Há 103 anos, em 13 de fevereiro de 1922, tinha início em São Paulo a Semana de Arte Moderna, marco histórico do movimento de renovação das linguagens artísticas no Brasil. Sediado no Teatro Municipal, o festival tinha por objetivo contestar o academicismo, fomentar a busca por uma identidade nacional e incentivar a liberdade de criação e de expressão. A Semana de Arte Moderna ajudou a difundir novos conceitos artísticos e a consolidar movimentos de vanguarda que tiveram enorme influência na arte brasileira ao longo do século 20.
O Grupo dos Cinco
O processo reformador que culminou com a realização da Semana de Arte Moderna tem origem dentro da própria academia. No fim do século 19, surgiram diversos artistas que buscavam conciliar a sobriedade acadêmica e a aspiração de liberdade técnica e expressiva. Esse movimento se aprofundou na segunda década do século 20, tendo as artes visuais como linha de frente.
Em 1913, o pintor lituano Lasar Segall realizou a primeira mostra de arte não acadêmica do Brasil. Mas foi a exposição organizada por Anita Malfatti em 1917 que enfureceu o público conservador — sobretudo o escritor Monteiro Lobato, que criticou violentamente a pintora em um artigo intitulado “Paranoia ou Mistificação?”, onde equiparava o modernismo à “arte dos manicômios”.
O insulto de Lobato levou o grupo incipiente de modernistas de São Paulo a se unir em defesa de Anita Malfatti. À pintora, juntaram-se Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia e Tarsila do Amaral, formando o chamado “Grupo dos Cinco” — núcleo de agitação cultural que ajudaria a difundir as ideias das vanguardas artísticas na capital paulista, promovendo reuniões, exposições e conferências.
O Grupo dos Cinco seria responsável por lançar os referenciais teóricos da Semana de Arte Moderna. A ideia surgiu em 1921, em meios aos preparativos das comemorações do centenário da independência. O objetivo era aproveitar a oportunidade para fomentar as discussões sobre a emancipação da produção artística, realizando um festival nos moldes da “Semaine de Fêtes” de Deauville.
A Semana de 22
O patrocínio do projeto ficou a cargo do cafeicultor e industrialista Paulo Prado. Descendente de uma das famílias mais ricas do estado, Paulo representava um segmento da burguesia paulistana que ansiava pela dinamização e modernização da vida cultural e pelo fortalecimento da identidade nacional.
Essa parcela da elite enxergava a “atualização” da inteligência artística nacional como necessária para a manutenção de sua hegemonia política e econômica — não estando isento, ainda, de uma visão paternalista sobre a necessidade de elevar o “nível cultural das massas”.
Com bom trânsito na elite paulistana, Paulo não teve dificuldades em obter recursos para cobrir o aluguel do Teatro Municipal e as despesas do evento. O empresário também viabilizou o apoio do escritor e diplomata Graça Aranha à iniciativa, essencial para emprestar a aura de legitimidade e sobriedade ao grupo de modernistas ainda pouco conhecido.
A Semana de Arte Moderna foi organizada como uma sequência de festivais temáticos em dias intercalados. Os ingressos eram caros, contribuindo para a elitização do público. A abertura ocorreu no dia 13 de fevereiro, reservado às artes plásticas. Obras de artistas como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Vicente do Rego Monteiro, Yan de Almeida Prado, Oswaldo Goeldi, Zina Aita e Regina Graz foram instaladas no saguão do Teatro Municipal — para o desprazer dos visitantes mais acostumados à estética “pompier”.
Os arquitetos Antonio Moya e Georg Przyrembel também participaram do evento. Graça Aranha proferiu a conferência de abertura, intitulada “A emoção estética na arte”, criticando o academicismo e a Academia Brasileira de Letras, elogiando os trabalhos expostos e definindo os artistas da Semana como agentes da “libertação da arte”.
O dia 15 de fevereiro foi reservado à literatura e à poesia e contou com a presença de escritores como Afonso Schmidt, Sérgio Milliet e Guilherme de Almeida. Oswald de Andrade declamou alguns de seus poemas e Mário de Andrade fez uma palestra intitulada “A escrava que não é Isaura”, evocando a necessidade de incentivar o nativismo, abrasileirar a arte e valorizar a cultura popular. A manifestação de Mário de Andrade é considerada uma das primeiras tentativas de formular um modernismo genuinamente brasileiro.
Por sua vez, Menotti Del Picchia conduziu uma palestra-performance sobre estética, intencionalmente pontuada pela reprodução mecânica de sons variados, como grunhidos, vaias e aplausos. Ronald de Carvalho declamou o “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, obra imbuída de críticas ao parnasianismo, causando a reação negativa da plateia. O poeta Agenor Fernandes Barbosa foi o único participante aplaudido no dia.

Mário de Andrade, Anita Malfatti e Zina Aita em 1922
Dedicado à música, o dia 17 aparentava ser o mais sereno da Semana. Participaram do festival musicistas como Guiomar Novaes, Octávio Pinto, Paulina d’Ambrósio, Ernani Braga e Alfredo Gomes, todos obtendo reações positivas da plateia. Heitor Villa-Lobos, entretanto, foi vaiado intensamente. O maestro adentrou no palco trajando casaca e calçando um sapato em um pé e um chinelo no outro. O público interpretou o ato como uma performance artística de mau gosto, mas Villa-Lobos esclareceu posteriormente que estava apenas com um calo inflamado.
O legado da Semana
A cobertura da Semana de Arte Moderna na imprensa foi bastante negativa, variando da ironia cáustica ao discurso reacionário virulento, rotulando os participantes como “subversores da arte” e “espíritos cretinos e débeis”. As críticas bem equilibradas do Correio Paulistano foram valorosas exceções.
A importância da Semana de Arte Moderna reside sobretudo em seu caráter de contestação dos cânones acadêmicos e na assimilação da necessidade de fomentar uma arte verdadeiramente nacional — mesmo que a partir da adaptação dos elementos externos.
Como não possuía um programa estético definido, a semana pouco avançou na consolidação da unidade do movimento modernista ou na construção de uma linguagem própria, servindo mais ao debate e ao intercâmbio entre as múltiplas tendências representadas.
A Semana se desdobrou em vários movimentos (Pau Brasil, Antropofágico, Verde-Amarelo, etc.) que se autodeclararam como legítimos herdeiros das aspirações do evento. O festival também esteve imerso em contradições — sobretudo a contraposição do discurso de valorização da cultura popular em relação à natureza inegavelmente elitista do evento.
Apesar de suas contradições, a Semana de Arte Moderna teve um enorme impacto na produção cultural ulterior, inspirando a criação da Revista Klaxon, porta-voz dos modernistas, e da Revista de Antropofagia. O evento pavimentou o caminho para o nascimento de obras como “Paulicéia Desvairada” de Mário de Andrade, “Os Condenados” de Oswald de Andrade e “Epigramas Irônicos e Sentimentais” de Ronald de Carvalho.
Além disso, os temas originalmente abordados nas conferências da Semana — nomeadamente a discussão sobre a adaptação das influências estéticas estrangeiras para a realidade nacional — seguiriam ecoando décadas mais tarde, contribuindo para a criação de movimentos como a Bossa Nova e o Tropicalismo.