Há 87 anos, em 21 de janeiro de 1938, o Exército brasileiro e as forças policiais dos estados de Pernambuco, Piauí e Bahia dizimavam o povoado de Pau de Colher, uma comunidade religiosa do sertão baiano, formada por sertanejos pobres, pregadores e seguidores de Padre Cícero.
O ataque foi motivado por boatos de que os moradores da comunidade eram fanáticos violentos que pretendiam implantar o comunismo — bem como pela percepção de que a estrutura organizacional do povoado era uma ameaça à ordem estabelecida.
Canudos e o “Messianismo Rústico”
Entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20, diferentes comunidades sociorreligiosas emergiram nos grotões do Brasil. A concentração fundiária privava a população rural do acesso à terra, relegando-a à miséria e à exploração nas mãos dos coronéis. No Sertão do Nordeste, o problema era agravado pelas secas e pela escassez da água, resultando em graves crises famélicas.
Buscando uma alternativa à ordem social vigente, os camponeses se viam atraídos por experiências comunitárias alternativas, calcadas em princípios mais igualitários.
Essas experiências eram frequentemente marcadas por um forte componente religioso, com elementos do “messianismo rústico” e influências do catolicismo popular. Os movimentos costumavam ser organizados e liderados por beatos, conselheiros e pregadores místicos, respeitados como profetas ou enviados divinos, que levavam esperança e a promessa de redenção aos sertanejos.
O maior e mais conhecido desses movimentos foi Canudos. Liderado por Antônio Conselheiro, Canudos se tornou um refúgio para milhares de pessoas que fugiam da miséria, da fome e da opressão. A comunidade desenvolveu uma organização própria, baseada na cooperação e na divisão comunal dos recursos.
O movimento logo começou a ser visto como uma ameaça pelos coronéis da região, que instaram o governo republicano a tomar medidas. Quatro expedições militares foram organizadas pelo Exército Brasileiro para reprimir Canudos. A última delas, ocorrida em 1897, resultou na destruição completa da cidade e no massacre de seus moradores.
O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto
Na década de 1920, outra importante comunidade religiosa foi estabelecida no interior do Ceará — o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Erguida em terras cedidas pelo Padre Cícero e dirigida pelo beato José Lourenço, a comunidade do Caldeirão chegou a abrigar milhares de pessoas. A exemplo de Canudos, o Caldeirão também funcionava sob um regime de cooperação e divisão igualitária dos recursos.
A notícia de que existia um “paraíso dos pobres”, sob a proteção de Padre Cícero, onde havia água, comida e moradia para todos, sem a exploração e o desmando dos patrões, levou muitos trabalhadores a abandonarem suas ocupações nas fazendas da região e rumarem para o Caldeirão — o que causou enorme incômodo nos latifundiários.
O Caldeirão se tornou um centro místico, ao qual se ligaram vários pregadores. Entre eles estava o conselheiro Severino Tavares, que recorria o Sertão fazendo preleções e arrebanhando discípulos. Severino alertava para o “fim das eras” e profetizava que uma “chuva de sangue” inundaria todo o Sertão. Os camponeses que quisessem a salvação, dizia Severino, deveriam fazer romarias até o Caldeirão, onde ocorreria o combate final ao Anticristo.
As pregações de Severino tiveram forte impacto sobre José Senhorinho, que passou a fazer constantes viagens ao Caldeirão. Senhorinho era um dos proprietários da Fazenda Pau de Colher, localizada nos arredores de Casa Nova, no norte da Bahia, já na divisa com os estados de Pernambuco e Piauí.
Quando Severino partiu, Senhorinho assumiu o manto de pregador e tornou-se líder da comunidade religiosa que começara a se formar na fazenda.
Pau de Colher e a chacina do Caldeirão
A comunidade de Pau de Colher se tornou uma espécie de extensão do Caldeirão — um local de preparação para as romarias e migrações. Seus moradores viviam em regime de comunhão, organizando mutirões para cumprir as tarefas e compartilhando tudo que produziam.
Tinham, entretanto, que obedecer a regras rígidas. Não podiam beber, fumar, comer carne ou manter relações sexuais. Vestiam-se sempre com roupas pretas, denotando luto pela morte de Padre Cícero. Os homens portavam porretes adornados com cruzes — motivo pelo qual eram chamados de “caceteiros”.
O arraial, a princípio destinado a abrigar fiéis e pregadores, cresceu aceleradamente com a chegada de sertanejos pobres e flagelados da seca. No auge, Pau de Colher chegou a reunir mais de 4.000 pessoas — população superior à da própria sede do município.

Grupo de sobreviventes do Massacre de Pau de Colher
Um novo fluxo de moradores chegaria ao povoado a partir de 1937 — e a causa não poderia ser mais lúgubre. Em 11 de maio daquele ano, uma operação do Exército brasileiro havia destruído o povoado do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto.
O ataque fora ordenado pelo governo de Getúlio Vargas, visando neutralizar a comunidade religiosa, então descrita como um núcleo de “subversão comunista”. Fuzilamentos em massa e bombardeios foram levados a cabo ao longo do dia. Centenas de pessoas foram mortas durante o ataque.
O “Fim das Eras”
A notícia sobre o Massacre do Caldeirão teve profundo impacto na comunidade de Pau de Colher. Para muitos, a “chuva de sangue” e “o fim das eras” profetizados pelo conselheiro Severino estavam se concretizando. A convivência no arraial se deteriorou e a comunidade logo estava fragmentada por disputas.
A situação se agravou ainda mais após a morte de Senhorinho, quando o beato Quinzeiro (apelido de Joaquim Bezerra) assumiu a liderança de Pau de Colher. Quinzeiro era um dos sobreviventes do Massacre do Caldeirão. Desprovido do carisma de seu antecessor, e dotado de uma personalidade mais tendente ao confronto, ele acabaria por aprofundar as divisões do movimento.
Os desentendimentos se tornaram corriqueiros e o uso da violência era cada vez mais recorrente. Alguns fiéis que tentaram deixar a comunidade foram mortos.
A comunidade, entretanto, enfrentava ameaças ainda mais sérias. Desde a destruição do Caldeirão, a atenção das autoridades se voltara ao povoado baiano. A elite rural pressionava o poder público a suprimir o povoado, receosa de que o modo de vida existente em Pau de Colher influenciasse a criação de outras experiências comunais, contestando o modelo de exploração dos latifúndios. As práticas religiosas do povoado também preocupavam os setores conservadores da Igreja Católica, incomodada com o que via como uma “degradação” de sua doutrina.
O povoado de Pau de Colher foi submetido a uma campanha de demonização movida pela imprensa. Espalhou-se o boato de que o povoado abrigava mais de 800 cangaceiros, que estavam se armando e preparando para iniciar uma onda de ataques às cidades vizinhas, visando tomar o poder na região e implantar o comunismo.
Matérias publicadas em veículos como o Diário de Pernambuco” e o jornal A Noite denunciavam os “extremistas” de Pau de Colher e insinuavam que o Partido Comunista estava por trás da comunidade.
O ataque das volantes
A notícia de que os membros do povoado teriam atacado uma fazenda no Piauí e assassinado 20 pessoas seria a gota d’água. No dia 10 de janeiro de 1938, um destacamento de policiais baianos realizou uma incursão na comunidade. Os moradores reagiram e o confronto deixou mortos de ambos os lados. Uma segunda volante, enviada pelo governo do Piauí, também foi forçada ao recuo pelos caceteiros.
Determinado a exterminar o povoado, o governo de Getúlio Vargas organizou uma grande ofensiva, mobilizando as tropas do Exército estacionadas em Salvador e Aracaju. A ação foi coordenada pelo tenente-coronel Maynard, comandante das forças militares no Vale do São Francisco.
A ofensiva seria reforçada por tropas dos governos estaduais. Coronel Dantas, interventor federal da Bahia, providenciou o envio de uma companhia de fuzileiros e de um esquadrão motorizado. O governo do Piauí enviou mais um destacamento de soldados. E Pernambuco encaminhou uma expedição chefiada pelo infame capitão Optato Gueiros, comandante das forças de combate ao cangaço.
O Massacre de Pau de Colher
Os soldados pernambucanos foram os primeiros a chegar ao arraial. Armados com metralhadoras, iniciaram o cerco à comunidade em 19 de janeiro. Em seguida, abriram fogo contra os habitantes de Pau de Colher, assassinando centenas de pessoas — todas desarmadas, incluindo um grande número de mulheres, idosos e crianças. Moradores que escaparam dos fuzilamentos e tentaram fugir foram perseguidos e degolados pelos soldados.
O cerco ao povoado se estendeu por três dias, chegando ao fim em 21 de janeiro de 1938. Não se sabe o número exato de vítimas do Massacre de Pau de Colher. O relatório oficial do capitão Optato informou 157 mortos pelas tropas pernambucanas e outros 40 pelos soldados piauienses.
O número efetivo de vítimas, entretanto, deve ser bem maior. Há relatos de mais de 400 pessoas foram sepultadas em valas coletivas nos arredores do povoado. Outros relatos apontam que cerca de mil pessoas foram assassinadas durante a ação.
A perseguição aos sobreviventes prosseguiu por alguns dias. O Exército despachou aeronaves para vasculhar toda a região em busca dos “fanáticos” que haviam fugido. As crianças que perderam os pais durante o massacre foram enviadas para Salvador e oferecidas às famílias ricas, para serem usadas no serviço doméstico.
A chacina foi celebrada pela imprensa e os soldados que conduziram o massacre foram recepcionados como heróis. Até mesmo um banquete em homenagem aos comandantes da operação foi oferecido pela prefeitura de Casa Nova.
Getúlio Vargas também elogiou a ação. O presidente enviou um telegrama ao coronel Dantas, parabenizando-o por eliminar a “ameaça” representada pelo povoado de Pau de Colher.