Há 77 anos, em 9 de dezembro de 1947, soldados holandeses massacravam a população civil da aldeia de Rawagede, na Indonésia.
O Massacre de Rawagede foi uma das inúmeras atrocidades cometidas pelas tropas coloniais holandesas durante a Guerra de Independência da Indonésia.
A chacina deixou mais de 400 mortos, incluindo crianças e adolescentes, e somente foi reconhecida pelo governo da Holanda em 2011.
Alvo da cobiça europeia desde o início das Grandes Navegações, a Indonésia foi progressivamente submetida ao domínio do Império Colonial Holandês a partir do século 16.
Colônia holandesa
A princípio administrada pela Companhia Holandesa das Índias Orientais, a colônia foi incorporada ao patrimônio da coroa holandesa no início do século 19, com o nome de “Índias Orientais Holandesas” — a mais lucrativa das colônias dos Países Baixos, rica em especiarias, café, açúcar, tabaco e anil.
No entanto, as riquezas da Indonésia beneficiavam apenas a metrópole europeia, enquanto a população local era submetida à miséria, escravidão e exploração implacável.
Após dois séculos usufruindo do comércio de escravizados no arquipélago, a coroa holandesa submeteu a população nativa ao “sistema de culturas” (“cultuurstelsel”), que confiscou terras e instituiu o trabalho compulsório nas lavouras.
Reagindo à exploração da metrópole, os indonésios começaram a se rebelar. Uma série de insurreições nativistas eclodiram no arquipélago ainda no século 19 — tais como a Guerra de Java, a Revolta de Pattimura e a Guerra de Achém — mas todas foram violentamente esmagadas pelos holandeses.
Porém, a ausência de uma identidade nacional ligando os vários sultanatos, reinos e grupos étnicos que compunham o arquipélago da Indonésia impedia a criação de um movimento autonomista unificado e verdadeiramente popular.
Movimentos independentistas da Indonésia
O quadro começou a se alterar no fim do século 19, quando intelectuais e líderes políticos se uniram em torno do “Despertar Nacional Indonésio” — movimento que se opunha à exploração econômica e à administração colonial, encorajando o surgimento de um movimento nacionalista unificado.
A partir de então, surgiram os primeiros partidos políticos e movimentos independentistas do arquipélago, tais como o Budi Utomo (1908), Sarekat Islam (1911) e Partido Comunista da Indonésia (1920).
Entre os mais destacados líderes do movimento independentista estava Sukarno, fundador do Partido Nacional Indonésio.
O governo holandês reprimiu brutalmente os movimentos independentistas ao longo dos anos 20 e 30. A eclosão da Segunda Guerra Mundial, no entanto, daria fôlego renovado à luta de libertação nacional.
Em maio de 1940, a Alemanha nazista invadiu a Holanda — enfraquecendo o domínio do país sobre suas possessões coloniais.
Dois anos depois, as forças do Japão ocuparam a Indonésia.
Visando obter apoio da população local, os japoneses apoiaram o movimento independentista indonésio e firmaram uma aliança com Sukarno, que, em contrapartida, se comprometeu a apoiar o esforço de guerra japonês.
Em março de 1945, os japoneses criaram um comitê de transição para a independência da Indonésia.
Cinco meses depois, entretanto, o Japão anunciaria sua rendição — levando os indonésios a anteciparem o processo emancipacionista.
Em 9 de agosto de 1945, Sukarno e Mohammad Hatta proclamaram unilateralmente a independência da Indonésia. No dia seguinte, o Comitê Nacional Central nomeou Sukarno como presidente e Hatta como vice.
Independência da Indonésia
A declaração de independência não foi reconhecida pelos holandeses, que seguiram reivindicando a posse da Indonésia.
Entretanto, a Holanda ainda estava enfraquecida em função da prolongada ocupação alemã, não tendo condições de iniciar uma ofensiva militar imediata.
Com a rendição das tropas japonesas, criou-se um vácuo na gestão administrativa do país, possibilitando que o movimento independentista expandisse as áreas sob seu comando direto.
Cientes de que era uma questão de tempo para que os holandeses tentassem retomar o controle do país, os nacionalistas indonésios organizaram milícias e comitês de luta e criaram seu próprio Exército Nacional — o TNI.
Manifestações de apoio à independência eclodiram por todo o arquipélago e o ímpeto revolucionário inflamou os ânimos da população.
O ressentimento e o desejo de vingança contra os colonizadores levaram populares e grupos paramilitares a se engajarem em uma série de ataques contra estrangeiros, durante o período chamado de “Bersiap”.
O Reino Unido apoiou a tentativa holandesa de manter a Indonésia como uma colônia. Ainda em 1945, os britânicos enviaram soldados para “restaurar a ordem” e o “governo civil” no arquipélago.
As milícias nacionalistas resistiram ao avanço britânico, resultando em uma série de embates violentos, incluindo as batalhas de Ambarawa e Surabaya.
Recompostas, as tropas holandesas começaram a desembarcar na Indonésia a partir de 1946. Mais de 200 mil soldados holandeses foram despachados para tentar retomar o controle do arquipélago.
Numerosas, bem equipadas e apoiadas pelos britânicos, as forças holandesas logo conseguiram avançar nas grandes cidades, mas encontraram uma resistência aguerrida no campo.
Entre julho e agosto de 1947, o Exército holandês conduziu a “Operação Produto” — uma grande campanha militar que visava retomar o controle integral do território indonésio, mobilizando uma enorme frota de contratorpedeiros, corvetas, navios patrulha e navios de desembarque.
Usando táticas de guerrilha e lutando com armas improvisadas, como lanças feitas com bambus e fuzis tomados das tropas japonesas, os combatentes indonésios conseguiram resistir às sucessivas ofensivas das forças holandesas.
Paralelamente, uma importante mobilização civil tomava os grandes centros urbanos, ao passo que o governo provisório da Indonésia conduzia uma bem sucedida campanha em busca de apoio diplomático internacional.
Durante o conflito, inúmeras atrocidades e crimes de guerra foram cometidos pelas forças holandesas, incluindo torturas, execuções sumárias, chacinas, bombardeios contra civis, deslocamentos forçados e violência sexual.
Os crimes cometidos pelas tropas holandesas foram denunciados por países como União Soviética e Índia — e até nações como Austrália e Estados Unidos passaram a pressionar o governo holandês a encerrar as hostilidades.
Lukas Kustaryo
Em agosto de 1947, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução exigindo um cessar-fogo. O órgão também aprovou a criação de um Comitê de Bons Ofícios, destinado a mediar o conflito.
Quatro meses mais tarde, em 8 de dezembro de 1947, tiveram início as negociações para a futura assinatura do Acordo de Renville.
A pressão internacional não bastou para que tropas holandesas arrefecessem a repressão contra os nacionalistas. Mesmo após a determinação de cessar-fogo pela ONU, o banho de sangue continuou.
Na província de Java Ocidental, o Exército Real da Holanda lançou uma grande campanha para eliminar os guerrilheiros e combatentes do TNI.
O alvo principal dos holandeses era Lukas Kustaryo, o célebre comandante da Companhia Siliwangi.
Um dos principais líderes da resistência indonésia, Kustaryo se destacava pelo tirocínio e capacidade estratégica. Ele havia comandando uma série de ataques bem sucedidos contra postos e alvos militares holandeses, além de ter conduzido operações de sabotagem e infligido inúmeras baixas às tropas coloniais.
A gota d’água, entretanto, ocorreu quando Kustaryo sequestrou um trem cheio de armas e munições enviadas para abastecer as tropas holandesas em Jacarta.
Kustaryo se tornou o homem mais procurado pelos holandeses na Indonésia. Quando foram informados de que o líder nacionalista estaria escondido no vilarejo de Rawagede, os oficiais imediatamente ordenaram que a Primeira Divisão do Exército Real da Holanda fosse procurá-lo na aldeia.
Massacre de Rawagede
Em 9 de dezembro de 1947, um grupo com mais de 100 soldados liderado pelo major Alphons Wijnen cercou a aldeia de Rawagede.
Os militares revistaram todas as casas do vilarejo, mas não encontraram nem Kustaryo nem outros combatentes das forças nacionalistas.
Na verdade, os holandeses não encontraram sequer armas de fogo durante as buscas, evidenciando que não havia guerrilheiros se escondendo no vilarejo.
Os soldados holandeses obrigaram todos os civis a deixarem suas casas e se reunirem numa área central da aldeia.
Todos os habitantes do sexo masculino foram obrigados a formar filas, sendo então submetidos a violentos interrogatórios, onde eram questionados sobre os paradeiros dos rebeldes. Nenhum dos moradores do vilarejo, no entanto, soube responder.
Tomado de ódio e frustrado pela falta de respostas, o comandante das tropas holandesas ordenou que todos os homens do vilarejo fossem executados.
Equipados com metralhadoras, os soldados abriram fogo contra os civis, perpetrando um dos maiores banhos de sangue ocorridos durante a Guerra de Independência Indonésia.
Ao menos 431 pessoas morreram no Massacre de Rawagede, incluindo crianças e adolescentes. Alguns historiadores afirmam que o número efetivo de vítimas pode ser maior, já que muitos corpos foram jogados em rios sem serem registrados nas contagens oficiais.
Os indonésios denunciaram o massacre às autoridades internacionais, mas nada foi feito.
O Comitê de Bons Ofícios da ONU limitou-se a dizer que o massacre cometido pelas forças holandesas fora “deliberado e implacável” — recusando-se, no entanto, a classificá-lo como crime de guerra.
E embora Simon Hendrik Spoor, o comandante do exército holandês, tenha recomendado a responsabilização do major que comandou a matança, o governo holandês recusou-se a tomar qualquer providência.
A Guerra de Independência da Indonésia se prolongou por quatro anos. Em dezembro de 1949, diante do custo prolongado da guerra, da contínua resistência da população nativa e da crescente pressão internacional, o governo holandês se viu obrigado a reconhecer a independência de sua antiga colônia.
Estima-se que mais de 100 mil indonésios morreram durante a luta pela emancipação do país.
Diante das reiteradas denúncias de crimes de guerra, o parlamento holandês determinou a criação de uma comissão para analisar a conduta de suas forças armadas durante a Guerra de Independência da Indonésia.
A investigação apontou ao menos 140 violações de direitos humanos cometidas pelos militares holandeses, mas o relatório final apontou que o exército da Holanda havia “se comportado adequadamente” e nenhum inquérito foi aberto.
O governo da Holanda somente reconheceu a existência do Massacre de Rawagede em dezembro de 2011, após uma decisão da justiça holandesa que ordenou o pagamento de indenizações a um grupo de familiares das vítimas da matança.
Em 2022, o primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte, pediu desculpas formais à Indonésia pelas atrocidades cometidas pelos soldados holandeses durante a guerra de libertação.