Há 189 anos, em 20 de setembro de 1835, irrompia na Região Sul do Brasil a Guerra dos Farrapos (ou Revolução Farroupilha), um dos maiores conflitos civis registrados no período imperial. A guerra foi motivada pelo descontentamento das oligarquias gaúchas com o regime tributário mantido pelo império brasileiro. O conflito se estendeu por uma década, assumindo o caráter de movimento separatista, resultando na proclamação da República Rio-Grandense e da República Juliana.
Visando ampliar o exército rebelde, os líderes farroupilhas passaram a recrutar negros escravizados com a promessa de libertação ao término do conflito. Os Lanceiros Negros chegaram a responder por mais de um terço das tropas rebeldes — mas foram traídos pelos comandantes rio-grandenses e entregues às forças legalistas para serem dizimados durante o Massacre de Porongos.
Em contraste com as demais províncias brasileiras, cujas economias eram centradas na produção de gêneros primários para exportação, o Rio Grande do Sul (então chamado província de São Pedro do Rio Grande) era marcado pela forte dependência do mercado interno, produzindo charque e couro para alimentar os escravos ativos nas minas e plantações de cana-de-açúcar e de café do Sudeste. Não obstante, os impostos territoriais, o câmbio supervalorizado e os benefícios tarifários concedidos pelo Império do Brasil permitiam a importação do charque oriundo do Uruguai e da Argentina a custos mais baixos.
Preteridos em favor da concorrência externa, os produtores rio-grandenses passaram a reivindicar um novo regime tributário e a adoção de um modelo de governo federalista, que desse mais autonomia para as províncias. Iniciou-se a formação de um movimento político-militar inspirado pelas ações da Carbonária — sociedade secreta de cariz liberal e anticlerical, que atuou na Europa e na América do Sul entre os séculos XIX e XX.
Apoiado pelos grandes proprietários rurais, maçons, políticos liberais e o alto oficialato militar, Bento Gonçalves, um coronel de milícias, veterano das campanhas da Cisplatina, assumiu a liderança do movimento. A difusão das ideias republicanas, reforçada pela proximidade com as repúblicas platinas vizinhas, e a militarização da sociedade rio-grandense — característica herdada das disputas pela Colônia do Sacramento — favoreceram a adesão popular à revolta. Além disso, havia um forte descontentamento com o governo de Fernandes Braga, o presidente da província que havia sido nomeado pelo Regente Feijó, mas que nunca obteve aceitação dos locais.
O levante teve início em 20 de setembro de 1835, quando um grupo de combatentes armados tomou a capital gaúcha, Porto Alegre, derrotando em seguida as tropas imperiais enviadas para sufocar a revolta. O movimento se espalhou rapidamente pelo interior do Rio Grande do Sul. Encurralado, Fernandes Braga fugiu de Porto Alegre, refugiando-se em Rio Grande e partindo em seguida para o Rio de Janeiro.
Embora existissem alguns abolicionistas integrados ao levante, os líderes do movimento eram partidários da manutenção da escravidão. Entretanto, visando angariar reforços para o exército rebelde, os comandantes rio-grandenses passaram a cooptar o apoio dos negros escravizados, ludibriando-os com a promessa de que seriam libertados caso aceitassem lutar contra as tropas imperiais.
Quase 10 mil cativos responderam ao chamado, dando origem aos corpos dos Lanceiros Negros, que conformavam um terço do efetivo dos rebeldes. Destacaram-se como excelentes combatentes de cavalaria e guerreiros obstinados, sendo em grande parte responsáveis pela longa duração do conflito. Os revoltosos eram pejorativamente chamados de “farrapos” ou “farroupilhas”, em alusão aos trajes maltrapilhos que vestiam.
Respondendo ao levante, o Regente Feijó nomeou José de Araújo Ribeiro como novo presidente do Rio Grande do Sul e despachou tropas imperiais e o aparato de guerra para a província. As forças imperiais conseguiram retomar o controle de Porto Alegre, comprometendo o avanço dos rebeldes. O novo presidente rio-grandense convenceu Bento Ribeiro, comandante de armas da província, a abandonar o apoio a Bento Gonçalves. Por sua vez, a população camponesa do leste do Rio Grande do Sul também permaneceu arredia ao levante, fornecendo as bases para a reação imperial.
As tropas do Império conseguiram prender várias lideranças farroupilhas, incluindo Bento Gonçalves, aprisionado durante a Batalha do Pampa e enviado para a prisão do Forte do Mar, na Bahia, de onde conseguiria fugir. Os rebeldes, entretanto, seguiram rejeitando a legitimidade do governo imperial. Em 6 de novembro de 1836, o general Antônio de Sousa Neto proclamou a República Rio-Grandense, sendo eleito Bento Gonçalves como presidente. O separatismo consolidava-se assim como um instrumento visto como inevitável para a sustentação da causa rebelde.
As tropas rebeldes conseguiram obter avanços significativos até o fim da década de 1830, tomando a cidade de Rio Pardo (Queda da “Tranqueira Invicta”) e reforçando o domínio sobre amplas faixas do território rio-grandense. Também lograram neutralizar temporariamente a armada do império, com a criação da marinha farroupilha, fundamental para a expansão do conflito para além das divisas da província.
A partir de 1838, as tropas farroupilhas estenderam a guerra até o planalto catarinense, mas foram derrotados na Batalha de Lages. Com apoio do revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi e sua esposa, Anita Garibaldi, o general David Canabarro chefiou uma bem sucedida expedição até Laguna, onde fundou a efêmera República Juliana.
A reação imperial tornou-se mais vigorosa a partir de 1840, impondo sucessivas derrotas aos farroupilhas. As tropas rebeldes sofreram uma derrota definitiva em Porto Alegre — cidade que tentavam dominar há três anos — e foram forçadas ao recuo. As forças imperiais também impuseram seu domínio sobre áreas estratégicas da bacia hidrográfica, obtendo o controle do transporte fluvial. Conseguiram, dessa forma, interromper o fluxo de munições e suprimentos, esgotando as reservas dos rebeldes.
Os farroupilhas foram continuamente subjugados pelos bloqueios impostos pela armada imperial, pelo estrangulamento econômico da província e pelo reforço das tropas legalistas, com chegada de novos contingentes de soldados vindos de São Paulo e Bahia. O declínio das forças revoltosas se intensificou durante as reuniões da Assembleia Constituinte, quando afloraram graves divergências entre os líderes das facções farroupilhas.
Em setembro de 1842, Luís Alves de Lima e Silva, então Barão e futuro Duque de Caxias, foi nomeado presidente da província e comandante das forças imperiais. Duque de Caxias empregou uma força de 12 mil homens para subjugar o sistema de guerrilha dos farrapos e intensificou o bloqueio econômico da província ao longo dos dois anos seguintes.
Já cientes da impossibilidade de vitória, os líderes farroupilhas passaram a negociar um armistício com o governo imperial. Restava, entretanto, a questão da alforria que havia sido prometida aos Lanceiros Negros. Nem o Império do Brasil nem os líderes farroupilhas tinham a intenção de libertar os combatentes negros. Ao mesmo tempo, as lideranças imperiais e republicanas temiam que os Lanceiros Negros não aceitassem o retorno à condição de escravos, incitando rebeliões entre os cativos. Para resolver o impasse, as autoridades farroupilhas acordaram uma solução tétrica com o império, entregando os Lanceiros Negros à morte.
Em 14 de novembro de 1844, ocorreu o chamado Massacre de Porongos, quando as tropas do Duque de Caxias invadiram o pouso das forças rebeldes, estacionadas nos arredores da cidade de Pinheiro Machado. As tropas imperiais atacaram somente o acampamento ocupado pelos ex-cativos, dizimando os Lanceiros Negros, mas permitindo que os demais combatentes fugissem. David Canabarro havia deixado o acampamento poucas horas antes da invasão. Os demais comandantes farroupilhas ordenaram às suas tropas que não interviessem em favor dos lanceiros.
Embora siga até hoje sendo contestada por entusiastas da tradição gaúcha, a traição de Porongos é confirmada por uma carta enviada pelo Duque de Caixas ao coronel Francisco Pedro de Abreu, contendo instruções para o ataque contra os Lanceiros Negros. A autenticidade do documento foi confirmada pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
A Guerra dos Farrapos chegou ao fim poucos meses após o Massacre de Porongos, com a assinatura do Tratado de Poncho Verde, firmado em 1º de março de 1845, já sob o governo de Dom Pedro II. O tratado extinguiu o governo republicano, concedeu anistia aos revoltosos e deu aos líderes farroupilhas a prerrogativa de escolher o novo presidente da província do Rio Grande do Sul.
Embora tenham sido formalmente derrotadas no conflito, as oligarquias locais converteram a Guerra dos Farrapos em um elemento de coesão da identidade gaúcha, instrumentalizada em favor da construção da imagem dos habitantes do estado como um povo heroico, altivo e independente. Essa imagem segue sendo cultuada até os dias de hoje e é efusivamente comemorada a cada aniversário do conflito — convertido em “Dia do Gaúcho”, feriado estadual marcado por desfiles, paradas militares e festividades ufanistas.
É o ápice da chamada “Semana Farroupilha”, evento organizado anualmente em todo o Rio Grande do Sul pelos Centros de Tradição Gaúcha, onde são exaltados os arquétipos gauchescos, com representações bastante seletivas dos costumes e da cultura gaúcha — quase sempre importando a iconografia dos gaúchos oitocentistas dos Pampas platinos e enaltecendo a cultura dos imigrantes europeus. As celebrações reforçam as narrativas historiográficas romantizadas, que apagaram a existência dos Lanceiros Negros da história e escamotearam o seu trágico fim, visando revestir a Guerra dos Farrapos de uma glória que nunca existiu.