Há 60 anos, em 7 de agosto de 1964, o Congresso dos Estados Unidos aprovava a Resolução do Golfo de Tonquim, autorizando o presidente Lyndon Johnson a ampliar exponencialmente a participação norte-americana na Guerra do Vietnã. A medida foi uma resposta aos relatos de que embarcações vietnamitas teriam atacado navios de guerra dos Estados Unidos durante o “Incidente do Golfo de Tonquim”. Esse ataque, entretanto, nunca ocorreu: tratava-se de uma operação de bandeira falsa, criada com o objetivo de manipular a opinião pública e justificar o envolvimento mais intenso dos Estados Unidos no conflito.
A Guerra do Vietnã foi o mais longo dos conflitos tributários da Guerra Fria. As origens do conflito remontam à Segunda Guerra Mundial, quando o revolucionário Ho Chi Minh liderou o movimento independentista contra a ocupação militar japonesa.
Após 1946, o Viet Minh retomou a luta contra a França — potência colonial que reivindicava a posse do Vietnã desde o século XIX. Em 1954, a independência do Vietnã foi reconhecida pela Conferência de Genebra, mas o país foi dividido ao meio, ao longo do Paralelo 17, visando acomodar os interesses conflitantes das potências aliadas (vencedoras da Segunda Guerra). Surgiram assim o Vietnã do Norte, um Estado socialista sob comando de Ho Chi Minh, e o Vietnã do Sul, nação capitalista estreitamente vinculada aos Estados Unidos. Um referendo sobre a unificação das nações foi marcado para 1956.
Em outubro de 1955, o imperador Bao Dai foi deposto do comando do Vietnã do Sul por um golpe militar coordenado por Ngo Dinh Diem. A troca de regime foi apoiada pelos Estados Unidos, que desejavam reforçar o controle sobre o Vietnã do Sul como parte da estratégia de contenção da expansão comunista no Sudeste asiático.
Tão logo tomou posse como presidente, Diem cancelou o referendo e instituiu uma série de medidas autoritárias, convertendo o Vietnã do Sul em uma ditadura brutal. Diem deu início a um violento expurgo contra a insurgência interna liderada pelos “vietcongues” — combatentes partidários da unificação do Vietnã sob um governo socialista — e passou a reprimir e perseguir a comunidade budista, levando ao acirramento das tensões regionais e, eventualmente, à eclosão da Guerra do Vietnã.
Em 1959, o governo do Vietnã do Norte deu aval para a sublevação armada dos vietcongues e iniciou as primeiras operações de larga escala contra o exército do Vietnã do Sul. Nos anos seguintes, os Estados Unidos reforçariam o apoio militar ao regime de Diem, enviando armas, munições e técnicos, mas evitando empregar suas próprias tropas no conflito.
O presidente John Kennedy acreditava que o envio de soldados norte-americanos seria um erro estratégico e poderia acarretar o envolvimento direto da União Soviética na guerra, com consequências imprevisíveis. Preferia, portanto, confiar na capacidade de Diem de esmagar os grupos paramilitares comunistas.
Diem, no entanto, enfrentava crescentes dificuldades em governar o Vietnã do Sul. Sua repressão contra os budistas havia jogado o país em um estado de instabilidade política permanente, a caminho de uma grande convulsão social. Assim, em novembro de 1963, Diem foi deposto e assassinado por um golpe militar perpetrado com apoio dos Estados Unidos. O governo do Vietnã do Sul ficou a cargo de uma junta militar.
O panorama político também estava sendo modificado nos Estados Unidos. Em setembro de 1963, John Kennedy havia iniciado a retirada gradual das tropas norte-americanas estacionadas no Vietnã do Sul, causando indignação do oficialato. Dois meses depois, Kennedy seria assassinado.
Lyndon Johnson, o sucessor de Kennedy, paralisou a retirada das tropas e reverteu o processo de distensão, passando a defender uma intervenção mais agressiva na Guerra do Vietnã, em consonância com a posição do Departamento de Defesa. O comando militar do Pentágono defendia a tese de que uma ação vigorosa era necessária para evitar que todo o Sudeste Asiático fosse englobado pelo bloco socialista, conforme preconizado pela “Teoria do Dominó” — doutrina geopolítica que postulava que as mudanças na estrutura política de um país tendiam a se alastrar para as nações vizinhas.
Antes da morte de Kennedy, os Estados Unidos já realizavam uma série de operações secretas contra o Vietnã do Norte. Boa parte dessas ações estavam relacionadas ao Plano Operacional 34-A (OPLAN), um programa de espionagem, desestabilização e sabotagem naval conduzido pela CIA. O programa executou uma série de missões entre 1961 e 1964, incluindo ataques contra cidades costeiras do Vietnã do Norte, sabotagem e destruição de instalações de transporte, fábricas e depósitos e infraestrutura, infiltração de agentes e operações de guerra psicológica. As ações ofensivas eram geralmente executadas por agentes sul-vietnamitas — a fim de preservar os norte-americanos caso as missões fossem descobertas.
As missões da OPLAN eram executadas em paralelo com operações de vigilância eletrônica e de coleta de inteligência realizadas pela Marinha dos Estados Unidos — as chamadas “patrulhas DESOTO”. Durante as patrulhas, contratorpedeiros norte-americanos, equipados com sofisticados equipamentos de escuta eletrônica e sistemas de radar, interceptavam e gravavam comunicações emitidas pelos navios e instalações costeiras do Vietnã do Norte.
Essas informações eram compartilhadas com outros setores de inteligência do governo norte-americano e utilizadas para planejar as estratégias militares e ofensivas conduzidas pelo Vietnã do Sul. Os ataques realizados pelos agentes sul-vietnamitas também visavam provocar a resposta das forças do norte, permitindo aos norte-americanos monitorar e obter dados valiosos sobre a capacidade ofensiva do Vietnã do Norte.
A fim de combater as incursões e desestimular os ataques executados pela OPLAN, o governo do Vietnã do Norte ampliou a vigilância sobre Golfo de Tonquim, mobilizando canhoneiras, fragatas e barcos torpedeiros para proteger o seu litoral.
No dia 2 de agosto de 1964, a marinha do Vietnã do Norte detectou a presença de um navio de guerra dos Estados Unidos em águas norte-vietnamitas. Tratava-se do contratorpedeiro USS Maddox, que havia sido enviado para uma missão de coleta de inteligência nos arredores da Ilha de Hon Mê. Os militares norte-vietnamitas enviaram três barcos torpedeiros para seguir a embarcação.
Ao perceber a aproximação dos barcos, Maddox apontou seus canhões e abriu fogo. Revidando ao ataque, os norte-vietnamitas dispararam tiros de metralhadora contra a embarcação. Por rádio, a tripulação do Maddox afirmou que estava “sob ataque” e solicitou apoio aéreo a um porta-aviões estacionado na região. Quatro caças foram enviados para atacar os barcos-torpedeiros, já em retirada.
Dois dias depois, na noite de 4 de agosto de 1964, os contratorpedeiros USS Maddox e USS Turner Joy voltaram a invadir as águas norte-vietnamitas em mais uma patrulha de coleta de inteligência. Por volta das 21h30, os navios norte-americanos emitiram alertas, alegando estarem sob ataque de embarcações do Vietnã do Norte.
Durante duas horas, os contratorpedeiros realizaram uma série de disparos contra supostos alvos de radar. Não havia, entretanto, nenhuma embarcação norte-vietnamita na área. Os norte-americanos estavam há duas horas disparando contra baleias e cardumes de peixes. Algumas horas depois, o capitão John Herrick enviou um telegrama reconhecendo que o ataque “pode não ter acontecido” e explicou que os supostos alvos detectados no radar provavelmente foram causados por “efeitos climáticos anormais”.
O “ataque fantasma” no Golfo de Tonquim tinha tudo para ser um constrangimento para a Marinha dos Estados Unidos — mas onde o capitão Herrick via um vexame, o comando militar do Pentágono e o presidente Lyndon Johnson enxergaram uma oportunidade. Um ataque do Vietnã do Norte contra embarcações dos Estados Unidos era o pretexto ideal para justificar uma intervenção mais agressiva dos norte-americanos na Guerra do Vietnã. A alegação de que os militares norte-americanos foram “vítimas de um ataque” ajudaria a demover a resistência que a opinião pública e uma parte do congresso ainda tinham a uma eventual escalada das operações no Sudeste Asiático.
Ainda na noite do incidente, o presidente Lyndon Johnson convocou um pronunciamento em rede nacional descrevendo dramaticamente o “ataque dos comunistas vietnamitas” aos navios norte-americanos e exortando a nação a apoiar uma firme resposta militar. O relato de Johnson distorceu completamente os eventos do Golfo de Tonquim.
Além de tratar como uma emboscada covarde o suposto ataque do dia 4 —que nunca existiu —, o presidente alegou que o conflito do dia 2 havia sido iniciado pelos vietnamitas (embora os norte-americanos tenham efetuado os primeiros disparos) e afirmou que a ação havia ocorrido em “alto mar” (quando se passou nas águas do Vietnã do Norte). Para sustentar as mentiras contadas pelo presidente, a Agência de Segurança Nacional (NSA) falsificou documentos, fraudou relatos e fabricou evidências.
Em 7 de agosto de 1964, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Resolução do Golfo de Tonquim. A medida deu ao presidente Lyndon Johnson carta branca para intensificar as ações militares no Vietnã, mesmo sem que houvesse uma declaração formal de guerra.
Em “retaliação” ao ataque imaginário, Lyndon Johnson lançou a Operação Pierce Arrow — campanha de bombardeios aéreos contra avos militares e civis do Vietnã do Norte. A operação marcaria o início da mais violenta campanha aérea da história, responsável por lançar mais de 7,2 milhões de toneladas de bombas sobre o Sudeste Asiático. Era também início da “guerra suja”, marcada por massacres, atrocidades, crimes de guerra e uso indiscriminado de armas químicas.
Graças à mentira de Johnson e do Pentágono, o governo norte-americano conseguiu transformar o que era uma guerra civil pela unificação do Vietnã em um conflito internacional que envolveria mais de uma dúzia de países, se estenderia por duas décadas e ceifaria até 3 milhões de vidas.
Em 2005, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos publicou um conjunto de documentos previamente classificados como confidenciais sobre a Guerra do Vietnã. Os documentos comprovaram que o Incidente do Golfo de Tonquim foi uma fabricação do governo norte-americano.