentes da Política Operária (Polop), a VPR já se firmara como uma das mais combativas organizações da resistência. Seus militantes haviam realizado operações ousadas, como o assalto ao Hospital Militar do Cambuci e o ataque ao Quartel General do II Exército.
Ainda em 1968, Lamarca se reuniu com Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN). Marighella seria responsável por negociar asilo para a família de Lamarca em Cuba, a fim de evitar retaliações ao capitão — que já havia se decidido pela deserção.
Após a promulgação do AI-5, Lamarca intensificou sua atuação política junto à VPR. Influenciada pela teoria do foquismo, a organização pretendia iniciar uma guerrilha rural na Amazônia. Lamarca ajudou então a elaborar um plano para obter o armamento necessário: ele desertaria, junto com outros companheiros de farda, subtraindo mais de 500 fuzis, dois obuses e a munição armazenada no 4º Regimento. Para transportar o material, os militares rebeldes usariam um caminhão Chevrolet Brasil 1959, pintado com as cores e os padrões do exército, que teria sua entrada autorizada por partícipes da conspiração.
O plano foi frustrado após os militares, alertados por civis, encontrarem o caminhão pintado. Quatro integrantes da VPR foram presos na ocasião. Cientes do risco de delação, Lamarca, Darcy Rodrigues e outros dois militares — Carlos Roberto Zanirato e José Mariane — fugiram do 4º Regimento em uma Kombi carregada com 63 fuzis FAL, três metralhadoras e munições.
Sem ter onde esconder os fuzis subtraídos do quartel, Lamarca pediu a ajuda de Marighella, que se ofereceu para guardar as armas. Posteriormente, quando o ex-capitão solicitou a devolução dos fuzis, Marighella se negou a fazê-lo, afirmando que o arsenal “pertencia à revolução”. Joaquim Câmara Ferreira conseguiria negociar um meio-termo, devolvendo metade do armamento, mas o episódio estremeceria as relações entre Lamarca e Marighella.
Procurado pelo regime e com seu rosto estampado em cartazes policiais, Lamarca teve de se submeter a uma cirurgia plástica. Passou a viver clandestinamente, alternando estadias nos aparelhos da VPR. Durante esse período, iniciou um relacionamento amoroso com Iara Iavelberg, psicóloga e militante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), uma dissidência do PCB.
Como previsto por Lamarca, as delações dos militantes presos no episódio do caminhão trouxeram uma série de problemas para a VPR. Vários militantes da organização foram presos ao longo do ano de 1969 — incluindo Onofre Pinto, José Ibrahim e os irmãos Nelson e Pedro Chaves. Lamarca assumiu então o comando o grupo.
Confrontado pela desarticulação do movimento, o novo dirigente organizaria a fusão entre os membros remanescentes da VPR e o Comando de Libertação Nacional (COLINA), dando origem à Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). A união, entretanto, seria breve. A VPR seria refundada pouco tempo depois, em consequência da cisão ocasionada pelo “racha dos sete”.
Ainda em 1969, Lamarca lideraria uma série de operações de levantamento de fundos para a luta armada — destacando-se o roubo do cofre onde o ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros, guardava o dinheiro de propinas e esquemas de corrupção. A ação renderia US$ 2,5 milhões para o caixa dos revolucionários. O dinheiro foi utilizado para adquirir um sítio no Vale do Ribeira, no interior de São Paulo, transformado em um base do grupo.
Disposta a aniquilar os movimentos revolucionários, a ditadura intensificou a repressão. Em novembro de 1969, Carlos Marighella seria assassinado — uma perda que angustiou toda a luta armada. Lamarca, Iara e outros 16 guerrilheiros da VPR decidiram abandonar a capital paulista e partir para o Vale do Ribeira, onde iniciaram o treinamento de guerrilha rural.
A fim de proteger a localização do grupo, a VPR chegou a realizar o sequestro do cônsul do Japão, Nobuo Okuchi. Ele foi libertado mediante a soltura de 5 presos políticos — entre eles Shizuo Ozawa, o “Mário Japa”, que conhecia a localização do sítio e havia sido capturado pelos militares.
O esforço não seria o bastante para manter os militares afastados. Em abril de 1970, uma nova prisão de integrantes da VPR daria às autoridades a localização aproximada do grupo. As Forças Armadas enviaram um contingente de 2500 homens para procurar os revolucionários no Vale do Ribeira, auxiliados pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. A megaoperação bloqueou estradas, varreu as matas com helicópteros e até bombardeou com napalm áreas suspeitas de servirem de refúgio aos guerrilheiros.
Lamarca conseguiu esvaziar as bases a tempo e embrenhou-se na Mata Atlântica com seu grupo, evitando a captura. Em 8 de maio, o grupo foi localizado por uma unidade policial liderada pelo tenente Alberto Mendes Júnior.
Os guerrilheiros conseguiram subjugar os policiais e fugiram novamente, escapando em seguida de duas escaramuças montadas pelo exército e de uma patrulha coordenada pelo coronel Erasmo Dias. Após 41 dias na mata, famintos e exaustos, os guerrilheiros ainda conseguiram dominar um grupo de militares e tomar seu caminhão, retornando a São Paulo. Lamarca havia escapado com sucesso da maior operação militar realizada pelo II Exército em toda sua história.
A VPR ainda organizaria duas importantes ações armadas em 1970. Em junho, uma operação conjunta com a ALN, comandada por Eduardo Collen Leite, sequestrou o embaixador da Alemanha Ocidental, Ehrenfried von Holleben. Ele foi trocado por 40 presos políticos, enviados para a Argélia.
Em dezembro de 1970, Lamarca comandaria outro sequestro, capturando Giovanni Bucher, o embaixador da Suíça. Para soltar o embaixador, o ex-capitão exigiu a libertação de 70 prisioneiros, o congelamento geral dos preços por 90 dias e a liberação das roletas nas estações de trem do Rio de Janeiro. O regime militar dificultou as negociações, prolongando o sequestro por 42 dias. Bucher foi libertado em janeiro de 1971, após o governo atender parcialmente as exigências.
Em março de 1971, Lamarca deixou a VPR, já bastante enfraquecida, e ingressou no MR-8, grupo onde Iara militava. A nova organização, entretanto, logo seria alvo de uma violenta ofensiva dos órgãos repressivos, resultando na captura de vários membros — incluindo Stuart Angel Jones, que morreu sob tortura, negando-se a delatar o paradeiro de Lamarca.
Após a prisão do militante José Gomes, Lamarca e Iara decidiram partir para a Bahia. Iara rumou para Salvador e Lamarca seguiu para Buriti Cristalino, na Chapada Diamantina, onde se encontraria com o metalúrgico José Campos Barreto, o Zequinha, ex-companheiro na VPR. Eles pretendiam montar um novo aparelho revolucionário no estado, do qual participariam também dois irmãos de Zequinha, Olderico e Otoniel, e o militante Professor Roberto.
Em meados de 1971, a polícia do Rio de Janeiro apreenderia documentos em posse do guerrilheiro César Benjamin que denunciavam os planos de Lamarca. Outro guerrilheiro preso, José Carlos de Souza, entregaria sob tortura o paradeiro do casal. O exército montou então uma operação de captura — a Operação Pajussara, articulada em conjunto com o DOI-CODI baiano e idealizada pelo delegado Sérgio Fleury.
Em 20 de agosto de 1971, Iara foi assassinada a tiros em seu apartamento no bairro de Pituba, em Salvador. Em seguida, os militares iniciaram a busca por Lamarca. Liderada por Nílton Cerqueira, a força tarefa era composta por 215 agentes, entre homens do exército, policiais federais, agentes do DOPS, policiais militares baianos e 18 homens da Para-Sar. Os militares chegaram a Buriti Cristalino em 28 de agosto e invadiram a propriedade do pai de Zequinha. Otoniel resistiu à invasão, sendo morto a tiros pelos agentes. Olderico ficou ferido no ataque, enquanto professor Roberto tirou a própria vida.
Ouvindo o tiroteio, Lamarca e Zequinha conseguiram fugir, embrenhando-se na caatinga. Iniciaram uma longa jornada, percorrendo 300 quilômetros em aproximadamente 20 dias, chegando à aldeia de Pintada, no município de Ipupiara. Alertados por populares, os homens de Cerqueira encurralaram os dois guerrilheiros. Eles foram executados a tiros em 17 de setembro de 1971, enquanto descansavam sob a sombra de uma árvore. Lamarca tinha 34 anos quando morreu. Zequinha tinha 25.
O ex-capitão foi sepultado em uma cova sem nome, no cemitério do Campo Santo em Salvador. Tentando impedir que o guerrilheiro fosse transformado em um mártir da resistência, a ditadura emitiu comunicado proibindo a imprensa de publicar quaisquer reportagens sobre Lamarca.
Desde a redemocratização, movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos têm pressionado pela concessão formal de anistia política a Carlos Lamarca. Em 2007, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça concedeu a Lamarca a patente de coronel e determinou que a viúva e os filhos do guerrilheiro fossem indenizados. Em 2015, essa decisão foi anulada pela 21.ª Vara Federal do Rio de Janeiro.