Há 3.183 anos, em 1.159 a.C., os trabalhadores do Templo de Set-Ma’at cruzavam os braços em protesto contra o atraso no pagamento de seus salários. O evento, relatado no chamado “Papiro de Turim”, é primeira greve registrada na história — e terminou com a vitória dos trabalhadores, que forçaram os emissários do faraó à negociação após ocuparem o Vale dos Reis.
O Antigo Egito foi uma das civilizações mais complexas da Antiguidade, responsável por produzir um dos legados mais extraordinários, com contribuições grandiosas em quase todos os campos do saber — da arte à medicina, da construção civil às técnicas agrícolas, da química à astronomia. Fortemente entrelaçada com todos os aspectos da vida cotidiana, da política e das relações sociais, a religião egípcia foi um instrumento fundamental para a manutenção da hierarquia e da ordem social.
O conceito filosófico-religioso mais valorizado pelos antigos egípcios era o Ma’at — o princípio da harmonia, que abarcava todos os aspectos da existência, agindo para repelir o caos e manter o equilíbrio cósmico. O Ma’at não apenas regulava o equilíbrio do universo e o ciclo das estações, mas as próprias leis, o senso de comunidade, a divisão do trabalho e os valores culturais dos indivíduos. Apresentado como uma manifestação da vontade dos deuses, o Ma’at legitimava a posição social dos egípcios, reforçava a obediência à hierarquia e a manutenção da ordem pública.
Durante vários séculos, o Ma’at serviu para desestimular os questionamentos ao poder da elite egípcia e legitimar o controle social. Tudo estava em seu lugar, previamente definido pelos deuses. A resignação era fundamental para que todos cumprissem suas obrigações, mantendo o equilíbrio e a harmonia. No fim da XX Dinastia, entretanto, o princípio do Ma’at passou a ser questionado, levando à erosão gradual do sistema de crenças e do ordenamento político do Antigo Egito. O grande evento catalisador dessas mudanças foi justamente a primeira greve de trabalhadores registrada na história, ocorrida durante o reinado de Ramsés III, o último grande faraó do Império Novo.
Ramsés III governou o Egito por 31 anos. Seu reinado foi marcado pela expansão das relações diplomáticas e comerciais e pelas grandes obras públicas, incluindo a restauração dos monumentos milenares do país. Em 1.178 a.C., entretanto, Ramsés III teve de lidar com o maior desafio de seu governo: os ataques contra o Egito perpetrados pelos Povos do Mar — uma confederação militar marítima, possivelmente oriunda da Anatólia ou da Europa meridional, responsável por realizar ataques que destruíram diversas civilizações do Mediterrâneo no fim do segundo milênio a.C.
Ramsés III conseguiu resistir à invasão dos Povos do Mar e subjugá-los nas grandes batalhas marítimas, mas não conseguiu evitar que o Egito mergulhasse em uma grave crise que se alongaria por décadas. A perda de mão de obra causada pelas baixas na guerra e as despesas com os gastos militares levaram a uma queda abrupta das safras de grãos — que constituíam a base da alimentação do povo egípcio. Condições climáticas desfavoráveis agravariam ainda mais o problema com as colheitas, levando ao desabastecimento gradual de várias regiões do país e ao subsequente aumento da miséria e da fome.
Em 1.159 a.C., durante os preparativos para a celebração do 30º aniversário de governo de Ramsés III, os trabalhadores da região de Tebas começaram a sentir os efeitos do desabastecimento. Artesãos e construtores de túmulos empregados no Templo de Set-Ma’at (“O Lugar da Verdade” em língua egípcia; hoje localizado na cidade de Deir el-Medina) tiveram seus salários (cotas de grãos para consumo próprio) atrasados em quase um mês.
O escriba Amennakht, que aparentemente acumulava algum tipo de função “sindical”, foi incumbido de negociar com as autoridades egípcias a distribuição de grãos aos trabalhadores, mas obteve apenas a concessão de uma quantidade mínima, insuficiente para suprir as necessidades dos funcionários. No mês seguinte, o pagamento dos trabalhadores voltou a atrasar. Os artesãos aguardaram a normalização até o 18º dia, quando cansaram de esperar o pagamento e decidiram cruzar os braços.
Os trabalhadores organizaram uma grande passeata em direção à cidade, aos gritos de “estamos com fome”. Fizeram uma manifestação nos arredores do palácio do faraó e um novo protesto perto do Templo de Tutmés III. Surpreendidas pela atitude dos trabalhadores, as autoridades não sabiam como lidar com a situação, que desafiava o princípio do Ma’at. Visando acalmar os ânimos dos artesãos, ordenaram a distribuição de pães. A medida provou-se insuficiente e os trabalhadores se recusaram a voltar ao trabalho.
No dia seguinte, os manifestantes retomaram o protesto e ocuparam o Portão Sul do Ramesseum — o principal armazém de grãos de Tebas. Após invadirem as salas do complexo exigindo o pagamento dos salários, os oficiais do armazém acionaram o chefe da guarda, Montumes, que tentou em vão dissuadir os grevistas. Um grupo de sacerdotes conseguiu negociar o pagamento parcial das cotas de grãos atrasadas, encerrando a mobilização.
Quando voltaram ao serviço, os artesãos descobriram que o pagamento do mês seguinte atrasaria novamente. Voltaram a entrar em greve e dessa vez tomaram uma atitude enérgica: bloquearam o acesso ao Vale dos Reis — a necrópole sagrada onde se encontram os túmulos dos antigos faraós e dos mais poderosos nobres do Antigo Egito. Com o bloqueio, a elite egípcia ficava privada de realizar suas ofertas de alimentos, bebidas e insumos aos falecidos — um ritual fundamental no sistema de crenças então vigente. Além disso, a ocupação do Vale dos Reis era considerada um insulto à memória dos sepultados.
Oficiais ordenaram aos guardas que retirassem à força os grevistas do Vales dos Reis. Os trabalhadores amotinados, entretanto, ameaçaram danificar os túmulos dos faraós caso os guardas se aproximassem — o que, na concepção religiosa da época, atentava contra a vida pós-morte dos monarcas. A ameaça dos trabalhadores funcionou, obrigando os guardas a recuarem e as autoridades a negociarem mais um pagamento parcial das cotas de grãos.
As greves se arrastaram por três anos, sem que o pagamento das cotas fosse regularizado. Os trabalhadores chegaram a decretar uma trégua para a realização do festival em homenagem aos 30 anos de governo do faraó Ramsés III, mas voltaram com as paralisações tão logo as festividades foram encerradas. O problema somente foi resolvido após uma visita do vizir egípcio ao vilarejo, quando algum tipo de solução foi concebida para garantir o pagamento regular das cotas de grãos aos artesãos.
A dinâmica da relação entre os altos funcionários dos templos de Tebas e os trabalhadores, entretanto, mudaria de forma permanente a partir desse episódio. Da mesma forma, a greve dos trabalhadores de Set-Ma’at alterou apercepção dos valores religiosos, progressivamente substituídos em favor de uma abordagem menos idealista e mais pragmática, de assumir a responsabilidade pela correção das situações de desarmonia e reivindicar mudanças — e não mais aguardar resignadamente que Ma’at equilibrasse a balança cósmica.
Essas alterações na visão de mundo dos trabalhadores egípcios ensejariam a realização de muitas outras greves ao longo do Terceiro Período Intermediário e da Época Baixa. E essa modalidade de protesto, até hoje a mais utilizada pela classe trabalhadora, seria um dos muitos legados dos antigos egípcios que sobreviveriam ao colapso de sua própria civilização.
A paralisação dos artesãos e construtores de Set-Ma’at foi registrada no “Papiro da Greve de Turim” — um documento administrativo que compila os eventos mais importantes ocorridos na região de Deir el-Medina durante o governo de Ramsés III. O relato foi feito pelo próprio escriba Amennakht, que participou das negociações. O documento possui oito entradas relacionadas à greve. Encontra-se conservado no Museu Egípcio de Turim, na Itália.