Comemora-se hoje, 27 de setembro, o Dia de São Cosme e Damião, mártires católicos venerados como santos padroeiros dos médicos e dos farmacêuticos e protetores das crianças. O culto aos santos remonta ao século V, mas sua origem é possivelmente pré-cristã, derivada do mito greco-romano dos irmãos Castor e Pólux. Nas religiões afro-brasileiras, Cosme e Damião foram sincretizados como Ibeji, orixá duplo protetor dos gêmeos no sistema de crenças iorubá.
Não há registros históricos coevos sobre a vida dos santos. Sabe-se apenas que eram cristãos que viveram na segunda metade do século III e que sofreram martírio na Síria durante a perseguição do imperador Diocleciano. Conforme a hagiografia, Cosme e Damião eram irmãos gêmeos de origem árabe, introduzidos na fé cristã por sua mãe, Teodata, também venerada como santa pelos ortodoxos. O pai teria sido morto como punição pela conversão ao cristianismo.
Cosme e Damião estudaram ciências médicas na Síria e desde então começaram a atender e curar pessoas enfermas e animais feridos, sem cobrar pelos serviços. Sempre segundo a hagiografia, os gêmeos não apenas administravam terapias, mas também teriam propiciado curas milagrosas por meio de orações. Saladino d’Ascoli, médico italiano do século XV, atribuiu a Cosme e Damião a invenção do eletuário medieval, ou opopira — medicamento pastoso produzido por meio da mistura de ervas, mel e açúcar, usado para tratar várias condições médicas, incluindo paralisia.
Os atendimentos prestados por Cosme e Damião serviram à difusão da fé cristã, uma vez que os pacientes curados costumavam se converter ao cristianismo e passavam a angariar novos seguidores. Esse teria sido o motivo pelo qual os irmãos se tornaram alvos da perseguição do Império Romano. Presos por ordem de Lísias, prefeito de Cilícia, Cosme e Damião foram acusados de praticar magia e atentar contra a religião romana.
Os irmãos se recusaram a renegar a fé cristã, sendo então condenados à morte por apedrejamento e flechadas. Conforme a tradição cristã, os gêmeos sobreviveram à execução. Em seguida, teriam sido levados à fogueira, da qual foram novamente salvos pela intercessão divina. Uma nova tentativa de matá-los afogados teria falhado pela intervenção de um anjo. Os irmãos finalmente morreram decapitados na quarta tentativa de execução. Segundo a Igreja Católica, o martírio dos santos teria ocorrido no dia 27 de setembro do ano 303.
A historiografia registra o início do culto a São Cosme e Damião nos países mediterrâneos já século V, quando se popularizou o uso de um óleo atribuído aos gêmeos, alegadamente capaz de curar doenças e devolver a fertilidade a mulheres estéreis. Posteriormente, emergiram uma série de supostos milagres e relatos fantásticos vinculados às relíquias dos santos.
Justiniano I chegou a atribuir à intercessão de Cosme e Damião a cura de uma doença grave. Em retribuição, mandou restaurar a cidade de Ciro, na Síria, onde se encontravam depositados os restos mortais dos mártires. Ordenou igualmente a reconstrução do templo dedicado aos gêmeos em Constantinopla. O Papa Félix IV ergueu uma igreja para os irmãos em Roma e as confrarias médicas medievais progressivamente passaram a adorá-los como patronos.
Não obstante, a construção hagiográfica das figuras de Cosme e Damião é fundamentada nas práticas cristãs de assimilação das antigas tradições pagãs. O arquétipo dos gêmeos divinos é um dos mitos mais difundidos, estando presente em diversas culturas da Antiguidade, frequentemente imbuídos de significados místicos referentes à dualidade e aos princípios opostos e complementares. Os egípcios cultuavam Shu e Tefnu, os babilônicos veneravam Lugalgirra e Meslamtaea e os nórdicos tinham Frey e Freia como personagens centrais de sua mitologia.
Existem diversos elementos em comum entre a história de Cosme e Damião e o mito dos Dióscuros — nome atribuído aos gêmeos Castor e Pólux, personagens da mitologia greco-romana. Segundo a lenda, os gêmeos eram filhos de Leda, porém tinham pais diferentes: Pólux era filho de Zeus e Castor era filho de Tíndaro. Assim, Pólux, filho de um deus, era imortal, enquanto Castor, descendente de humanos, não. Quando Castor morreu, Pólux implorou a Zeus que permitisse a ambos partilharem a sua imortalidade. O deus atendeu ao pedido, transformando-os na constelação de Gêmeos.
O mito grego se assemelha a uma passagem da vida de Cosme e Damião inscrita no Antigo Martirológio Inglês — compilado de 230 hagiografias produzido no Reino da Mércia no século IX. Conforme o relato, Damião teria sido presenteado por uma senhora curada pelos irmãos de uma grave enfermidade. O santo a princípio recusou o presente, mas diante da súplica da paciente acabou por aceitá-lo. O gesto teria provocado a fúria de Cosme, que se negava a receber qualquer tipo de compensação por seus atendimentos.
Inconformado com a atitude de Damião, Cosme pediu para que não fosse sepultado junto de seu irmão após a morte. Na mesma noite, Deus teria admoestado o santo e explicado que o irmão recebera o presente por ter sido ofertado em seu nome. Quando os gêmeos foram martirizados, seus seguidores estavam indecisos sobre como sepultá-los, mas seguiram a recomendação de um camelo falante, que os orientou a não separá-los. Outro indicativo da origem greco-romana da história dos gêmeos é o fato da igreja de Cosme e Damião em Roma ter sido construída no mesmo local onde se encontrava o antigo templo de Castor e Pólux.
No Brasil, o culto a Cosme e Damião iniciou-se já nos primórdios da colonização. Em 1535, Duarte Coelho, o donatário da Capitania de Pernambuco, ergueu uma igreja dedicada aos santos gêmeos na cidade de Igarassu.
Convertidos em padroeiros, Cosme e Damião levariam o crédito por proteger a cidade durante a grave epidemia de febre amarela que atingiu Pernambuco em 1685. Enquanto Olinda, Recife e Itamaracá foram assoladas, Igarassu escapou ilesa. O episódio foi tratado como milagre e contribuiu muito para a popularização do culto a Cosme e Damião durante o período colonial. Os templos e devotos se multiplicaram pelo Brasil, com os santos sendo constantemente invocados a debelar surtos epidêmicos
Após o influxo de africanos escravizados, iniciou-se o processo de sincretismo religioso do culto a Cosme e Damião — um fenômeno que reflete as estratégias de resistência dos africanos e afro-brasileiros à imposição da fé cristã. Como eram proibidos de manifestar suas crenças, os escravizados passaram a associar os santos cristãos às divindades cultuadas em suas próprias religiões, invocando seus deuses e entidades sob a denominação de mártires católicos que tinham características semelhantes. Assim, os irmãos Cosme e Damião, afamados como santos curandeiros, foram associados ao orixá duplo Ibeji — a divindade gêmea da vida, protetor dos gêmeos e das crianças na religião Iorubá.
Os gêmeos Ibeji são Taiwo e Kehinde e, assim como outras culturas antigas, representam o princípio da dualidade, com atributos opostos que coexistem e se complementam. O culto aos orixás gêmeos remonta, ao menos, ao século V. Eles são quase sempre representados como crianças ou adolescentes e representam valores como a pureza, a inocência e a bondade. A eles também era atribuída a capacidade de curar doenças e auxiliar mulheres inférteis. O povo iorubá tem o costume de ofertar comida às imagens dos gêmeos Ibeji para invocar sua intercessão e benevolência.
Em algumas tradições afro-brasileiras, os Ibejis/Cosme e Damião são considerados filhos de Xangô e Iansã e irmãos de Doum, Alaba, Crispim, Crispiano e Talabi. Na umbanda, Cosme e Damião são associados igualmente aos Erês — entidades que se manifestam sob forma infantil, incumbidas de intermediar o contato entre os orixás e os humanos.
O sincretismo de Cosme e Damião com as entidades oriundas das religiões de matriz africana contribuiu ainda mais para a difusão do culto aos santos gêmeos — transformando-os em um dos principais fenômenos do catolicismo popular, que se desenvolveu de forma autônoma, sem o direcionamento da igreja. A festa litúrgica de Cosme e Damião passou a dialogar diretamente com a Festa do Erê e com a Ibejada, transformando-se em uma das tradições mais populares no Brasil ainda no século XIX.
O costume de ofertar doces, balas e guloseimas, originário dos terreiros, logo foi incorporado às celebrações populares dos santos. O Dia de São Cosme e Damião tornou-se uma data festiva, de celebração da infância, de fortalecimento dos vínculos comunitários e de afirmação da cultura afro-brasileira como um dos elementos fundadores da identidade nacional.
Apesar da importância histórica, religiosa e sociocultural da data, o Brasil tem registrado nos últimos anos uma crescente rejeição aos festejos populares de São Cosme e Damião, fruto tanto do crescimento das igrejas neopentecostais — parte das quais demonizam a influência das religiões de matriz afro-brasileira — quanto do fortalecimento de setores reacionários da Igreja Católica — buscando suprimir as influências culturais que julgam perniciosas à liturgia.