Há 76 anos, em 9 de setembro de 1948, a Assembleia Popular Suprema proclamava a fundação da República Democrática da Coreia — a Coreia do Norte. O governo foi entregue a Kim Il-Sung, um dos principais líderes do movimento independentista e futuro Secretário-Geral do Partido do Trabalho da Coreia. Ele seria responsável por implementar as reformas estruturais que possibilitaram uma série de conquistas e avanços na segunda metade do século XX.
A luta pela unidade e emancipação política é um tema recorrente na história da civilização coreana. Fragmentada em vários Estados até o fim da era dos Três Reinos, a Coreia foi unificada pela Dinastia Goryeo a partir do século X. O reino viveu um período de grande desenvolvimento cultural, científico e artístico nos três séculos seguintes, mas teve sua autonomia suprimida após as incursões do Império Mongol.
Apoiado pelo Império dos Ming na China, o general Yi Seong-Gye tomou o poder e fundou a Dinastia Joseon, que governaria a Coreia pelos próximos cinco séculos. Estabelecendo um regime influenciado pelos princípios do confucionismo, a Dinastia Joseon fomentou a modernização e a prosperidade, mas a Coreia logo seria submetida à condição de Estado vassalo da China, a partir da ascensão do Império Qing.
Uma nova tentativa de fortalecer a autonomia política do país foi empreendida pelo rei Gojong, que, em 1897, fundou o Império da Coreia. A experiência teria curta duração. Desde a restauração Meiji, o Japão conduzia uma agressiva política expansionista, buscando se consolidar como uma potência regional. Limitado pela escassez de recursos naturais em seu território, o país passou a avançar sobre as nações vizinhas, a fim de ampliar seu “espaço vital”. O território coreano logo se tornou alvo da cobiça japonesa. O enfraquecimento da Dinastia Qing, por sua vez, removeria o último obstáculo às ambições imperialistas do Japão.
Em 1905, os líderes coreanos foram forçados a assinar o Tratado de Eulsa, transformando a Coreia em um protetorado japonês. Cinco anos depois, já sob ocupação militar, a Coreia seria submetida a um dos projetos coloniais mais violentos do século XX. As autoridades coloniais implementaram uma série de medidas repressivas.
O alfabeto coreano foi proibido e as tradições e manifestações locais foram suprimidas, numa tentativa de apagar a identidade nacional coreana. Vastas extensões de terras agricultáveis foram confiscadas e as indústrias do país foram expropriadas. Os coreanos foram submetidos ao trabalho forçado, em condições degradantes. Viviam sob vigência de um hediondo código penal, que havia legalizado a tortura e os açoitamentos. Milhares de mulheres foram sequestradas e forçadas à prostituição em bordéis direcionados ao uso dos militares japoneses — prática que denominaram como “mulheres de conforto”.
As violentas práticas coloniais do Japão levaram os coreanos a se organizarem em movimentos de resistência. Esse foi o caso de Kim Il-Sung. Nascido em Pyongyang, Kim Il-Sung teve de se refugiar com sua família na região da Manchúria, na China, para escapar da repressão japonesa. Em 1926, ele fundaria a União Contra o Imperialismo, movimento destinado a fomentar a oposição ao imperialismo japonês e promover o conhecimento sobre os princípios revolucionários. Seria preso pouco tempo depois, sob a acusação de manter vínculos com a Associação da Juventude Comunista do Sul da Manchúria, então uma organização clandestina.
Em 1931, Kim Il-Sung se filiou ao Partido Comunista da China e passou a integrar grupos guerrilheiros anti-japoneses ativos no norte do país. Após o Incidente de Mukden — uma operação de bandeira falsa utilizada pelo Japão para justificar a ocupação da Manchúria — Kim Il-Sung se juntou ao Exército Unido Anti-Japonês do Nordeste, braço armado do Partido Comunista Chinês, responsável por organizar ações de resistência contra a presença japonesa na Manchúria.
Pouco tempo depois, o guerrilheiro seria indicado para o cargo de comissário político de um destacamento militar, ocasião em que travou contato com Wei Zhengmin, superior imediato e mentor que exerceria forte influência sobre sua visão política.
Nomeado comandante da 6ª divisão em 1937, Kim Il-Sung liderou uma bem sucedida incursão em território coreano, derrotando os japoneses na Batalha de Pochonbo. A vitória de Kim alarmou os japoneses, que enviaram tropas para capturá-lo a partir de 1940. Perseguido, Kim Il-Sung e seu exército se refugiaram na União Soviética, onde seriam integrados a uma unidade especial do Exército Vermelho e enviados para treinamento suplementar. Ele progrediu rapidamente na hierarquia militar soviética, ascendendo ao cargo de major do Exército Vermelho, pelo qual lutaria durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao lado dos soviéticos, Kim Il-Sung ajudou a combater as tropas do Eixo durante todo o conflito. Em agosto de 1945, após a União Soviética declarar oficialmente guerra ao Japão, o Exército Vermelho expulsou os invasores japoneses da península coreana, ocupando Pyongyang. Contrariado com a ocupação da península pelas tropas soviéticas, os Estados Unidos passaram a enviar seus homens para a porção meridional da Coreia. Durante a conferência de Potsdam, soviéticos e norte-americanos acordaram a divisão provisória da península da Coreia em duas zonas administrativas distintas, delimitadas ao longo do Paralelo 38.
Ao sul da península da Coreia, os Estados Unidos instalaram um governo militar, administrado em conjunto com a estrutura administrativa herdada da ocupação japonesa. Esse regime seria responsável por impor uma política repressão contra as organizações sindicais, os movimentos sociais e os partidos de esquerda.
Protestos e atos de resistência foram transformados em banhos de sangue — a exemplo da chacina dos trabalhadores que se rebelaram na cidade de Yeongcheon. Posteriormente, os Estados Unidos “terceirizariam” a gestão do governo sul-coreano para um regime fantoche administrado pelo ditador Syngman Rhee, um anticomunista fervoroso, responsável por perpetrar dezenas de massacres e ceifar centenas de milhares de vidas.
Na parte setentrional da península coreana, as estruturas administrativas legadas dos invasores japoneses foram totalmente suprimidas pelo governo provisório — ideologicamente alinhado à União Soviética, mas liderado pelos próprios coreanos e imbuído de participação popular em seus conselhos e órgãos consultivos
Nomeado presidente da seção norte-coreana do Partido Comunista, Kim Il-Sung retornou à Coreia em setembro de 1945, após 26 anos de exílio. No ano seguinte, a seção norte-coreana do Partido Comunista e o Novo Partido Popular se fundiram para formar o Partido do Trabalho da Coreia (PTC) e Kim assumiu o cargo de presidente do Comitê Popular Provisório da Coreia do Norte.
A princípio, a divisão da península coreana não deveria ser duradoura, mas o acirramento das tensões geopolíticas e o recrudescimento da polarização da Guerra Fria liquidaram a possibilidade de reunificação. O quadro se agravou ainda mais quando as autoridades norte-americanas deram o aval para a constituição de um governo “de jure” na parte meridional da península.
Em 15 de agosto de 1948, foi proclamada a República da Coreia — a Coreia do Sul. A criação do Estado era uma advertência de que a única possibilidade de reunificação seria sob a liderança de um regime capitalista, alinhado aos interesses dos Estados Unidos.
Respondendo à proclamação unilateral do governo sul-coreano e buscando salvaguardar os interesses do bloco socialista, os gestores norte-coreanos formalizaram a criação do seu próprio Estado. O Comitê Popular Provisório foi então convertido em Assembleia Popular Suprema, identificado como o máximo órgão deliberativo do país.
Em 9 de setembro de 1948, proclamou-se formalmente a criação da República Popular Democrática da Coreia, um Estado socialista soberano, governado de forma autônoma pelos norte-coreanos. Kim Il-Sung foi escolhido para o cargo de primeiro-ministro, acumulada à função de secretário-geral do Partido do Trabalho da Coreia.
À frente do governo norte-coreano, Kim Il-Sung conduziu uma série de reformas estruturais e instituiu ações que estimularam importantes transformações sociais. Os desafios eram particularmente grandes na área da educação. Até meados dos anos 40, dois terços das crianças norte-coreanas estavam fora das escolas e a maioria dos habitantes do país eram analfabetos. O governo norte-coreano iniciou uma abrangente campanha de alfabetização e ergueu milhares de escolas entre as décadas de 1950 e 1970, o que possibilitou a universalização do acesso ao ensino. O país possui hoje uma das menores taxas de analfabetismo do mundo.
Na área da saúde pública, a Coreia do Norte instituiu um sistema universal de saúde baseado no Serviço Semashko, — o “SUS soviético” — com grande foco na medicina preventiva. A vacinação e os check-ups periódicos se tornaram obrigatórios. O país também investiu pesado na expansão da rede assistencial.
Entre 1955 e 1986, o número de hospitais na Coreia do Norte saltou de 285 para 2.401 e o de clínicas especializadas subiu de 1.020 para 5.644. A evolução dos indicadores impressiona. A expectativa de vida dos norte-coreanos saltou de 37,6 anos em 1955 para 74 anos em 2022. A mortalidade infantil caiu de 121 mortes por mil nascimentos em 1955 para 14 mortes por mil nascimentos em 2020.
O gabinete de Kim Il-Sung limitou a jornada de trabalho a 8 horas diárias, nacionalizou a indústria de base, o sistema bancário e o setor de transportes. Na área da agricultura, o governo realizou uma ampla reforma agrária, abolindo os latifúndios e redistribuindo terras para camponeses, cooperativas e fazendas coletivas. O déficit habitacional foi equacionado, com a construção e distribuição de centenas de milhares de moradias.
A Lei da Igualdade de Gênero, promulgada em 1946 e referendada na constituição de 1972, estabeleceu a igualdade formal entre homens e mulheres. Por fim, o governo fez pesados investimentos na industrialização, mantendo um esforço contínuo de décadas para aproximar o país da autossuficiência.
Kim Il-Sung também fundou o Exército do Povo Coreano que, auxiliado pela China e pela União Soviética, resistiu durante três anos à violenta campanha militar conduzida pela coligação dos Estados Unidos, Coreia do Sul e outros 15 países durante a Guerra da Coreia.
Conduziu, por fim, o bem sucedido esforço de reconstrução do país, arrasado durante o conflito, e lançou as bases do plano econômico quinquenal, da expansão do parque industrial e do desenvolvimento dos programas espacial, militar e nuclear, visando assegurar a independência política do país por meio de uma estratégia de dissuasão bélica.