A guerra contra o Irã e a história em construção
Israel e sionismo figuram entre principais fatores de instabilidade mundial, sendo ponta de lança do colonialismo e imperialismo ocidentais no Oriente Médio
Por diversos aspectos a guerra contra o Irã já é histórica. Seja pelo ineditismo da forma como Israel atacou ou de como o Irã reagiu, seja pelos desdobramentos possíveis, esse é um dos poucos casos em que não é preciso distanciamento temporal para saber que um capítulo importante da história está sendo escrito diante de nossos olhos.
Israel e o sionismo figuram entre os principais fatores de instabilidade da ordem internacional. No caso do Oriente Médio, são a maior das causas.
Nunca é demais frisar que Israel e sionismo não se confundem com o judaísmo. Muito pelo contrário: por tudo que representam, Israel e o sionismo são o principal nutriente do antissemitismo.
O sionismo é uma ideologia e um regime colonialista, racista, intolerante e que tem na violência um expediente corrente e como principal estratégia retórica confundir-se com o judaísmo e o povo judeu. Israel, por sua vez, constitui a representação material do sionismo. No mais, Israel e o sionismo são a ponta de lança do colonialismo e do imperialismo ocidentais no Oriente Médio.
Argumento usado para justificar o ataque preventivo e ilegal, a questão do programa nuclear iraniano não passa de embuste, biombo e pretexto. Em que pese toda utopia pacifista, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) visa ao congelamento do status quo do mais poderoso instrumento dissuasório já inventado. A propósito, o Irã é signatário do TNP, diferentemente de Israel, que inclusive tem bomba atômica. O fato de Israel ser o único Estado nuclearmente armado da região é um dos componentes da instabilidade, que, como observou o teórico realista estadunidense Kenneth Waltz em 2012, poderia ser mitigada justamente com a nuclearização do Irã.
O embuste de impedir que Teerã desenvolva tecnologia atômica militar é também um pretexto para o cerco e o ataque ao Irã, servindo de biombo para a realização de diversos objetivos. O mais comezinho é o de manter Benjamin Netanyahu no poder a partir de mais um inimigo externo. O mais nefasto é diminuir a pressão internacional contra o genocídio e a limpeza étnica que o regime sionista promove em Gaza, que em menos de dois anos já ceifou o equivalente à terça parte das mortes afegãs nos 20 anos de ocupação estadunidense. Não custa lembrar que às vésperas do ataque ao Irã, houve marchas pró-Palestina em todo o mundo.
Impedir que Teerã se capacite a construir bombas atômicas atende também ao interesse sionista de longo prazo de construir a “Grande Israel”. Para União Europeia, ele reduz o custo do apoio ao regime genocida de Tel Aviv. Para os Estados Unidos, enfraquece o último ponto de resistência regional ao imperialismo.
Apesar de Israel vir há anos anunciando que pretendia atacar o Irã, havia certa dúvida se e quando isso se realizaria. Mas, de fato, o ataque veio e surpreendeu pelos alvos escolhidos e pela demonstração do nível de infiltração da inteligência israelense. Na madrugada do dia 12, o regime sionista desfechou uma ofensiva contra várias instalações militares e nucleares e vitimou diversos cientistas da área nuclear e os chefes do Exército e da Guarda Revolucionária.
Verdade seja dita, a desenvoltura e a liberdade com que o Mossad se movimenta no Irã é algo impressionante. Seja a informação obtida por agentes em campo, por ativos ou por meio digital-informacional, o fato é que Tel Aviv tinha – e parece ainda ter – a localização exata e em tempo real de grande quantidade de elementos das cúpulas política, militar e científica de Teerã.
Não obstante, a resposta iraniana também surpreendeu pela prontidão, intensidade, precisão e constância. Em abril e outubro do ano passado, sempre por iniciativa do regime sionista, Tel Aviv e Teerã tiveram seus primeiros enfrentamentos diretos. Porém, as repostas iranianas foram protocolares, coreografadas e telegrafadas. Estava claro que o Teerã precisava calibrar a força: não podia passar a imagem de docilidade, tampouco ambicionava escalar o conflito. Dessa vez, não.
O contra-ataque veio na forma de uma barragem de mísseis e drones com intensidade tal que rompeu as anunciadas tão poderosas defesas antiaéreas israelenses.
Obviamente, Israel tem vantagem. Não propriamente material, porque inclusive o Irã possui superioridade numérica em alguns quesitos. A principal vantagem sionista está no leque de apoios. Além de o Ocidente e a Jordânia estarem contribuindo para a defesa antiaérea, Washington tem franqueado o espaço aéreo iraquiano às aeronaves do regime sionista, apesar do protesto de Bagdá.
Apesar disso, o Irã conseguiu bombardear todas as principais cidades israelenses. Entre os alvos estratégicos ou simbólicos atingidos, estão o QG do Mossad, a bolsa de valores e um centro de tecnologia militar.

A sede da Radiotelevisão da República Islâmica do Irã (IRIB), em Teerã, incendiada após um ataque israelense
Muhammad Burnu/Wikimedia Commons
Acostumados a lutar contra inimigos bem mais fracos, ao finalmente confrontar-se com um oponente a altura, o regime sionista e a população que o apoia passaram recibo. O governo deixou transparecer suas vulnerabilidades militares não só pelo fato de que dezenas de mísseis atingiram seus alvos, como também pelo desespero com que clamou pela entrada dos Estados Unidos. A população, que sempre se regozijou da desgraça a que seu governo vem submetendo palestinos, sírios e libaneses, combinou a corrida aos bunkers e postagem de vídeos lamuriosos.
Não obstante, sabe-se que ambos os lados estão engajados no controle da narrativa. Se a primeira vítima de uma guerra é a verdade, com o uso de imagens geradas por IA, fica muito difícil saber o que realmente está acontecendo. Porém, algumas coisas são seguras de dizer. Obviamente, o Irã tem sofrido grandes perdas. No entanto, o apelo de Tel Aviv para que seus nacionais não postem vídeos com os mísseis que vencem as baterias antiaéreas e dos destroços dos prédios é sintomático de que Israel está diante de um desafio ao qual subestimou. Adicionalmente, quando a mídia ocidental, cúmplice do sionismo, divulga que um destroier britânico que auxiliava no endereçamento do ataque israelense foi desviado da costa iraniana, temos que dar credibilidade à informação.
Para além da evolução e dos seus desdobramentos da guerra contra o Irã, sob uma perspectiva histórica, o contexto em que o conflito ocorre possui paralelo com os anos finais do entreguerras. Por mais catastrófica que tenha sido a Primeira Guerra, ela não foi capaz de resolver a crise de hegemonia. O Reino Unido não possuía forças para retomar seu poder. Os Estados Unidos abdicaram de assumir as rédeas. A Alemanha foi humilhada demais para aceitar a nova ordem, mas tinha poder demais para se dobrar. Itália e Japão, duas potências em ascensão não tinham qualquer apreço pela ordem vigente.
Costuma-se dizer que o fato de a Liga das Nação ser desprovida de dentes – mecanismos de força capazes de coagir Estados com comportamento inadequado – contribuiu decisivamente para o tensionamento que desaguou na Segunda Guerra. Bem, o Conselho de Segurança são os dentes da ONU, e isso não tem sido capaz de dissipar a sensação que caminhamos para um desastre. De qualquer forma, o comportamento pusilânime da sociedade internacional frente as agressões promovidas pela Itália – que invadiu a Etiópia (1935) – e pelo Japão – que invadiu a Manchúria (1932), todo o norte da China (1935), Beijing (1937) e Xangai (1937) – muito contribuiu para a eclosão da Segunda Guerra.
Todavia, sem dúvida, o mais decisivo foi o comportamento em relação à Alemanha nazista. E nada exprime melhor isso do que a Conferência de Munique (set.1938), quando, num misto de apaziguamento e capitulação, Londres e Paris autorizaram que Berlim se apropriasse dos Sudetos (Tchecoslováquia). Seis meses depois, os nazistas anexaram toda a Tchecoslováquia. Seis meses depois, foi a vez de a Polônia ser o alvo da expansão. O resto é história.
Se, por um lado, é importante apontar que a cumplicidade de alguns dos atores mais poderosos do sistema interestatal lembra muito os movimentos que antecederam a Segunda Guerra, por outro é importante pôr em relevo o que distingue o agora do outrora.
Entre 15 e 17 de junho, ocorreu em Kananaskis (Canadá) a cúpula do G7, que foi bem pior do que Munique. Se na Conferência de Munique o comportamento ficou entre o apaziguamento e a capitulação, a Cúpula do G7 incentivou a agressão e o desrespeito à ordem internacional. Sua declaração final afirma que Israel tem o direito de defender. Como foi Tel Aviv que começou o ataque, nem a uma meia verdade isso se presta. Se fosse só isso, já seria ruim, mas o Ocidente nunca decepciona: Friedrich Merz, o chanceler alemão, agradeceu o “trabalho sujo” que Israel está fazendo em nome do Ocidente.
Há ainda outra diferença fundamental entre os anos 1930 e hoje. No passado, a instabilidade era promovida por Estados desafiantes. Hoje, o promotor do genocídio e das agressões é um preposto do hegemon e do Ocidente. Historicamente, a potência hegemônica buscava garantir a estabilidade da ordem internacional. Entretanto, já faz tempo que uma das particularidades da hegemonia estadunidense é usar a desestabilização da ordem como ferramenta de poder; já faz tempo que Washington é a principal violadora do direito internacional.
Os Estados Unidos expandiram a Otan de forma a cercar a Rússia, erodindo qualquer ponte ou base de confiança que Moscou pudesse ter em relação ao Ocidente. Nunca é demais lembrar que tal movimento foi seguido por presidentes de ambos os partidos e a despeito de uma constelação de analistas estadunidenses terem suplicado em contrário. Os Estados Unidos alimentam as provocações de Taiwan. Promoveram, mundo afora, revoluções coloridas que resultaram em golpes, guerras civis, instabilidade e fortalecimento da extrema direita. Atacaram o Iraque usando como desculpa a farsa de que o país possuía armas de destruição em massa. A partir da doutrina de responsabilidade de proteger, transformaram o Estado líbio em licença poética.
No caso em tela, ainda que quem tenha promovido a agressão tenha sido Tel Aviv, a cumplicidade de Washington é dada como certa. Ao bombardear o Irã este fim de semana e defender uma mudança de regime no país, os Estados Unidos tornaram irrelevante o fato de terem ou não participado dos atos de 12 de junho.
Adicionalmente, o Irã e o contexto em que se dá o conflito prometem ser um desafio em outra ordem de grandeza se comparados às últimas desventuras em que o Ocidente se envolveu. Em 2000, a população do Afeganistão era de 20,1 milhões. Os 20 anos de ocupação do Afeganistão não passariam de um interregno entre os governos talibãs não fosse o ágio de 180 mil vidas afegãs. Em 2002, a população do Iraque era de 26 milhões. Os 10 anos de ocupação no Iraque, além do ágio de 100 mil vidas iraquianas, resultaram no Estado Islâmico.
O Irã possui uma população de mais 90 milhões de habitantes. Seu território é quase quatro vezes o iraquiano e duas vezes e meia o afegão. Seu relevo é muito mais complexo que a o iraquiano, o que significa que maior dificuldade de deslocamento de tropas. É um país muito mais rico. As forças armadas iranianas são bem mais equipadas e treinadas.
Não obstante, é o contexto geopolítico que torna o envolvimento direito e aberto dos Estados Unidos não uma aventura, mas uma insanidade. Em Cabul e Bagdá, havia governos párias, totalmente isolados. Teerã não apenas é aliada de Beijing e Moscou, como a China e Rússia de hoje são bem diferentes daquelas do começo do século.
Além de condenar a agressão israelense, Beijing e Moscou têm feito gestos que demonstram que também têm disposição de apoiar Teerã. Dois aviões cargueiros chineses chegaram ao Irã logo após o início dos conflitos. Há duzentos cientistas nucleares russos trabalhando no país persa. Adicionalmente, a Rússia já declarou que se dispôs a prestar ajudar aérea ao Irã.
A despeito das promessas de campanha de não se envolver em novas guerras, de o apoio à Israel ser minoritário mesmo entre seus eleitores, Donald Trump decidiu pelo envolvimento estadunidense. Mais uma vez, a disputa foi vencida pelos lobbies sionista e armamentista e pelos evangélicos fundamentalistas. Se os dois primeiros grupos possuem dinheiro, os fundamentalistas, combinando sionismo-cristão e uma visão escatológica de que o mundo tem que piorar muito para preparar terreno para uma segunda vinda de Jesus Cristo, mobilizam expressiva parcela do eleitorado.
Porém, independentemente de como a conjuntura evolua nos próximos dias e semanas, esse já é um desses raros eventos em que podemos perceber com nitidez que um capítulo importante da história está sendo escrito. Nada nos levará para o mundo pré-12 de junho. O mundo em que Israel não atacou o Irã e em que o Irã não respondeu a altura já não existe. E, do ponto de vista histórico, pouco importa se o conflito escalar ou arrefecer: o mundo dos próximos anos será, em grande parte, consequência de como o conflito vai evoluir. De qualquer forma, como poucas vezes em nossas vidas, estamos vendo a história sendo construída.
(*) Mateus Mendes é geógrafo, mestre em ciência política e autor dos livros “Guerra Híbrida e Neogolpismo” e “É a Ideologia, Estúpido!”