Quarta-feira, 11 de junho de 2025
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A narrativa é bem conhecida. Em 4 de junho de 1989, um protesto de estudantes que ocupavam a Praça da Paz Celestial exigindo liberdades democráticas teria sido brutalmente reprimido pelo Exército de Libertação Popular, com uso de blindados e infantaria fortemente armada, a mando do governo da China.

Seria mais um capítulo da série de insurreições que atingiram os governos socialistas do mundo inteiro no fim dos anos oitenta. O número de vítimas era uma incógnita. Jornais como The New York Times falavam em algo entre 400 a 800 pessoas, enquanto ONGs como a Cruz Vermelha estimavam mais de 10.000 mortos.

A reação foi dura. Estados Unidos e União Europeia condenaram severamente o autoritarismo do governo chinês, estabeleceram uma série de sanções e decretaram um embargo de venda de armas à China que se mantém em vigor até hoje. Os aparelhos ideológicos ocidentais se deleitaram diante do pretexto ideal para fazer aflorar seu anticomunismo hidrófobo.

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A análise mais detida dos acontecimentos, entretanto, revela uma outra história bem distinta. A começar pelos relatos feitos in loco pelos jornalistas da imprensa ocidental que estavam em Pequim cobrindo os protestos.

Relatos iniciais da imprensa

A enorme discrepância nas estimativas do número de mortos sugere que os relatos ocidentais acerca dos protestos foram fortemente instrumentalizados pela agenda anticomunista.

Embora tenham ocorrido, de fato, violentos choques entre as forças policiais e grupos civis no contexto dos protestos, o exagero e a sonegação de informações necessárias para contextualizar corretamente o conflito são evidentes. E para comprovar isso, basta examinar os relatos iniciais dos correspondentes ocidentais que estavam em Pequim no dia 4 de junho de 1989.

“Até onde pode ser determinado pelas evidências, ninguém morreu naquela noite na Praça da Paz Celestial”. A afirmação é do jornalista norte-americano Jay Mathews, que trabalhou como correspondente do jornal Washington Post em Pequim em 1989. E ele não é uma voz isolada.

Richard Roth, jornalista da CBS News, referendou a mesma impressão: “Nós não vimos corpos, feridos, ambulâncias ou equipes médicas — resumindo, nada sugerindo, muito menos provando, que ocorreu um massacre’ na praça.”

James Miles, jornalista da BBC News, endossou as afirmações anteriores em 2009: “Eu era um dos jornalistas estrangeiros que testemunharam os eventos daquela noite. Não houve massacre na Praça da Paz Celestial”.

Nicholas Kristof, do The New York Times, outro correspondente que testemunhou o evento in loco, não apenas negou que tenha ocorrido algum massacre como afirmou ter testemunhado os estudantes deixando a Praça da Paz Celestial por vontade própria, sem que nenhum tiro fosse disparado.

Graham Earnshaw, correspondente da agência Reuters, afirmou o mesmo em sua biografia, ao dizer que “os militares vieram, negociaram com os estudantes e convenceram todos a saírem pacificamente”, emendando que “ninguém morreu naquela praça”.

Se não bastam os relatos dos jornalistas que acompanharam o evento, tome-se o registro feito pelo próprio governo norte-americano em um telegrama diplomático de julho de 1989, vazado pelo WikiLeaks.

O telegrama produzido pela Embaixada dos Estados Unidos em Pequim traz o relato de um diplomata chileno e de sua esposa: “Eles conseguiram entrar e sair da Praça da Paz Celestial repetidas vezes e não foram abordados pelas tropas. Permaneceram com os estudantes até o final. O diplomata assegura não houve tiroteios na praça ou no monumento”.

Esses relatos iniciais, entretanto, foram todos deixados de lado em favor de uma narrativa demonizante que permitisse responsabilizar o governo chinês por um massacre brutal de estudantes. Esse era, afinal, o desfecho aguardado de uma operação que visava insuflar o derramamento de sangue da China — e que já vinha há um bom tempo sendo articulada por forças externas.

Manifestantes da Praça da Paz Celestial com a estátua da “Deusa da Democracia”
Osthyveln från Österrike/Wikimedia Commons

A cooptação dos protestos

As manifestações na Praça da Paz Celestial tiveram início logo após a morte de Hu Yaobang, braço direito de Deng Xiaoping e Secretário-Geral do Partido Comunista da China entre 1982 e 1987. Vitimado por um infarto aos 73 anos de idade, Yaobang conduzira uma série de reformas políticas e econômicas que lhe granjearam popularidade entre parte da juventude chinesa.

Assim, os jovens começaram a ir até a Praça da Paz Celestial para homenageá-lo e manifestar concordância com as suas reformas. Em meio ao contexto de revoluções coloridas contra os governos socialistas europeus, a Casa Branca vislumbrou a possibilidade de manipular as manifestações pela morte de Yaobang, instrumentalizando-as em favor de uma operação de mudança de regime.

Em 20 de abril de 1989, apenas cinco dias após a morte de Yaobang, o governo dos Estados Unidos apontou James Lilley, um dos mais destacados agentes da CIA, para o cargo de embaixador do país na China. Lilley já chefiava os serviços de inteligência norte-americanos na China desde 1975 e foi responsável por inserir diversos agentes no país.

O movimento não passou despercebido pela imprensa na época. Um artigo publicado pelo Vancouver Sun em 17 de setembro de 1992 assegurava que a “Agência Central de Inteligência tinha contatos entre os manifestantes da Praça da Paz Celestial”, emendando que “ao longo de meses antes dos protestos, a CIA estava ajudando os estudantes ativistas a formarem um movimento antigovernamental”.

O governo norte-americano teve ajuda do bilionário George Soros e do Fundo Nacional para a Democracia para executar as ações de inteligência no país.

Conhecido por financiar think tanks liberais em todo o planeta, George Soros havia doado dezenas de milhões de dólares desde 1986 para uma ONG chamada “Fundo para Reforma e Abertura da China”, responsável por cooptar e treinar líderes estudantis “pró-democracia”.

Em várias ocasiões, Soros se gabou explicitamente de ter auxiliado na articulação dos protestos de Pequim e na derrubada dos governos do bloco socialista europeu nos anos 80.

Já o Fundo Nacional para a Democracia, uma organização subvencionada com verbas do governo dos Estados Unidos e acusada de orquestrar operações de mudança de regime em vários países do mundo, abriu escritórios na China em 1988.

Outro nome que teve papel ativo em fomentar os protestos da Praça da Paz Celestial foi Gene Sharp, autor dos infames manuais de “revoluções coloridas” e tema do documentário “Como Iniciar uma Revolução”.

Vinculado à CIA, ao Pentágono, subsidiado pelo Fundo Nacional para a Democracia e conhecido por fomentar sublevações em todo o planeta, Sharp passou nove dias em Pequim durante os protestos.

A cooperação interna

Essa intervenção das organizações ocidentais foi possível graças à colaboração do próprio governo chinês, que à época estava sob o comando de Zhao Ziyang, Secretário Geral do Partido Comunista e primeiro-ministro da China.

Ziyang era um dos maiores defensores das reformas neoliberais no país. Seu principal assessor, Chen Yizi, era o diretor do Instituto de Reformas Econômicas e Estruturais da China, um influente think tank liberal financiado por governos e organizações ocidentais.

Quando os membros da cúpula do Partido Comunista da China se deram conta da colaboração entre o primeiro-ministro e os órgãos ocidentais, eles removeram Ziyang de seu cargo e o colocaram em prisão domiciliar pelo resto de sua vida. Soros e sua ONG foram banidos da China e Chen Yizi fugiu para os Estados Unidos.

A influência externa nos protestos podia ser percebida pela grande quantidade de cartazes com frases em inglês, trazendo slogans pró-democracia feitos sob medida para apelar à visão de mundo do público ocidental.

Os estudantes não formavam um bloco homogêneo, compreendendo desde apoiadores de Yaobang até idealistas a favor de pautas como democracia e liberdade de expressão.

As lideranças, entretanto, eram quase todas cooptadas, como ficou evidente durante a Operação Yellowbird — uma operação realizada em conjunto por agências de inteligência ocidentais como CIA, MI-6 e DGSE, visando retirar os líderes dos protestos do território chinês, em colaboração com os governos de Taiwan e Hong Kong.

Os provocadores armados

Os órgãos de inteligência ocidentais também foram responsáveis por armar provocadores com pistolas, metralhadoras e fuzis, buscando incitar uma resposta violenta do governo chinês.

Houve, de fato, inúmeros confrontos violentos entre os dias 4 e 5 de junho em vários bairros de Pequim, resultando em um número estimado de 200 a 300 mortes. O que a imprensa ocidental não costuma dizer é que metade dos mortos foram militares ou policiais chineses.

Há um grande número de imagens mostrando policiais chineses sendo espancados e assassinados por gangues armadas durante confronto. Um artigo publicado pelo jornal Wall Street Journal em 5 de junho de 1989 descrevia o cenário de violência: “dúzias de soldados foram retirados dos caminhões, severamente espancados e abandonados após serem dados como mortos. Em um cruzamento a oeste da praça, o corpo de um jovem soldado, espancado até a morte, foi despido e pendurado pelo pescoço na lateral de um ônibus.”

Isso ocorreu porque a maioria dos soldados que acompanharam os protestos não estavam armados. Há vídeos e fotografias que registram os soldados interagindo com os civis sem portar sequer cassetetes.

Desde o começo dos protestos em abril, o governo chinês relutava em responder com força, permitindo a continuidades dos atos. Os confrontos somente começaram a ocorrer quando grupos de agitadores passaram a instigar ações violentas.

Até mesmo o vídeo mais famoso do evento, mostrando um homem anônimo tentando impedir o avanço dos blindados, é bem sintomático do exagero da narrativa ocidental do “massacre”.

As imagens costumam focar apenas nos primeiros segundos — ignorando o fato de que os tanques se recusaram a avançar sobre o homem e não o agrediram nem mesmo quando ele subiu em cima dos blindados, somente deixando o local por vontade própria, sem sofrer qualquer tipo de repressão.

Chai Ling, uma das líderes dos protestos da Praça da Paz Celestial, hoje morando nos Estados Unidos, chegou a declarar numa entrevista: “Eu queria dizer aos manifestantes que nós estávamos esperando um banho de sangue, que seria necessário um massacre que fizesse o sangue correr como um rio pela Praça da Paz Celestial para acordar o povo. Mas como eu poderia dizer isso a eles? Como poderia dizer a eles que suas vidas tinham de ser sacrificadas para que nós pudéssemos vencer?”.

A declaração resume bem a natureza do plano norte-americano para insuflar uma mudança de regime. Washington queria um massacre para derrubar o governo chinês. Na ausência do esperado banho de sangue, iniciou-se a construção da narrativa do massacre.