Há 61 anos, em 16 de julho de 1963, o presidente João Goulart lançava a Campanha Nacional de Alfabetização — um dos mais avançados projetos de erradicação do analfabetismo já implementados no Brasil. A campanha foi conduzida pelo educador Paulo Freire, então chefe da Comissão de Cultura Popular, e previa a aplicação em larga escala de seu método inovador de alfabetização, fundamentado na autonomia pedagógica do estudante e calcado na visão da educação como uma ferramenta emancipadora, que visa a transformação da sociedade.
Mas o projeto teria vida curta: o encerramento da campanha foi uma das primeiras medidas tomadas pela ditadura militar após o golpe de 1964.
Durante a maior parte da história do Brasil, a educação esteve muito longe de ser uma prioridade. As primeiras normas educacionais promulgadas no país foram editadas em 1827, no reinado de Pedro I, mas o acesso ao ensino seguiu restrito a uma parcela ínfima da população durante todo o período imperial. Tendo seu domínio político alicerçado na exploração das classes baixas, a aristocracia agrária enxergava o acesso das massas à educação como uma ameaça aos seus privilégios.
Como resultado, a taxa de analfabetismo chegava a 85% da população brasileira em 1889, ano em que a República foi proclamada. A situação pouco se alteraria após a queda da monarquia. Os governos da Primeira República ampliaram as redes escolares, mas o direito ao ensino seguiu circunscrito às elites e aos setores médios urbanos.
O ensino primário somente foi reconhecido como um direito universal após a promulgação da Constituição de 1934. O processo de industrialização e modernização econômica da Era Vargas demandava a formação de uma mão de obra mais qualificada. Para atender essa demanda, o poder público passou a investir na expansão da rede de ensino. Não houve, entretanto, a preocupação em instituir um programa abrangente de alfabetização para os adultos iletrados — e as raras iniciativas nesse âmbito ficavam a cargo de organizações filantrópicas e confessionais.
Assim, o Brasil permanecia com uma taxa de analfabetismo extremamente elevada. No início da década de 1940, mais da metade da população brasileira (56%) não sabia ler nem escrever.
As primeiras políticas do governo federal voltadas à alfabetização de adultos surgiram nos anos 40. Em 1947, o governo de Eurico Gaspar Dutra lançou a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA). Chefiada por Lourenço Filho, a campanha teve como enfoque a produção de materiais didáticos especializados e a capacitação de educadores — mas foi norteada por um enfoque elitista e preconceituoso, igualando o adulto analfabeto a um “marginal que não pode estar ao corrente da vida nacional”. A má gestão da campanha e a alocação deficiente de recursos também prejudicaram seus resultados.
Em 1952, como um desdobramento da CEAA, o governo federal lançou a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), objetivando estender os esforços de alfabetização às comunidades camponesas. A campanha teve o mérito de adaptar o conteúdo programático às necessidades do meio rural, mas teve um alcance muito limitado.
Uma nova tentativa de criar um programa abrangente de alfabetização de adultos ocorreu em 1958, quando Juscelino Kubitschek lançou a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA). A campanha foi elaborada a partir de uma análise crítica das falhas das mobilizações anteriores, mas também foi prejudicada pela falta de recursos e pela articulação ineficaz.
Uma série de propostas inovadoras no âmbito da educação surgiram no início da década de 1960, ecoando o clima de efervescência política e o forte engajamento dos movimentos sociais na proposição de novos rumos para o país. Em maio de 1960, foi fundado no Recife o Movimento de Cultura Popular (MCP) — projeto que preconizava uma abordagem educacional apta a dialogar com a cultura popular e com a realidade social dos educandos.
Implementado pela gestão de Miguel Arraes, o MCP teve uma importante atuação nos bairros periféricos de Recife, executando ações educacionais e fomentando atividades culturais variadas. O MCP contou com a participação de diversos intelectuais, artistas e educadores — incluindo Paulo Freire, então professor de filosofia da educação na Universidade do Recife. Foi no âmbito do MCP que Paulo Freire formulou os preceitos básicos da “pedagogia do oprimido”.
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O MCP desenvolveu um método de alfabetização de adultos que privilegiava a independência intelectual dos educandos e a promoção da conscientização crítica das comunidades. As cartilhas tradicionais foram abolidas em favor de uma abordagem que adaptava o conteúdo à realidade social dos estudantes. O movimento também difundia cursos por rádio e incentivava a mobilização da sociedade nas discussões políticas. O MCP serviu de inspiração para outros projetos voltados a promover a educação popular como instrumento para a transformação social.
Em 1962, a União Nacional dos Estudantes (UNE) fundou no Rio de Janeiro o Centro Popular de Cultura (CPC). Assim como o MCP, o CPC buscava valorizar as manifestações culturais populares, promover a educação crítica e libertadora e utilizar a arte como ferramenta de transformação social. O movimento se espalhou pelo país, com a abertura de CPCs em diversos estados. Outra iniciativa baseada na valorização da educação popular foi o Movimento de Educação de Base (MEB), lançado em 1961 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. O MEB organizava ações baseadas no método “Ver, Julgar e Agir”, que que valorizava a análise crítica da realidade e o fomento à ação social.
Embora inovadoras, as iniciativas educacionais do início dos anos 60 ainda possuíam um alcance muito restrito — especialmente considerando o tamanho do problema que tentavam ajudar a sanar. Quase 40% da população brasileira ainda era analfabeta. Além de perpetuar a exclusão e desigualdade econômica, o analfabetismo privava parte substancial da classe trabalhadora da participação política, uma vez que os analfabetos não tinham direito ao voto. Para mudar esse quadro, seria necessário o investimento massivo do governo federal. E foi isso que o presidente João Goulart se propôs a fazer em 1963.
João Goulart tinha como principal plataforma de seu governo a implementação das reformas de base — conjunto de reformas estruturais que visavam combater as desigualdades estruturais e impulsionar o desenvolvimento nacional. Entre as medidas propostas por Goulart estava uma abrangente reforma educacional e a erradicação do analfabetismo no Brasil. Em julho de 1963, a fim de viabilizar tal projeto, Goulart convidou Paulo Freire para coordenar uma Campanha Nacional de Alfabetização.
O nome de Paulo Freire estava em evidência em 1963. O educador havia acabado de conduzir um projeto experimental de erradicação do analfabetismo na cidade de Angicos, no Rio Grande de Norte, e obteve resultados impressionantes: 380 jovens e adultos foram alfabetizados em apenas 40 horas.
A exemplo do que já havia sido esboçado no âmbito do Movimento de Cultura Popular, o modelo didático adotado estimulava o aprendizado por meio da discussão sobre o cotidiano da comunidade, o universo vocabular e as experiências de vida dos alunos, encorajando igualmente o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre a realidade social. O método desenvolvido por Paulo Freire valorizava a agência e a autonomia pedagógica do estudante, contrapondo-se ao que o educador chamava de “educação bancária” — modelo em que o professor é visto como centro do processo de aprendizado, limitando-se a “depositar” o conhecimento junto aos alunos.
O feito de Angicos inspirou experiências bem sucedidas utilizando o método de Paulo Freire em cidades de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. A ideia de Goulart era, portanto, expandir a aplicação do modelo pedagógico de Paulo Freire de forma massiva, em todo o país. Em julho de 1963, Paulo de Tarso, ministro da Educação e Cultura, instituiu a Comissão de Cultura Popular, chefiada por Freire e incumbida de “disseminar por todo Brasil do sistema de alfabetização experimentado com sucesso em Angicos”. Também foi criado um Grupo de Trabalho de Cultura Popular, como uma agência de apoio à campanha.
Nos meses seguintes, Freire coordenou o levantamento de dados e pesquisas para nortear a campanha e elaborou os cursos voltados à preparação dos professores e coordenadores. Em setembro de 1963, foi realizado em Recife o Primeiro Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular, que serviu como uma plataforma para difundir a informação sobre a campanha e cooptar a colaboração de setores da sociedade civil.
A campanha previa a instalação de mais de 60.000 Círculos de Cultura, que deveriam alfabetizar até 5 milhões de pessoas em um prazo de dois anos. Para concretizar a meta ambiciosa, o governo pretendia mobilizar inúmeros setores da sociedade: agremiações estudantis, sindicatos, associações esportivas, entidades religiosas, empresas privadas, associações de moradores.
A Campanha Nacional de Alfabetização teve início no Rio de Janeiro ainda em 1963. Em janeiro de 1964, foi oficialmente instituído o Plano Nacional de Alfabetização, formalizando a campanha que já estava em andamento. A iniciativa, entretanto, enfrentou forte resistência das oligarquias e dos setores reacionários. Se bem sucedido, o projeto tocado por Paulo Freire daria direito a voto a 5 milhões de eleitores das classes baixas, desvinculados das bases e dos interesses das classes dominantes.
Além disso, o modelo pedagógico de Freire incentivava a participação política dos alfabetizandos visando a reordenação política da sociedade — como havia ficado evidente em uma greve de trabalhadores da construção civil no Rio Grande do Norte, quando os operários, alfabetizados pelo método freiriano, cruzaram os braços e passaram a exigir o cumprimento da CLT, reivindicando descanso semanal remunerado e o limite da jornada de trabalho.
Assim, quando João Goulart foi derrubado no golpe militar de 1964, o cancelamento do Plano Nacional de Educação foi uma das primeiras medidas tomadas pelos militares. Paulo Freire foi preso pelos golpistas e ficou encarcerado por 72 dias. No inquérito que embasou o pedido de prisão, o educador era descrito como “cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador” e “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”. Outras dezenas de educadores ligados à campanha de alfabetização também foram presos.
A repressão da ditadura se estendeu aos demais movimentos de educação popular existentes no país. O Movimento Popular de Cultura e os Centros Populares de Cultura foram fechados, tiveram seus materiais pedagógicos apreendidos e suas sedes invadidas e depredadas. Ligado à Igreja Católica, o Movimento de Educação de Base permaneceu ativo, mas foi forçado a modificar radicalmente sua metodologia e linha de ação. Pressionada pela ONU e pela UNESCO a retomar a campanha de alfabetização, a ditadura criaria em 1967 o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) — mas tomaria o cuidado de garantir a aplicação de um modelo pedagógico mecanicista, padronizado e alicerçado sob os preceitos autoritários e despolitizantes.