A revolta dos escravizados do Amistad: 186 anos de um marco da luta por liberdade
Escuna de colonizadores espanhóis carregava 53 membros do povo Mendé, sequestrados em Serra Leoa, a fim de serem forçados ao trabalho escravo nas plantações de açúcar de Cuba
Há 186 anos, em 2 de julho de 1839, um grupo de africanos escravizados se rebelava contra seus captores e tomavam o navio negreiro “Amistad”, em um episódio marcante da luta contra a escravidão.
A escuna, pertencente a colonizadores espanhóis, carregava 53 membros do povo Mendé, que tinham sido sequestrados em Serra Leoa, a fim de serem forçados ao trabalho escravo nas plantações de açúcar de Cuba.
Após se libertarem das correntes, os rebeldes mataram o capitão, dominaram a tripulação e assumiram o controle do navio. O objetivo dos cativos era retornar para Serra Leoa, mas os tripulantes espanhóis alteraram secretamente a rota do navio, rumando para o norte.
Ao aportarem no litoral dos Estados Unidos, os rebeldes foram presos, sob a acusação de motim e assassinato. Eles enfrentariam uma longa batalha legal contra o governo dos Estados Unidos, que pretendia entregá-los para a Espanha. O caso chegou à Suprema Corte, onde os rebeldes foram defendidos por um grupo de abolicionistas e conquistaram a liberdade.
O comércio de escravizados em Cuba
Submetida ao domínio colonial da Espanha desde o fim do século 15, Cuba testemunharia o surgimento de um dos regimes escravagistas mais brutais do Caribe. Os primeiros africanos escravizados foram levados para a ilha em 1513, a fim de substituir os indígenas Taíno, que estavam sendo dizimados por doenças e pela exploração inclemente nas minas.
A expansão da produção açucareira entre os séculos 18 e 19 resultaria no aumento exponencial da demanda por mão de obra e Cuba se converteria em um dos principais destinos do comércio transatlântico de escravizados. Estima-se que mais de 600 mil africanos aportaram em Cuba entre 1810 e 1870 — período em que a ilha se tornou a maior produtora de açúcar do mundo.
Paradoxalmente, esse aumento no comércio de escravizados ocorria já sob a vigência do Tratado Anglo-Espanhol de 1817, que havia criminalizado o tráfico marítimo de cativos. Atendendo à demanda da Revolução Industrial por mercados consumidores, a Inglaterra, antes um dos principais sustentáculos do sistema escravagista, agora pressionava pelo fim do comércio de escravizados.
Apesar de sua adesão formal ao tratado, a Espanha não apenas permitia como estimulava a continuidade do tráfico em suas colônias, enxergando a prática como imprescindível para a continuidade de sua produção agroexportadora.
La Amistad
Ramón Ferrer era um dos muitos colonizadores espanhóis que lucravam com o comércio de escravizados. Ele era o proprietário do veleiro “La Amistad”, uma escuna de dois mastros que havia sido adaptada para servir como navio negreiro.
Como era uma embarcação de pequeno porte, o “Amistad” não atuava no tráfico transatlântico. Ele era utilizado sobretudo no transporte regional de cargas e de escravizados, fazendo viagens relativamente curtas entre os portos do Caribe.
Esse é o caso da viagem iniciada em 28 de junho de 1839, quando o “Amistad” partiu de Havana com destino ao porto de Guanaja, em Puerto Principe, na Região Centro-Leste de Cuba. A bordo do navio estavam 53 africanos escravizados — 49 adultos e 4 crianças, todos oriundos do povo Mendé, um dos principais grupos étnicos de Serra Leoa.
Os cativos haviam sido sequestrados em sua terra natal e levados até Havana pelo navio negreiro português Tecora. Oferecidos como escravos, os Mendés foram adquiridos pelos espanhóis José Ruiz e Pedro Montes, proprietários de engenhos na ilha. Foram eles que contrataram a viagem do “Amistad”, destinada a levar os cativos até o trabalho forçado nas plantações de açúcar de Camagüey.
Como usual em todos os navios negreiros, a viagem no “Amistad” foi marcada pelas condições desumanas e insalubres. Os cativos foram divididos em dois grupos, metade deles amontoados e acorrentados no porão do navio e a outra metade no convés. A alimentação era escassa e os maus tratos recorrentes.

Gravura de 1840 representando a rebelião do Amistad
Wikimedia Commons
A insurreição
A oportunidade para o levante dos escravizados surgiu no terceiro dia da viagem, após os cativos encontrarem uma lima enferrujada no porão do navio negreiro. Um homem chamado Sengbe Pieh (mais tarde identificado como Joseph Cinqué) usou a ferramenta para serrar suas correntes e libertar seus companheiros. Os Mendés aguardaram então o momento certo para dar início ao motim.
Na manhã de 2 de julho de 1839, em meio a uma tempestade, os Mendés atacaram seus captores. Armados com facões de cortar cana encontrados no almoxarifado da embarcação, eles mataram Ramón Ferrer, o dono do “Amistad”. Celestino, o cozinheiro da embarcação que costumava destratá-los e ameaçá-los, também foi morto no ataque.
Dois membros da tripulação conseguiram fugir em um bote e dois dos rebeldes foram mortalmente feridos durante o levante. José Ruiz e Pedro Montes, os espanhóis que haviam comprado os cativos em Havana, foram poupados para que pudessem pilotar a embarcação.
Sengbe Pieh, o líder do motim, ordenou aos espanhóis que mudassem o curso da embarcação para a África, a fim de levá-los de volta para Serra Leoa. Os homens fingiram obedecer, mas enganaram os rebeldes mudando gradualmente o rumo da embarcação para o norte, em direção aos Estados Unidos.
O navio prosseguiu em uma rota errática pelo Atlântico por várias semanas e a falta de suprimentos tornou-se um problema grave. A embarcação só tinha comida armazenada para uma viagem de poucos dias — o que acabou resultando no adoecimento e na morte de vários cativos.
Em 26 de agosto de 1839, após quase dois meses navegando, o “Amistad” aportou na costa de Long Island, no estado de Nova York, para que os passageiros pudessem procurar água e alimentos. A embarcação foi então localizada pelo Serviço Alfandegário dos Estados Unidos e abordada pelo brigue “USS Washington”, comandado pelo tenente Thomas Gedney.
A batalha legal
Após assumir a custódia do “Amistad”, Gedney ordenou que os rebeldes fossem detidos e levados até o porto de New London, em Connecticut — estado onda a escravidão ainda era legalizada. Ele apresentou uma petição reivindicando o direito de propriedade sobre os escravizados, visando lucrar com a venda dos cativos.
O Tribunal Distrital de Connecticut liberou os escravizadores espanhóis e ordenou a prisão dos rebeldes. Teve início então uma complexa batalha legal, com múltiplas partes envolvidas e repercussões internacionais.
Alegando que o caso ocorrera nas águas territoriais de uma de suas colônias, o governo espanhol solicitou a entrega dos escravizados e do “Amistad”, a fim de que cativos fossem julgados e punidos por motim e assassinato.
Já Ruiz e Montes alegaram que eram os donos legítimos dos cativos e exigiram sua devolução. Por sua vez, Thomas Gedney e outros oficiais da marinha norte-americana reivindicaram a posse dos Mendés com base nas leis de salvamento marítimo.
O presidente norte-americano Martin Van Buren, preocupado com as tensões internas em torno da escravidão e tentando evitar rusgas diplomáticas, pressionou para que o caso fosse decidido em favor da Espanha. Assim, o promotor-geral de Connecticut encampou a defesa do governo espanhol.
Os rebeldes foram defendidos por um grupo de advogados liderado por Roger Sherman Baldwin. Eles receberam apoio de abolicionistas como Lewis Tappan, Joshua Leavitt e Simeon Jocelyn, que formaram o “Comitê Amistad”, responsável por arrecadar fundos e pressionar pela libertação dos escravizados.
A defesa argumentou que os Mendés eram africanos livres, que foram sequestrados ilegalmente sob a luz do direito internacional, já que o comércio marítimo de escravizados violava o Tratado de 1817, firmado entre a Espanha e o Reino Unido. Os relatos dos próprios cativos, traduzidos para o inglês pelo serra-leonês James Covey, tiveram grande importância para referendar a argumentação.
Os britânicos também pressionaram os Estados Unidos a libertarem os cativos e invocaram o Tratado de Ghent, que havia delineado proposições comuns dos dois governos em relação ao tráfico de escravizados.
A sentença
O caso foi inicialmente julgado pelo Tribunal Distrital de Connecticut, sob a jurisdição do magistrado Andrew Judson. Em janeiro de 1840, o juiz decidiu a favor da defesa, declarando que os Mendés haviam sido capturados ilegalmente.
Ele também afastou a hipótese de assassinato, justificando que, diante da ilegalidade de sua captura, os Mendés tinham o direito de resistir ao aprisionamento ilegal por todos os meios necessários.
Judson determinou que os cativos fossem enviados de volta para Serra Leoa, mas o governo norte-americano recorreu da sentença junto à Corte de Apelações. A decisão foi mantida em segunda instância e o governo dos Estados Unidos recorreu mais uma vez, levando o caso à Suprema Corte.
No derradeiro julgamento, o procurador-geral Henry Gilpin argumentou que os escravizados eram “inequivocamente propriedades da Espanha” e que deveriam ser devolvidos ao seu “legítimo proprietário”.
A defesa dos Mendés ganhou o reforço do advogado e ex-presidente John Quincy Adams, então congressista por Massachusetts. A argumentação, entretanto, ficou a cargo de Baldwin, que demonstrou a violação da lei internacional, criticou a interferência do presidente Van Buren no caso e reforçou que o judiciário não deveria se subordinar aos interesses políticos do poder executivo.
Em 9 de março de 1841, o juiz Joseph Story proferiu a decisão majoritária da Suprema Corte, confirmando as sentenças das instâncias inferiores. Ele declarou que os Mendés eram livres e não poderiam ser considerados propriedade do governo espanhol.
O retorno
Dos 53 cativos que haviam embarcado no “Amistad” em junho de 1939, 35 estavam vivos ao final do processo. Eles foram libertados, mas o governo dos Estados Unidos se recusou a fornecer auxílio para a viagem de retorno a Serra Leoa.
A viagem foi viabilizada graças a uma coleta de fundos organizada pelo Comitê Amistad, por militantes do movimento abolicionista e por missionários afro-americanos. Em janeiro de 1842, os Mendés sobreviventes finalmente desembarcaram em Serra Leoa.
Posteriormente, o Comitê Amistad daria origem à United Missionary Society, uma organização religiosa negra liderada pelo ex-escravizado James Pennington, que teria grande importância na luta abolicionista nos Estados Unidos.
O episódio também jogou luz sobre as contradições do sistema jurídico norte-americano, que estabelecia jurisprudência a partir de argumentos sobre a liberdade individual ao mesmo tempo em que legitimava a escravidão no próprio país.
A revolta dos escravizados inspirou o filme “Amistad”, dirigido por Steven Spielberg e lançado em 1997, baseado em um livro de Howard Jones publicado nos anos 80. Um monumento homenageando o líder da insurreição, Sengbe Pieh, foi erguido junto à prefeitura de New Haven em 1992. E uma réplica do navio “Amistad” foi inaugurada no porto de Mystic, em Connecticut, no ano 2000.