Há 384 anos, em 11 de março de 1641, tinha início a Batalha de M’Bororé. O conflito ocorreu nas reduções jesuíticas das Missões Orientais, na fronteira entre o Rio Grande do Sul e a Argentina, e opôs um exército de indígenas Guarani a uma expedição de bandeirantes paulistas que pretendiam escravizá-los. A batalha se estendeu por uma semana e terminou com a vitória contundente dos Guarani, tornando-se um marco da resistência indígena.
As missões jesuíticas
Os jesuítas aportaram nas Américas ainda no século XVI, objetivando evangelizar os povos indígenas. As primeiras tentativas de evangelização foram frustradas pela ausência de colaboração das demais ordens religiosas e pela forte oposição dos colonizadores, interessados em explorar os indígenas como mão de obra escrava.
Os jesuítas elaboraram então uma nova estratégia de catequização, baseada na criação de aldeamentos que permitissem a convivência permanente entre missionários e indígenas. Surgiram assim as “missões” ou “reduções jesuíticas”, concebidas como ferramentas catalisadoras do processo de aculturação, sob uma perspectiva utópica de construção de uma nova sociedade “isenta de vícios”.
Nas primeiras décadas do século XVII, diversas missões foram estabelecidas nas margens dos rios Paraná, Paraguai, Uruguai e seus afluentes, congregando dezenas de milhares de indígenas.
As missões jesuíticas estão entre as instituições responsáveis por fomentar a desagregação das tradições dos povos originários, suprimindo gradualmente os sistemas de crenças e valores dos nativos em favor da imposição da cultura europeia e da fé cristã.
Não obstante, as missões também permitiam aos indígenas a manutenção de alguns hábitos e ofereciam proteção contra a exploração e a violência dos colonizadores. Por esse motivo, tornaram-se refúgios muito procurados pelos nativos.
As incursões dos bandeirantes
Os bandeirantes e sertanistas constituíam a principal ameaça aos povos indígenas durante o Período Colonial. Operando a partir de São Paulo, eram responsáveis por organizar as “bandeiras” — expedições que adentravam nos interiores inexplorados da colônia para buscar pedras preciosas e capturar indígenas para uso como mão de obra escrava.
Conhecidos pela crueldade e brutalidade, os bandeirantes protagonizaram inúmeros massacres, estupros e atos de selvageria contra nativos, sendo responsáveis pelo extermínio de centenas de milhares de indígenas. Estima-se que apenas entre 1625 e 1641, os bandeirantes assassinaram mais de 600.000 guaranis.
A presença numerosa de indígenas fez com que as missões se tornassem objeto de cobiça dos bandeirantes. Por sua vez, a unificação dinástica de Portugal e Espanha durante a vigência da União Ibérica forneceu o pretexto para que os sertanistas avançassem para além dos limites definidos pelo Tratado de Tordesilhas.
A partir de 1620, as incursões dos bandeirantes às missões jesuíticas da América espanhola se intensificaram cada vez mais. Entre 1628 e 1629, os bandeirantes de São Paulo realizaram uma série de ataques às missões do Guairá (atual estado do Paraná), em incursões encabeçadas por Raposo Tavares, Brás Leme, Pedro Vaz de Barros e André Fernandes.

“Guerrilha indígena”, gravura de 1820 de Johan Moritz Rugendas
Extremamente violentas, essas ofensivas dos bandeirantes resultaram na destruição completa das missões do Guairá e na captura de 5.000 indígenas. Deste montante, apenas 1.200 sobreviveram à viagem até São Paulo, onde foram leiloados como escravos. Um novo ataque bandeirante no mesmo ano devastou os povoados missioneiros de Ciudad Real e Vila Rica.
Acossados pelos bandeirantes, 12.000 indígenas e centenas de jesuítas abandonaram a região do Guairá em 1632, fugindo rumo ao sul. Estabeleceram-se então nas margens do Rio Uruguai, junto ao Penhasco do M’Bororé — hoje em Panambí, na província argentina de Misiones, fronteira com a cidade gaúcha de Porto Vera Cruz.
O êxodo missioneiro prosseguiu até a região de Tapes, interior do Rio Grande do Sul, então habitada por povos Guarani dos grupos Charrua, Tape, Araxã, Guananá, Guenoa, Carijó, etc. A fuga não bastou para deter os bandeirantes, que logo voltaram a perseguir os indígenas. Entre 1635 e 1638, Raposo Tavares e Fernão Dias organizaram uma série de ataques às reduções jesuíticas de Tapes.
Os indígenas reagem
Reagindo às investidas dos bandeirantes, os jesuítas buscaram apoio da coroa espanhola. Em 1638, os padres Antonio Ruiz de Montoya e Francisco Díaz Taño viajaram para Espanha e participaram de uma audiência com o rei Filipe IV, solicitando autorização para armar os indígenas.
Vislumbrando na resistência missioneira um meio de frear a expansão colonial portuguesa, o monarca acatou o pedido e determinou ao vice-rei do Peru que supervisionasse o uso das armas. O governador de Buenos Aires, Pedro de Rojas y Acevedo, se incumbiu de enviar instrutores militares para treinar os indígenas, ao passo que o governador de Assunção e a Real Audiência de Charcas se comprometeram a enviar armas.
Em 1639, o padre Diego de Alfaro partiu com um exército de guaranis armados em uma missão para libertar um grupo de nativos aprisionados pelos sertanistas. Após uma série de enfrentamentos menores, os indígenas conseguiram subjugar os paulistas durante a Batalha de Caazapaguazú, obtendo a primeira vitória contra os bandeirantes.
Tanto Alfaro quanto Pascoal Leite Pais, líder da bandeira, foram mortos no combate. No ano seguinte, Díaz Taño, Procurador da Província Jesuítica do Paraguai, exigiu das autoridades no Brasil o cumprimento da bula pontifícia do Papa Urbano VIII que condenava a escravização dos indígenas.
Em retaliação à exigência de Díaz Taãno, a Câmara Municipal de São Paulo ordenou a expulsão dos jesuítas da cidade no episódio conhecido como “Botada dos Padres Fora”. Os paulistas também decidiram organizar uma grande expedição para vingar a morte de Pascoal Leite Pais e destruir as Missões Orientais.
Liderada por Jerônimo Pedroso de Barros e Manuel Pérez, a expedição partiu de São Paulo em setembro de 1640. Cerca de 3.500 homens bem armados integravam o grupo, incluindo bandeirantes experientes como Antônio de Cunha Gago, Juan Leite e Pedro Nunes Dias.
Cientes da investida, os missioneiros se prepararam para a batalha, formando um exército de 4.200 indígenas Guarani, armados com arcabuzes, mosquetes, cutelos, flechas com pontas de ferro, pedras, etc. Também formaram uma cavalaria de lanceiros e improvisaram armas como um canhão de taquaruçu revestido com couro e catapultas que lançavam pedaços de troncos em chamas.
A Batalha de M’Bororé
Antes da chegada da expedição, os indígenas abandonaram as instalações da redução de Acaraguá, tomando o cuidado de destruir tudo que pudesse servir ao abastecimento dos paulistas. Em seguida, deslocaram-se até os arredores do Penhasco do M’Bororé, onde as condições eram mais favoráveis para o enfrentamento.
A batalha principal teve início em 11 de março de 1641, sobre as águas do Rio Uruguai. Os indígenas contavam com apenas 60 jangadas e canoas contra as mais de 300 embarcações dos sertanistas, mas conseguiram compensar a desvantagem numérica com escaramuças e armadilhas.
O exército Guarani foi dividido em companhias comandadas por chefes indígenas. O comando geral ficou a cargo de Nicolás Ñeenguirú, cacique da redução de Concepción. Liderando as companhias estavam os caciques Ignacio Abiarú, da redução de Nuestra Señora de la Asunción del Acaraguá, Francisco Mbayroba, da redução de San Nicolás, e Rodrigo Arazay, do povoado de San Javier.
Derrotados na batalha fluvial, os bandeirantes foram forçados a recuar por terra até Acaraguá, onde se refugiaram nas instalações abandonadas. Foram então cercados pelos missioneiros e submetidos a um bombardeio que se estendeu por quatro dias. Os indígenas evitaram o conflito direto, preferindo impor uma guerra de atrito.
Em 16 de março, cansados e desprovidos de água e comida, os bandeirantes enviaram uma carta aos indígenas solicitando sua rendição, mas o pedido foi negado. Tentaram então fugir do cerco subindo o Rio Uruguai, mas foram interceptados por um segundo contingente de 2.000 combatentes Guarani armados.
A batalha terminou em 18 de março, quando todos os bandeirantes foram capturados ou eliminados. Do contingente inicial de 3.500 homens, somente 120 voltaram para São Paulo com vida.
Sem conseguir aceitar a derrota, os bandeirantes organizaram uma nova expedição no final de 1641, mas, antes mesmo que conseguissem chegar às reduções, foram surpreendidos por um ataque indígena ao acampamento montado nas margens do Rio Yabotí Guazú e forçados a recuar.
A vitória dos guaranis na Batalha de M’Bororé impôs limites ao ímpeto violento dos bandeirantes, refreando as expedições escravagistas, que se tornaram menores e menos agressivas nos anos seguintes.
Por conseguinte, o triunfo também permitiu a consolidação do sistema missioneiro, que sobreviveu por mais um século, até ser desmantelado pelas investidas hispano-portuguesas no âmbito do Tratado de Madri — ensejando a eclosão da Guerra Guaranítica e a ascensão de um outro célebre guerreiro guarani, Sepé Tiaraju.